02 Dezembro 2025

Bonsai e mais além: construir ferramentas que constroem mentes

20 Anos, 20 Histórias
— Tecnologias e ferramentas ao longo do tempo com Gonçalo Lopes

Gonçalo Lopes

Quando Gonçalo Lopes entrou pela primeira vez no Instituto Gulbenkian de Ciência em 2010 – quando ainda acolhia a equipa da Fundação Champalimaud (FC) antes da inauguração do seu novo edifício – sentiu-se como se tivesse entrado noutro mundo. “Havia um sentido de aventura”, recorda. “Todos estavam completamente absorvidos nas suas experiências, na fronteira do conhecimento. Não estavam apenas a estudar o cérebro – estavam a construir as ferramentas para o estudar”.

Da startup às sinapses

Antes de se dedicar à neurociência, Gonçalo esteve vários anos no panorama inicial das startups em Portugal. Depois de estudar no Centro de Inteligência Artificial (CENTRIA) da Universidade Nova, juntou-se a uma spin-off chamada YDreams, fundada por professores recém-chegados do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). “A ideia era visionária”, diz. “Íamos viver num mundo imerso em sensores – um mundo onde os computadores não seriam apenas mesas de trabalho, mas estariam em todo o lado à nossa volta”.

Em 2009, liderava uma equipa que desenvolvia sistemas interativos para esta era emergente da computação ubíqua. Mas algo estava em falta. “Estava a projetar máquinas inteligentes sem realmente compreender o que era a inteligência”, diz. “Queria saber como é que os sistemas vivos, como nós, interagem de forma inteligente com o mundo”.

Foi então que a mãe lhe mostrou um pequeno anúncio no jornal Expresso sobre o programa de doutoramento em neurociências da FC. “Foi o momento perfeito. Pensei que teria de sair de Portugal para estudar neurociência, mas aqui estava esta hipótese de o fazer em casa. Decidi que ia entrar – por qualquer meio necessário”.

“Quando fiz a entrevista a Zach Mainen, um dos diretores do programa, disse-lhe: ‘Se não me aceitar como estudante de doutoramento, eu trabalho como técnico’”, recorda Gonçalo. No final, não houve necessidade – foi selecionado. “Comecei a ler A Célula, um livro enorme sobre o funcionamento das células vivas, e a aprender como estes minúsculos sistemas se organizam e se auto-montam em organismos inteiros. Mudou completamente a minha perspetiva. Deixei de pensar no cérebro como uma máquina abstrata de processamento de informação – como as redes neuronais profundas de que tanto ouvimos falar hoje em dia – e comecei a vê-lo como parte do corpo, algo profundamente enraizado na biologia”.

Quando o Gonçalo se juntou à primeira turma de alunos do Programa Internacional de Doutoramento em Neurociências (INDP) a mudar-se para o Champalimaud Centre for the Unknown, em 2011, o edifício ainda estava meio vazio. “Não havia segurança, nem cartões de acesso – podia-se simplesmente entrar”.

A primeira experiência deles no novo espaço? Dissecar os axónios gigantes de chocos, juntamente com os investigadores principais Adam Kampff e Joe Paton, que mais tarde se tornariam os seus orientadores. “Éramos um grupo heterogéneo – informáticos, psicólogos, biólogos moleculares, matemáticos, médicos, engenheiros. Todas as semanas tínhamos aulas com alguns dos neurocientistas mais conceituados do mundo, trazidos pela rede da faculdade. Foi um privilégio incrível.”

“Numa semana, um grupo de meditação budista deu-nos uma sessão na sala de oração da FC”, conta. “Noutra semana, explorámos a comunicação interpessoal com Rita Venturini, pós-doutoranda no Laboratório Mainen. Na altura, tudo parecia um pouco invulgar, mas estas ferramentas de reflexão e organização de pensamentos viriam a revelar-se inestimáveis.” Mais sobre isto adiante.

Retribuindo à comunidade

Durante o seu doutoramento, Gonçalo cedo percebeu que, para realizar as suas experiências, precisaria de construir as suas próprias ferramentas. “Para compreender a inteligência natural, precisava de uma forma de sincronizar dados de múltiplos instrumentos – medir a atividade cerebral, o comportamento e o ambiente, tudo ao mesmo tempo”, diz. “Descobri que não era um problema fácil.”

Assim, escreveu uma nova linguagem de programação visual para o resolver. Esta linguagem tornou-se o Bonsai, uma plataforma de código aberto para neurociência experimental que permite aos investigadores ligar hardware e fluxos de dados em tempo real – “uma forma de fazer com que os instrumentos comuniquem”.

“No início, só partilhava o Bonsai com pessoas que conhecia”, conta Gonçalo. “Mas começou a ganhar vida própria. Quando terminei o meu doutoramento, ele já tinha crescido para além do FC – estudantes, técnicos, investigadores principais – toda a gente o utilizava”.

Hoje, o Bonsai é utilizado por milhares de cientistas nos EUA, Europa e Japão, e tornou-se um padrão na neurociência de sistemas. “Existem muitas ferramentas especializadas para registar a atividade neural, o comportamento e os estímulos”, explica, “mas o que faltava era algo que pudesse reunir todos estes sinais”.Após o seu doutoramento, Gonçalo fundou a NeuroGEARS – uma empresa que liga a neurociência, os jogos e a robótica para tornar as ferramentas científicas para o estudo do comportamento mais acessíveis e adaptáveis. A empresa apoia os laboratórios que adotam o Bonsai e melhora-o continuamente com base no feedback dos investigadores que desenvolvem novas experiências. “Não se trata de criar uma ferramenta e depois perguntar às pessoas o que pensam”, diz. “Constrói-se com elas, desde o primeiro dia”.

Quando as ideias se ligam

À medida que o alcance do Bonsai crescia, isto levou a uma em crise de identidade. “Era neurocientista ou engenheiro? Tinha criado esta ferramenta, mas o meu doutoramento deveria ser sobre neurociência, não sobre programação”. A resolução surgiu durante o seu último ano, quando se mudou para Londres para se juntar ao seu orientador, Adam, no Sainsbury Wellcome Centre. “Deixei de ir ao laboratório todos os dias. Comecei a correr em Hampstead Heath de manhã, a pensar, a ligar tudo o que tinha feito em algo coerente”.

Este processo, acrescenta, foi profundamente influenciado por aquelas primeiras aulas de doutoramento. “Ensinaram-nos a meditar, a pensar sobre o pensamento. Ajudou-me a fechar o ciclo – a escrever a minha tese sobre o papel do córtex motor, a definir as minhas próprias perguntas e respostas e a ligar os pontos”.

Para Gonçalo, encontrar ligações entre ideias e disciplinas é fundamental tanto para a ciência como para a educação. “Penso que estamos a perder de vista o que é realmente uma universidade. Tornou-se muito focada na formação e no desempenho – nas trajetórias de carreira, na empregabilidade e no cumprimento de requisitos. A educação deveria começar com o diálogo e a cocriação, um espaço partilhado que cultiva a curiosidade e valoriza o conhecimento por si só. Se eu pudesse conceber a ferramenta perfeita, seria uma que ajudasse a trazer este tipo de universidade de volta à vida”.

Esta ideia inspirou um dos seus projetos favoritos: Neuronautas, um campo de férias prático de neurociências para alunos do ensino secundário, apoiado pela Fundação Gulbenkian e pela FC. “É algo que ajudei a criar com Catarina Ramos, Danbee Kim, João Frazão, Nuno Loureiro, Gil Costa e muitos outros na FC, e incorpora o mesmo espírito de abertura e cocriação que nos moldou desde o início, quando tudo parecia fluido e em movimento. Teve um impacto duradouro numa geração de jovens cientistas portugueses e serve de testemunho de como a educação e a investigação podem evoluir em conjunto”.

Esta mesma mentalidade colaborativa e educativa estende-se ao seu trabalho atual. “Na NeuroGEARS, temos vindo a trabalhar com um grupo da Unidade de Neurociência Computacional de Gatsby para construir um sistema que transforma os médicos em cientistas”, afirma Gonçalo. “A ideia é dar a cada médico as ferramentas para fazer as suas próprias perguntas sobre o progresso dos seus pacientes, em vez de depender apenas de diagnósticos padrão – capacitá-los para medir, explorar e tomar decisões informadas com base nos dados que recolhem. É como a medicina personalizada, mas para os médicos. Já estamos a desenvolver um protótipo para o NHS (Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido) para rastrear distúrbios do movimento, como o Parkinson”.

Quanto ao futuro, espera que a FC possa manter vivo este espírito colaborativo, mesmo à medida que cresce e se consolida cada vez mais. “Há sempre o perigo de que a estrutura e a hierarquia substituam a liberdade de explorar”, afirma. “Mas a educação é o elo que mantém a cocriação unida. A FC percorreu um longo caminho em 20 anos, e espero que traga desta viagem as sementes de um novo tipo de educação científica aberta – uma educação enraizada na cooperação e na liberdade, para moldar não apenas o futuro da ciência, mas o futuro de como aprendemos.”

 

Gonçalo Lopes, Antigo Estudante de Doutoramento em Neurociências na Fundação Champalimaud, Atualmente Diretor da NeuroGEARS


Texto de Hedi Young, Science Writer & Content Developer da Equipa de Comunicação, Eventos & Outreach da Fundação Champalimaud
 

Coleção 20 Anos, 20 Histórias completa aqui.

 

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