Numa segunda-feira, às nove da manhã, um pequeno grupo de cientistas da área de investigação fundamental da Fundação Champalimaud e de outros elementos da Fundação interessados em estabelecer pontes entre a investigação e a clínica, tem “aula de medicina” marcada, via Zoom (pandemia oblige) com Pedro Marvão, o seu tutor num novo curso chamado Fundamentals of Medicine. No prazo de uma semana, eles irão “resolver”, em conjunto, um caso médico. O processo repetir-se-á, semana após semana, com uma série de outros casos.
Esta forma de aprendizagem da medicina, baseada em casos clínicos reais (em inglês, problem-based learning ou PBL), foi criada no Canadá nos anos 1960 e posteriormente desenvolvida na Holanda durante os anos 1970. Foi integrada nos cursos de medicina por algumas Universidades dos países anglo-saxónicos nas décadas seguintes. Desde 2009, é aplicada no curso de Medicina da Universidade do Algarve (UAlg). “Algumas das vantagens resultantes do método de ensino PBL são uma melhor preparação para a resolução de problemas reais, uma maior facilidade na busca de informação, maior retenção do conhecimento adquirido e, de um ponto de vista mais subjectivo, um processo de aprendizagem mais estimulante e interessante”, diz Pedro Marvão, que tem exercido a sua actividade docente como professor de Fisiologia na Faculdade de Medicina da UAlg, na Universidade de Manchester e na Nova Medical School.
Porém, o curso Fundamentals of Medicine no Centro Champalimaud, que partiu de uma ideia de João Silveira Botelho, vice-presidente da Fundação Champalimaud, é a primeira iniciativa pedagógica em que a PBL é dirigida, não a estudantes de medicina, mas a cientistas sem formação médica, com o objectivo de os levar a “sentir na pele” o que é a prática médica. “Desconhecemos qualquer outra iniciativa semelhante, tanto a nível nacional como internacional”, adianta Isabel Palmeirim, diretora da Faculdade de Medicina e Ciências Biomédicas da Universidade do Algarve (FMCB-UAlg) e da pós-graduação Fundamentals of Medicine.
Esta pós-graduação, que nasceu de um protocolo assinado entre o Centro Académico Clínico do Algarve - Algarve Biomedical Center (ABC) – consórcio do qual a UAlg é parte integrante – e a Fundação Champalimaud, não tem como meta principal formar médicos. O objectivo do curso é permitir que cientistas, habituados a uma forma e um ambiente de trabalho muito mais controlado e estruturado, percebam a complexidade dos problemas reais com que os médicos tem de lidar, na azáfama de um hospital ou de um consultório, e que exigem tomadas de decisão a propósito de doentes em tempo real.
Por que é que isto é importante? É cada vez mais consensual que é necessário facilitar a transposição dos resultados da ciência para a aplicação clínica – e isso passa por um diálogo profundo entre cientistas e médicos. E, para esse diálogo se estabelecer de forma significativa, é em particular indispensável que os cientistas percebam que aquilo que os médicos vivem no seu dia-a-dia profissional pouco tem a ver com o ambiente e a vida de laboratório.
Os investigadores em ciências da vida trabalham em condições extremamente controladas. Querem desvendar mecanismos biológicos universais do funcionamento dos seres vivos e estão empenhados em responder a perguntas que os interessam. O método da investigação científica é moroso: consiste em formular hipóteses para responder a essas perguntas e realizar experiências em sistemas artificiais – células, tecidos, órgãos ou animais – para validar ou descartar essas hipóteses. Idealmente, se os resultados forem interessantes e avaliados positivamente pelos seus pares, darão origem a um artigo numa revista científica, e os cientistas continuarão, segundo as mesmas regras, garantes da objectividade dos resultados, a estudar a pergunta que se segue, muitas vezes decorrente das questões que se propuseram estudar inicialmente.
Os médicos, quanto a eles, trabalham numa perspectiva de resolução de problemas: como detectives, têm de descobrir, através da observação e de diversos exames de diagnóstico, o que se passa no corpo de um doente concreto, que apresenta um conjunto de sintomas e que se queixa de uma série de dores e achaques diversos, que podem estar relacionados entre si ou não – o que exige ouvir o relato subjectivo do próprio doente – e encontrar um tratamento adequado. E, em situações de urgência, têm de agir com grande rapidez, com base em escassa informação, para salvar a vida do doente. O trabalho dos médicos consiste em tomar decisões num ambiente cheio de incertezas e de parâmetros que não controla – e até desconhece. Ao contrário dos cientistas, que tentam reduzir ao mínimo os riscos de contaminação e tentam isolar o objecto de estudo sobre o qual trabalham de todas as influências espúrias, o objecto de estudo do médico é o doente inteiro, um sistema complexo, local de interacções e influências múltiplas e sempre sujeito a contaminações de todos os tipos. A realidade não é uma experiência científica.
É com esta realidade do exercício da medicina que os alunos do curso Fundamentals of Medicine tentam conviver. Através da análise de relatórios de casos reais – em que os dados, por vezes contraditórios, vão surgindo progressivamente, como na vida real – , eles vão, ao longo de semanas de discussões de grupo, de pesquisas de informação individuais, de reflexão e de partilha de conhecimento, formular diagnósticos e definir tratamentos, num autêntico trabalho de detectives clínicos.
“Trata-se de uma pós-graduação em Medicina em formato de formação aberta, sobretudo destinada a doutorados em áreas científicas e cujo objetivo é familiarizar o doutorado/investigador com a terminologia e as questões anatómicas, fisiológicas, patológicas e farmacológicas dos diferentes sistemas orgânicos funcionais do corpo humano”, explica Isabel Palmeirim.
No curso deste ano lectivo, (que ainda não terminou), os estudantes terão analisado um total de 36 casos clínicos, ao ritmo de um por semana, dedicando três reuniões a cada um deles. Finda cada série de seis casos, dispõem de uma semana de pausa para estudar, à que se segue uma avaliação dos conhecimentos adquiridos.
O ciclo semanal começa às segundas-feiras com uma sessão de uma hora e meia, onde os alunos recebem informação básica sobre o caso (uma pessoa com um conjunto de sintomas). Sob orientação do tutor, os estudantes fazem a análise preliminar do caso e apresentam hipóteses sobre a causa dos problemas e sua eventual resolução.
“O tutor não tem por função ensinar”, diz Pedro Marvão. “É um gatekeeper da informação do caso, só entregando dados quando o grupo atingiu o ponto certo para os receber. Por outro lado, vai apoiando e guiando o processo de investigação (aqui usado no sentido mais ‘detetivesco’) da informação recebida, o que leva os membros do grupo a formular as perguntas que os guiarão no seu estudo autónomo.”
A discussão produz naturalmente um conjunto de dúvidas e de perguntas às quais os estudantes terão de responder para poderem propor um diagnóstico provisório até à quinta-feira seguinte – um trabalho autónomo e individual em que podem recorrer a todas as fontes de informação que desejarem. Na segunda sessão, de três horas (na quinta-feira), partilham o que aprenderam durante as suas pesquisas.
Pelo seu lado, o tutor fornece-lhes informação adicional sobre o caso (tais como resultados de exames complementares), suscitando novas questões, o que faz com que os estudantes precisem de fazer pesquisas adicionais até à sessão seguinte (na segunda-feira seguinte). Nesta terceira e última sessão, que dura uma hora e meia, analisam-se e resolvem-se as últimas questões e fecha-se o caso. Nessa mesma sessão, dá-se início ao estudo de um novo caso.
Para completar esta aprendizagem autónoma sob orientação tutorial, os estudantes assistem ainda, semanalmente, a seminários interativos do foro básico, clínico ou científico e a discussões em mesa-redonda. “Como eles já têm uma boa preparação prévia no tema abordado, conseguem usufruir de forma muito mais rentável da interação com os especialistas”, salienta Isabel Palmeirim. Este ano, cerca de 40 especialistas participaram nesta fase do curso.
Rita Marçal, por exemplo, médica que lecciona Anatomia na Faculdade de Medicina da UAlg, foi convidada para dar os seminários de Anatomia no curso. “Achei a iniciativa extremamente apelativa e aceitei logo”, diz. “Durante a minha carreira clínica, já senti de perto a distância avassaladora entre a clínica e a investigação, nomeadamente no que respeita aos tipos de linguagem. Além disso, considero que a Fundação Champalimaud é o epítome das instituições privadas de saúde onde a proximidade das duas áreas pode ser muito frutuosa e ter claros benefícios para os doentes que tratamos.”
Bruno Morgado, médico na mesma faculdade, que foi responsável pelos seminários de Farmacologia, considera igualmente a experiência pedagógica muito enriquecedora. “A maioria das aulas que dou, particularmente a alunos de licenciatura, tendem a ser partilhas unilaterais de conhecimento. O professor partilha conhecimento mas recebe pouco em troca, o que é totalmente compreensível visto que o diálogo é feito com pessoas com 18-20 anos e com pouca experiência prévia. Mas com os investigadores da Fundação Champalimaud, a partilha tornava-se bilateral mal o assunto da aula tropeçava marginalmente numa área de investigação presente ou passada dos alunos. Por vezes, esse diálogo tornava-se tão intenso que transformava uma aula prevista para uma hora numa aula de duas ou três horas!
Perguntámos também ao tutor e aos alunos a sua opinião sobre o curso. De um modo geral, a motivação dos estudantes - um total de sete - para integrar o curso foi, como era de esperar, perceber o mundo médico com o qual interagem no Centro Champalimaud, que inclui um Centro Clínico dedicado às doenças oncológicas e um Centro de Investigação básica – assumindo como uma das suas principais missões promover a “translação” dos resultados da ciência para a clínica.
Os estudantes salientam que o curso os tem ajudado a perceber quão diferente a abordagem médica é da abordagem científica. “Em medicina queremos resolver doenças, enquanto que na ciência queremos compreender os mecanismos da doença. Em medicina temos que dar respostas, na ciência temos que fazer perguntas. Objetivos que parecem ser os mesmos são na verdade muito diferentes”, explica Ana Catarina Certal, que lidera a Plataforma de Ferramentas Moleculares e Transgénicas do Champalimaud Research. Noutro registo, “lidar com os doentes e famílias nas diferentes situações que se apresentam é de facto crucial para o dia-a-dia de um médico e geralmente, na abordagem científica, esse cuidado não é necessário (excepto se se trabalhar com pessoas)”, salienta Daniel Nunes, neurocientista do laboratório de Aprendizagem do Champalimaud Research.
Dois dos maiores desafios que se colocaram a estes cientistas-alunos foi saber quando parar de fazer perguntas para resolver os casos clínicos e tomar decisões com base em informação escassa. “As maiores dificuldades para mim foram não ter de ir ao pormenor a que estamos habituados e a necessidade de sermos mais práticos”, diz Rita Fior, líder do grupo de Desenvolvimento do Cancro e Evasão ao Sistema Imune Inato. “O aspeto mais desafiante para mim foi sem dúvida, perante a extensão imensa dos dados da anatomia, da patofisiologia, da farmacologia, aprender a selecionar o material relevante e saber quando parar de pesquisar” diz por seu lado André Valente, investigador e assessor da Administração da Fundação Champalimaud.
Daí o papel essencial do tutor, que “garante, entre outras coisas, que os estudantes trabalham o conteúdo à profundidade necessária, afastando-os de minúcias demasiado irrelevantes ou de generalidades demasiado abrangentes”, diz Pedro Marvão. “Os cientistas são dos melhores alunos para estudar com o método PBL, porque estão muito habituados a questionar e a processar informação. O problema deles é, antes, saber quando parar de perguntar e avançar com a informação de que dispõem. É justamente essa capacidade que têm de aprender e treinar. Mas não houve particular resistência por parte dos alunos para aceitar esta atitude – e as discussões do grupo e a qualidade dos materiais e das fontes que os membros do grupo traziam para as discussões foram a um nível muito superior ao que eu estava habituado. Foi uma experiência muito agradável.”
Os estudantes, por seu lado, consideram benéfico o que aprenderam no curso. “Espero aplicar este novo conhecimento no meu trabalho e nas minhas perguntas científicas”, diz Rita Rior. “Espero conseguir guiar a minha investigação tendo mais em conta as lacunas ainda existentes na prática médica, por forma a tornar a minha investigação mais translacional”, diz Daniel Nunes. E Ana Catarina Certal tem a certeza de que o seu diálogo com os médicos vai tornar-se muito mais profícuo: “Já estou a aplicar o que aprendi sempre que falo com médicos no meu dia-a-dia”, diz. “A minha percepção das prioridades, a minha compreensão dos problemas médicos é agora muito diferente e consigo acompanhar muito melhor o discurso clínico. Uma das coisas que penso que foram mais importantes foi apercebermo-nos de que há muitas limitações clínicas que não se justificam, porque a ciência já tem soluções para elas.”
A única crítica que todos os alunos fazem é a carga de trabalho exigida pelo curso, que torna difícil conciliá-lo com o seu trabalho profissional. Por isso, os organizadores já estão a pensar num formato diferente para as próximas edições, que poderá consistir em estender as aulas ao longo de 18 meses em vez de dez. E talvez até em incluir no curso uma componente prática realizada em simuladores de seres humanos, que a concretizar-se decorrerá na FMCB-UAlg.
“O mais desafiante foi sem dúvida a falta de tempo para que os conceitos ficassem todos bem consolidados”, diz Ana Catarina Certal. “É preciso muita força de vontade (e uma grande qualidade do curso) para o conseguirmos conciliar com a nossa atividade profissional a tempo inteiro.” Mas ainda assim, acrescenta, “o facto de estarmos todos os dias a ser surpreendidos com novos conhecimentos, de ser tudo giro e interessante, fez com que eu conseguisse sempre ir buscar a energia para estudar, mesmo quando estava a morrer de cansaço!”
Por Ana Gerschenfeld, Health & Science Writer da Fundação Champalimaud.