Cientistas desenvolvem inédita metodologia não invasiva de IRM que poderá permitir níveis sem precedentes de análises das lesões de AVC
A melhoria da qualidade da informação extraída através da imagem por ressonância magnética (IRM) não invasiva e a sua interpretação na saúde e na doença tem sido um objectivo constante de investigação desde os anos 1980, quando o uso da IRM para diagnóstico médico começou a ser generalizado. Uma equipa internacional liderada por cientistas da Champalimaud Research, em Lisboa, acaba de dar um passo inédito nessa direcção – e, ao mesmo tempo talvez tenham encontrado a ferramenta, até aqui a mais precisa para caracterizar as lesões causadas pelos AVC, que poderá vir a melhorar radicalmente o desfecho para estes doentes.
Com a sirene a soar, uma ambulância chega às urgências de um hospital, transportando uma mulher de 65 anos numa maca. Ela está consciente, mas tem a boca a descair para o lado, está confusa e diz coisas sem sentido. Estes sintomas característicos já permitiram um diagnóstico preliminar a caminho do hospital: acidente vascular cerebral (AVC) isquémico agudo. Um coágulo de sangue está a bloquear a circulação sanguínea no seu cérebro.
A rapidez de acção é essencial para prevenir as consequências neurológicas devastadoras que a poderiam deixar incapaz de falar, de se mexer ou de tratar de si própria - ou, no pior dos casos, resultar na sua morte. Isto porque o tratamento com anticoagulantes – ou uma cirurgia para remover o coágulo, se necessário – deixará de ser uma opção passadas umas seis horas desde do início dos sintomas. A mulher é portanto imediatamente preparada para ser submetida a IRM de urgência (imagem por ressonância magnética) de forma a que os médicos confirmem o diagnóstico e ajam em conformidade para minimizar os danos.
Este tipo particular de IRM, tipicamente utilizado para o diagnóstico e a avaliação das lesões cerebrais causadas pelos AVC isquémicos agudos, dá pelo nome de “IRM de difusão” (ou IRMd). Durante mais de três décadas a IRMd tem tido imenso sucesso na gestão dos doentes com AVC agudo.
O que a IRMd faz é medir a deslocação das moléculas de água nos tecidos cerebrais sob o efeito dos processos físicos naturais de difusão. A quantificação destas taxas de difusão gera contrastes nas IRMd que permitem visualizar as diferenças entre as lesões cerebrais e os tecidos cerebrais normais. E como o processo de difusão acontece ao nível microscópico, a IRMd é capaz de revelar pormenores microscópicos da arquitectura cerebral que se tornou anómala devido ao AVC. E não só: pode fornecer aos médicos uma estimativa do tempo decorrido desde o início do AVC, guiando assim as suas escolhas terapêuticas.
“Em relação ao AVC isquémico, que representa cerca de 80% do total de AVC (os restantes 20% sendo hemorrágicos), a IMRd foi o primeiro método capaz de determinar quando o AVC teve início”, diz Noam Shemesh, investigador principal do laboratório de IRM Pré-clínica na Champalimaud Research e Director do Centro Champalimaud de IRM Pré-clínica, em Lisboa. Mas a IRMd tem uma limitação: os contrastes visíveis nas imagens não contêm informação suficiente para explicar o que está exactamente a acontecer dentro das lesões cerebrais sofridas pelo doente. “O AVC envolve cascatas complexas de eventos biológicos, com muitos e diferentes desfechos potenciais à escala microscópica nas lesões, mas elas têm todas o mesmo aspecto nos contrastes gerados pela IRMd convencional”, diz Noam Shemesh. E dado que a natureza subjacente das lesões pode variar substancialmente de um doente para outro, isso pode influenciar o tratamento e o resultado final. Por outras palavras, a IRMd fornece pouca informação no sentido de orientar o tratamento personalizado e tem muito pouco poder de previsão sobre o que irá acontecer, em última instância, a esta mulher muito doente e a outros que, como ela, se encontrem nesta difícil situação clínica.
Contudo, tem havido avanços: uma metodologia desenvolvida em 2005, chamada “imagem por curtose de difusão” (ICD ou DKI na sigla em inglês), “é mais sensível quando se trata de localizar os danos isquémicos, e dá-nos informações potencialmente úteis sobre o tecido que é possível preservar”, diz Noam Shemesh. “Mas continua a não ser suficientemente sensível para prever o desfecho final.”
A boa notícia é que a equipa de Noam Shemesh, que reúne os seus colegas Rafael Henriques (do seu laboratório) e Sune Jespersen, da Universidade Aarhus na Dinamarca, desenvolveu agora uma nova metodologia, que estes cientistas baptizaram de “Imagem por Tensor de Correlação” (ITC), que poderá representar um enorme passo em frente.
Segundo Noam Shemesh, a ITC poderá constituir uma maneira muito melhor de caracterizar as lesões de AVC a partir das imagens de ressonância magnética de difusão e de prever o desfecho final individualizado nos doentes com AVC isquémico agudo. Os seus resultados acabam de ser publicados na revista científica Magnetic Resonance in Medicine.
O problema com os modelos de difusão da água
Na realidade, as limitações da IRMd “de base” residem nos pressupostos assumidos sobre a difusão da água nos tecidos cerebrais (e no quadro matemático utilizado para os descrever), bem como nas medições efectivamente feitas durante a realização da ressonância magnética de difusão. A IRM em si é uma modalidade muito poderosa e versátil; o problema está, antes, na forma como a informação sobre o tecido examinado é codificada nas imagens pela máquina de ressonância magnética.
Por isso, não admira que tenha sempre havido uma necessidade premente de desenvolver novas metodologias e ferramentas matemáticas para modelizar melhor o que está de facto a acontecer no cérebro. Não só com vista a gerir de forma mais eficaz doenças como os AVC, mas também para conseguir perceber melhor o funcionamento do cérebro saudável. É por isso que há tantos esforços em curso nesse sentido, em particular desde os anos 1990, quando se tornou possível fazer medições de IRMd graças a grandes avanços no domínio do hardware.
Em particular, os modelos estatísticos utilizados para representar a difusão da água nos tecidos neurais são cruciais para este esforço. No início, a abordagem de IRMd mais simples pressupunha que a difusão da água no cérebro podia ser descrita de forma essencialmente idêntica à sua difusão num estado líquido puro – ou seja, representada por um único número, a taxa de difusão. No entanto, isso pressupõe implicitamente que a difusão é igual em todas as direcções. Mas os tecidos cerebrais são muito mais complexos e heterogéneos, fazendo com que os ambientes em que a difusão ocorre sejam muito mais interessantes do que os líquidos puros. Em particular, no cérebro, as moléculas de água interagem com membranas celulares e outros componentes biológicos e não se movem necessariamente da mesma forma em todas as direcções. O que significa que, entre outras coisas, é preciso ter em conta a direccionalidade para modelizar a difusão no cérebro.
A abordagem dita de “imagem por tensor de difusão” (ITD, ou DTI na sigla em inglês) foi desenvolvida, em 1994, para incluir este efeito de direccionalidade. Revelou-se muito útil para construir imagens hoje conhecidas como conectomas estruturais – aquelas visualizações coloridas das fibras nervosas e das suas trajectórias, à escala do cérebro, que se têm tornado omnipresentes na divulgação das neurociências.
Todavia, a ITD não dá conta, de forma suficientemente realista, da dinâmica da difusão das moléculas de água à escala local no cérebro – que é sem dúvida o aspecto mais relevante a ter em conta quando se utiliza a IRMd para avaliar os estragos provocados pelos AVC agudos, por exemplo. Ao nível local, as moléculas de água encontram barreiras, deslocam-se entre compartimentos diferentes e podem até participar em intercâmbios químicos, o que configura uma situação ainda mais complexa do que quando elas se deslocam no confinamento das fibras nervosas.
Foi com isto em mente que a metodologia já acima referida, dita de “imagem por curtose de difusão” (ICD), foi desenvolvida em 2005. “A ICD pode ser vista como uma extensão da ITD (imagem por tensor de difusão) que toma em conta quão diferente o processo de difusão [no tecido neural] é do processo num líquido puro” diz Sune Jespersen, segundo autor do novo estudo e colaborador de longa data do Shemesh lab. “Num copo de água, a curtose é zero; no cérebro, surge devido à complexidade do sistema. Para estimar a curtose, a ICD exige que sejam efectuadas mais medições durante a sessão de ressonância magnética de difusão – em comparação com a ITD – e a modelização e análise matemáticas também são mais complexas.” Mas, como era de esperar, a ICD mostrou-se mais sensível do que a ITD na visualização das lesões provocadas pelos AVC agudos.
Ir mais longe
Só que, para Noam Shemesh e a sua equipa, esta abordagem ainda não era satisfatória. “A ICD é mais sensível na caracterização da área onde vemos lesões devidas a um AVC isquémico agudo, mas ainda não nos diz o que está exactamente a acontecer dentro da lesão, o que representa um impedimento decisivo à previsão do desfecho final para os doentes e ao desenvolvimento de tratamentos adequados”, diz Noam Shemesh. “E dado que as fontes de curtose são múltiplas, cada uma representando um cenário diferente [tal como edema ou outros eventos], mas todas elas produzindo contrastes semelhantes por ITD e ICD convencionais, quisemos dar mais um passo e desemaranhar as diversas fontes de curtose.”
Em particular, os cientistas pretendiam estimar o valor real da chamada “curtose da difusão microscópica”, uma propriedade intrínseca “que reflete os microambientes confinados através dos quais as moléculas de água se difundem no cérebro”, explica Noam Shemesh. Todas as abordagens anteriores consideram que a curtose de difusão microscópica é irrelevante na curtose total nos tecidos neurais – ou seja, essencialmente nula em todo o cérebro. Porém a equipa decidiu tentar e mapear esta propriedade directamente, o que significava estender ainda mais a teoria e desenvolver novas maneiras de “captar” a curtose de difusão microscópica.
“Nos últimos quatro anos, tínhamos desenvolvido essa metodologia totalmente nova chamada Imagem por Tensor de Correlação, que nos fornecia uma maneira de medir directamente a curtose de difusão microscópica”, diz Noam Shemesh. “A matemática envolvida era muito mais sofisticada e avançada do que as metodologias de IRM anteriores”, diz Rafael Henriques, primeiro autor do novo estudo. “E ainda por cima, o número de medições necessárias requeria um tipo de exame de ressonância magnética de difusão completamente novo, adaptado à medição das propriedades necessárias para desemaranhar as fontes de curtose”, acrescenta. Após todo esse esforço, tinha chegado a altura de utilizar a nova metodologia.
Os cientistas puseram-na então à prova para determinar se a curtose microscópica era ou não um factor importante na IRMd. Era lógico colocar a pergunta e até poderiam vir a aprender algo novo acerca do que está efectivamente a acontecer no cérebro, ao nível microscópico. Para isso aplicaram a Imagem por Tensor de Correlação, in vivo, a ratos. E os resultados, diz um exultante Noam Shemesh, foram completamente inesperados – e vieram acompanhados de uma mais-valia imediata para os doentes com AVC.
Resultados totalmente inesperados
Ao contrário do que esperavam, os cientistas descobriram que esse componente intrínseco, a curtose de difusão microscópica, não era, na realidade, nada negligenciável. Bem pelo contrário, tem um efeito importante na interpretação dos resultados de ressonância magnética.
“Isso significa que grande parte da informação inferida no passado sobre a microestrutura do tecido cerebral está enviesada e nalguns casos, até pode estar completamente errada”, enfatiza Noam Shemesh. Além disso, “a curtose microscópica revelou ser uma fonte dominante de contrastes relevantes (nas imagens), especialmente nos tecidos de matéria cinzenta”.
Estes resultados conduziram logo a passar para a etapa que se seguia logicamente: “aproveitar a nossa metodologia para realçar a curtose de difusão microscópica no AVC”, salienta Noam Shemesh. Para o fazer, ao trio inicial juntaram-se Rita Alves (também do laboratório de Noam Shemesh e estudante do International Neuroscience and Physiology Doctoral Programme), que liderou esta parte da investigação, bem como outros colegas da Fundação Champalimaud e do University College London. Este segundo estudo foi feito em ratinhos com AVC.
Mais uma vez, os resultados, que já foram submetidos para publicação, foram muito surpreendentes – e muito promissores em termos da caracterização das lesões de AVC. “Por incrível que pareça”, diz Noam Shemesh, “a curtose de difusão microscópica representa o contraste mais forte (nos exames de ressonância magnética) para o AVC no cérebro. De todas as nossas medições, foi a melhor. E a seguir descobrimos que as medições da curtose de difusão microscópica reflectem provavelmente a quantidade de grânulos microscópicos que se formam nas dendritas e nos axónios dos neurónios (em inglês “neurite beading”), e de edema no tecido cerebral”. Estes dois acontecimentos são específicos do AVC isquémico agudo, e a sua quantificação poderia ajudar a determinar o verdadeiro estado do tecido, sendo portanto relevante para prever o desfecho do AVC, segundo o investigador. “Portanto, o nosso trabalho é o primeiro a mostrar que conseguimos obter uma boa ‘assinatura’ para eventos específicos no AVC.”
“Esperamos ter encontrado uma melhor forma de caracterizar os AVC in vivo no ser humano”, acrescenta. Para o demonstrar, os cientistas precisam agora de confirmar a qualidade deste novo contraste nas imagens de ressonância magnética de doentes humanos. O trabalho, que envolve implementar a metodologia de Imagem por Tensor de Correlação em máquinas de ressonância magnética de uso clínico, já está em curso em colaboração com um laboratório em Itália. E segundo Noam Shemesh, “os resultados também têm sido impressionantes”.
No que respeita aos dois estudos em animais, Noam Shemesh conclui: “Os nossos resultados são extremamente entusiasmantes. E nem sequer tínhamos previsto este desfecho; foi realmente um achado fortuito, que vem reforçar a ideia segundo a qual quando exploramos novos caminhos, alcançamos resultados excitantes.”
Por Ana Gerschenfeld, Health & Science Writer da Fundação Champalimaud.