25 Fevereiro 2021

Cancro e COVID-19: vacinar, vacinar, vacinar assim que possível

Foram três as mensagens-chave do webinar que decorreu na passada semana, por iniciativa da Fundação Champalimaud, sobre o impacto da COVID-19 nos doentes oncológicos. Em primeiro lugar, excepto raras excepções, todos os doentes deviam vacinar-se. Em segundo, é possível articular, caso a caso, o timing da vacinação com o tratamento oncológico. Por último, o diagnóstico precoce do cancro, quando disponível, não deve ser adiado por medo da contaminação pelo SARS-CoV-2.

Cancro e COVID-19: vacinar, vacinar, vacinar assim que possível

O painel contou com três especialistas da casa: o imunologista Thiago Carvalho e as oncologistas Fátima Cardoso, directora da Unidade de Mama do Centro Clínico Champalimaud, e Cristina João, médica hematologista da Unidade de Hemato-oncologia e que lidera o Laboratório de Investigação sobre Linfoma e Mieloma da Champalimaud Research.

O webinar começou com uma apresentação sobre o vírus e as diversas vacinas contra o SARS-CoV-2 por Thiago Carvalho. De seguida, o canal de comunicação com o público – composto por algumas centenas de participantes – foi aberto para perguntas. Com base nas preocupações expressas pelo público e pelos próprios painelistas, eis a lista de perguntas e respostas que esperamos permitam esclarecer os doentes com cancro sobre algumas das mais frequentes questões que os preocupam face à pandemia de COVID-19.   

Os doentes oncológicos podem ser vacinados contra a COVID-19?

Podem e devem. Aliás, as duas oncologistas concordaram em dizer que os doentes oncológicos recentemente diagnosticados ou com tratamento de ataque em curso – ditos “activos” – deveriam fazer parte dos grupos de vacinação prioritários, uma vez que, se forem infectados pelo vírus SARS-CoV-2, apresentam um risco acrescido para desenvolver uma forma grave ou mesmo letal de COVID-19. 

Por que é que o SNS não considera os doentes oncológicos como prioritários para a vacinação? 

“Os doentes oncológicos em fase de tratamento activo (quimioterapia, radioterapia, cirurgia) deveriam, na minha opinião, ter sido incluídos na Fase 1 do plano de vacinação”, afirma Fátima Cardoso. Quanto aos doentes que já se encontram em fase de tratamento de manutenção ou de seguimento, na opinião de Fátima Cardoso deveriam estar incluídos na Fase 2. 

Quem teve um cancro no passado também apresenta um risco aumentado de complicações e mortalidade por COVID-19?

Não. As pessoas que tiveram um cancro há anos e sobreviveram podem ser classificadas segundo os outros critérios relevantes (e não por terem tido cancro).   

Não seria mais prudente vacinar primeiro as pessoas imunitariamente mais fortes para criarem imunidade de grupo, que então protegeria as pessoas com cancro em tratamento activo ou de manutenção, cujo sistema imunitário é mais fraco?

“Se eu pudesse apagar uma expressão da consciência colectiva, seria a expressão ‘imunidade de grupo’”, diz Thiago Carvalho. “É um tema fascinante e complexo, óptimo para um projecto científico, mas péssimo enquanto abordagem de política pública. Também é uma meta errada. Como vemos agora com o aparecimento de novas variantes, os vírus e as populações humanas estão envolvidos num elaborado jogo do gato e do rato. As vacinas são boas ratoeiras, mas isso não significa que devamos deixar bocados de queijo espalhados pelo chão.” Neste momento, nem sequer há dados que nos permitam ter a certeza de que as pessoas vacinadas não albergam o vírus apesar de estarem elas próprias protegidas. Não sabemos, portanto, se poderão ou não infectar pessoas não vacinadas.

As vacinas de ARN são realmente seguras?

Não temos razão para estarmos seriamente preocupados. Existem vários tipos de vacinas. Umas contêm o vírus causador da doença em estado atenuado ou inactivo e são usadas há mais de cem anos. Outras são vacinas de “vector adenoviral”, em que o ingrediente vacinante é transportado para as células do corpo por uma “casca” de adenovírus (vírus da constipação) incapaz de causar qualquer doença e que funciona apenas como “veículo”, um meio de transporte do elemento que irá suscitar a resposta do sistema imunitário ao vírus que se pretende combater. É o caso de algumas vacinas contra o vírus do Ébola. Por último, há as vacinas de ARN que, como salientou Thiago Carvalho, têm sido as que mais preocupações suscitam na opinião pública por serem as mais recentemente desenvolvidas e não existirem dados suficientes sobre elas.

Como explicou Thiago Carvalho, ao contrário do que as pessoas pensam, a tecnologia das vacinas de ARN, que começou a ser desenvolvida por muitas empresas, especificamente para lutar contra o cancro, tem já mais de uma década. “Este tipo de vacinas já passou por vários ensaios clínicos e nunca teve problemas de segurança”, diz Thiago Carvalho. Porém, a técnica demonstrou ser pouco eficaz contra o cancro e apenas continuou a ser estudada por algumas empresas com vista ao desenvolvimento de vacinas contra vários outros tipos de doenças.

Foi a pandemia do SARS-CoV-2 que revelou a grande eficácia destas vacinas contra este vírus. E o conhecimento acumulado ao longo de anos foi uma das razões pelas quais o desenvolvimento de vacinas de ARN contra a COVID-19 foi feito em tempo recorde. Em particular, não foram necessários anos de testes pré-clínicos, visto já terem sido realizados com outros coronavírus a partir de 2003, aquando da epidemia de SARS-CoV-1 (ex-SARS) que teve lugar na Ásia e, mais tarde, na altura do surto do coronavírus MERS. Portanto, em Março de 2020, foi possível iniciar imediatamente ensaios conjuntos de Fase 1 e 2 das vacinas de ARN contra o SARS-CoV-2, que envolveram centenas de voluntários. É muito importante notar aqui que nenhuma das etapas dos obrigatórios testes de segurança em humanos foi omitida. 

Mas o que realmente acelerou todo o processo foi algo totalmente diferente. “Lembro-me de estar convencido, naquela altura, de que era impossível ter uma vacina pronta no fim de 2020”, disse Thiago Carvalho. “Se conseguimos ter resultados tão claros em poucos meses foi porque a pandemia ficou totalmente descontrolada no Ocidente”. A disseminação do vírus nos EUA, no Brasil, no Reino Unido, etc., foi tão vertiginosa que depressa se conseguiu ver, ao testar as diversas vacinas em dezenas de milhares de voluntários, que elas eram altamente eficazes na protecção contra o vírus. Na China e noutros países que tinham conseguido controlar a transmissão do vírus na população, isso teria demorado anos, precisamente por não haver altos níveis de transmissão. “Foi esse o nosso contributo: o descontrolo da pandemia nos nossos países…”, ironizou Thiago Carvalho. Ao mesmo tempo, continuaram a ser recolhidos dados sobre a segurança das vacinas ARN e não foi detectado qualquer risco imprevisto de segurança.

Qual é o melhor tipo de vacina para os doentes oncológicos?

Em Portugal, o Plano de Vacinação prevê por enquanto apenas dois tipos de vacinas: de ARN (Pfizer e Moderna) e de vector adenoviral (AstraZeneca). A sua eficácia e segurança são equivalentes, embora subsistam algumas dúvidas quanto à “idade limite” para receber a vacina da AstraZeneca. 

O factor determinante da escolha é a disponibilidade de cada tipo de vacina, disse Thiago Carvalho. Em Portugal, não existem recomendações e não há escolha. 

Quando um doente em tratamento ou prestes a iniciar tratamento contra o cancro é infectado pelo vírus, é preciso interromper ou adiar o tratamento?

“Nem sempre”, responde Cristina João. “A decisão tem de ser feita com base na sintomatologia da COVID-19 em cada caso e o tipo de tratamento oncológico”. Por exemplo, há tratamentos imunoestimulantes que não interferem com a vacina contra o SARS-CoV-2. Já no caso de quimioterapias muito imunossupressoras é indicado parar o tratamento até a infecção viral ter passado, para dar todas as hipóteses ao sistema imunitário de lutar contra a infecção.

Por que é que os anticorpos contra o vírus da COVID-19 se esgotam tão rapidamente após a vacinação?

Os anticorpos não se esgotam. Um pequeno stock de reserva fica “armazenado” nas células do sistema imunitário uma vez terminada a fase aguda da imunização, pronto a montar a defesa caso o vírus ataque novamente.

O que acontece ao ARN do vírus que foi injectado?

O ARN do vírus, após ter sido utilizado pelas células imunitárias para fabricar a proteína spike do vírus, cuja presença irá desencadear a resposta do sistema imunitário, é destruído pela maquinaria celular da pessoa vacinada.

O tratamento oncológico deve ser interrompido para fazer a vacinação? 

Não necessariamente. Existem recomendações internacionais sobre quando vacinar os doentes em tratamento activo. Se o doente estiver a fazer quimioterapia, a vacina não irá estimular devidamente o sistema imunitário contra o vírus. Neste caso, pode ser conveniente esperar 10 dias e vacinar entre dois ciclos de quimioterapia. “Mas esta é uma decisão que se toma caso a caso”, ressalva Cristina João.

No caso do cancro da mama e da próstata, os tratamentos de hormonoterapia não afectam a vacinação, acrescenta Fátima Cardoso – e portanto não precisam de ser interrompidos. O mesmo é válido para a imunoterapia, que estimula o sistema imunitário, quando não é utilizada em conjunto com quimioterapia. A radioterapia também pode ser articulada com a vacinação.

Em resumo, é essencial determinar o melhor timing para a vacinação, mas isso não invalida a necessidade de vacinar os doentes oncológicos, repetem mais uma vez as médicas. 

Como é possível garantir o sucesso da vacinação nos doentes imunocomprometidos?

“Nem sempre sabemos se a vacina vai ser eficaz, se os doentes com cancro vão conseguir criar imunidade”, disse Cristina João Mas devem vacinar-se, insistiu.

O pedido de vacinação é feito pelo oncologista?

Não. Trata-se de um processo centralizado a nível nacional. Mas é o oncologista quem deve decidir, caso a caso, se é preciso ou não interromper a quimioterapia. E embora a resposta imunitária possa ser mais fraca se a quimioterapia não for interrompida, a vacina poderá, mesmo assim, evitar que o doente contraia as formas mais graves e potencialmente letais da COVID-19. 

Há situações em que a vacinação de um doente oncológico é contra-indicada?

Sim. Estão excluídos da vacinação os doentes (oncológicos ou não) com alergias graves a algum dos ingredientes das vacinas. 

Os doentes com doenças auto-imunes podem ser vacinados?

No caso de certas doenças auto-imunes graves, vacinar pode não ser a melhor estratégia. Mas isso tem de ser discutido com o médico que acompanha a doença auto-imune.

Os doentes com leucopenias podem ser vacinados?

Há diversos tipos de leucopenias e nem todas as leucopenias significam que a contagem de leucócitos do doente oncológico seja zero, diz Cristina João. No caso dos doentes com leucopenias e linfopenias resistentes, é preciso escolher a melhor altura para a vacina conseguir desafiar o sistema imunitário.

Uma pessoa que não reage bem à vacina da gripe pode tomar a vacina contra a COVID-19?

A vacinação contra a COVID-19 pode provocar, tal como a da gripe, sintomas, em geral ligeiros, tais como dor no local de injeção, fadiga, dor de cabeça, dor muscular, calafrios, dores articulares e febre. 

Que tipo de efeitos secundários podem surgir nos 30 minutos após a toma da vacina? São tratados no momento ou podem requerer tratamento hospitalar?

O efeito secundário mais grave, mas bastante raro, é o choque alérgico à vacina, também chamado choque anafilático. É a principal razão pela qual as pessoas devem permanecer no centro de vacinação durante 30 minutos a seguir à toma da vacina. O choque anafilático controla-se rapidamente e em segurança com fármacos disponíveis no centro de vacinação e administrados pelo pessoal de saúde.

O rastreio oncológico pode ser adiado?

De forma alguma, disse Fátima Cardoso. Os rastreios do cancro da mama e do cancro colorectal foram suspensos durante a primeira fase da pandemia. Em 2020, os exames de diagnóstico oncológico realizados em Portugal diminuíram em 40%. “Agora, essa actividade voltou a retomar, mas o processo está mais lento”, disse Thiago Carvalho. 

“Vamos pagar caro esse adiamento, nos próximos anos”, salientou Fátima Cardoso, quando começarem a aparecer muitos cancros em fases mais avançadas por terem sido diagnosticados mais tarde.

A médica pediu por isso encarecidamente às pessoas para não continuarem a adiar mamografias e colonoscopias. “O diagnóstico precoce é fundamental”, disse. “Começa a haver alguma disponibilidade nos Centros de Saúde. Não tenham medo de ir fazer rastreios por medo da COVID-19. “E se não receberem resposta à primeira, não desistam. Insistam.”

Por Ana Gerschenfeld, Science Writer da Fundação Champalimaud.
Sessão Completa - Webinar "Impacto da COVID-19 nos doentes oncológicos" (in Portuguese)
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