19 Novembro 2020

Começou a guerra contra o cancro do pâncreas

O cancro do pâncreas é uma doença rara, que representa 3% de todos os casos de cancro, e durante décadas foi uma doença negligenciada. Mas não é apenas um dos tipos mais letais de cancro, como também a sua incidência tem vindo a aumentar substancialmente nos últimos tempos. Os peritos do mundo inteiro já perceberam que é urgente encontrar novos tratamentos e métodos de diagnóstico precoce para este cancro – e também perceberam que é essencial que cientistas e médicos unam forças para ganhar a guerra contra ele. O futuro Botton-Champalimaud Pancreatic Cancer Centre, em Lisboa, irá em breve juntar-se a este esforço global. Segundo a Fundação Champalimaud, será “o primeiro no mundo simultaneamente dedicado à investigação e ao tratamento desta doença”.

Botton-Champalimaud Pancreatic Cancer Centre

A história de Randy Pausch é ao mesmo tempo trágica e nobre. Pausch era um professor norte-americano de informática e um craque da realidade virtual na Universidade de Carnegie-Mellon, em Pittsburgh, nos EUA, que morreu de cancro do pâncreas em Julho de 2008, aos 47 anos de idade.

Na Carnegie-Mellon, existia uma tradição que permitia que os professores “fingissem” que estavam a morrer e dessem uma “última aula” para transmitir para a posteridade, aos seus alunos e ao público, as suas mais relevantes lições de vida. Mas em Novembro de 2007, quando Pausch subiu ao palco para proferir a sua palestra, optou em vez disso por falar à assistência de um tema muito pessoal e emocional: a sua doença. Restava-lhe pouco tempo de vida, tinham-lhe dito os seus médicos. A palestra não era sobre uma morte a fazer de conta, mas sobre a sua própria morte iminente. Esta última aula tornou-se rapidamente famosa online e viria a ser editada em livro.

A última realização de Pausch foi tornar-se um activista da promoção da investigação e de novos tratamentos contra o cancro do pâncreas – e, nas semanas que antecederam a sua morte, a 13 de Março de 2008, e apesar da deterioração do seu estado de saúde, foi a Washington participar numa audiência sobre cancro pancreático perante uma comissão do Congresso dos Estados Unidos.

Falou sem rodeios, declarando que ninguém falava deste cancro porque as suas vítimas morriam demasiado depressa. Os mais novos e mais inovadores cientistas não estão interessados no assunto porque não há dinheiro para investigação nesta área. Se nada mudar, nunca haverá uma cura. A quimioterapia e a cirurgia já não chegam, o futuro está na genética. Com financiamento adequado para a investigação, Pausch acreditava que seria possível desenvolver uma cura até os seus filhos pequenos se tornarem adultos.

Segundo dados do Instituto Nacional do Cancro norte-americano (NCI), em 1999 o montante total dos fundos públicos atribuídos, nos EUA, à investigação em cancro do pâncreas era de apenas... 17,3 milhões de dólares. É verdade que o financiamento tinha subido para 153 milhões de dólares em 2016, em parte graças à acção do grupo activista Pancreatic Cancer Action Network (ou PanCan). Doações privadas substanciais também começaram a chegar em resposta aos apelos do PanCan.

Contudo, em comparação com o cancro da mama, por exemplo, que atingiu 516,2 milhões de dólares vindos do NCI nesse mesmo ano de 2016, a investigação na área do cancro do pâncreas tinha – e tem ainda – um financiamento gravemente insuficiente. E esta disparidade torna-se ainda mais flagrante quando se considera que, nos EUA, o cancro do pâncreas representará em breve a segunda maior causa de morte por cancro, ultrapassando os cancros da mama, do cólon e da próstata.

Como se o facto de ser extremamente letal e difícil de diagnosticar de forma precoce não bastasse, a incidência global de cancro do pâncreas, que em tempos já foi considerada uma doença rara, tem vindo a aumentar acentuadamente nos últimos anos. Hoje, muitos de nós conhecem pessoalmente uma ou mais pessoas – amigos, familiares, colegas – que perderam a batalha contra o cancro do pâncreas. Em 2018, segundo o Globocan (o Observatório Global do Cancro da Organização Mundial da Saúde), 458.918 novos casos de cancro pancreático e 432.242 mortes foram registados a nível mundial, sendo que mais de metade destas mortes aconteceram nos países mais desenvolvidos.

“A incidência do cancro pancreático está a crescer no mundo inteiro e o cancro pancreático já é a quarta maior causa de morte associada ao cancro na Europa”, diz Carlos Carvalho, o médico oncologista que dirige a Unidade de Tumores Digestivos no Centro Clínico Champalimaud, em Lisboa. “Nos próximos 10 a 20 anos, estima-se que a incidência à escala mundial do cancro pancreático poderá vir a aumentar em 70%, tornando-se assim a segunda maior causa de morte por cancro na Europa e nos Estados Unidos.” Uma situação alarmante e provavelmente associada ao envelhecimento da população, ao tabagismo, ao consumo excessivo de álcool e às actuais epidemias de obesidade e de diabetes do adulto, concorrem em dizer os especialistas.    

O cancro pancreático na Fundação Champalimaud

“Infelizmente”, diz Carlos Carvalho, “ainda não existem testes de rastreio eficazes que permitam detectar precocemente o cancro pancreático na população geral, e a esmagadora maioria dos cancros pancreáticos não está associada a qualquer grupo de alto risco em particular nem a qualquer situação hereditária específica”. No entanto, as pessoas com um historial de familiares próximos que tiveram a doença e os doentes com alguns tipos de lesões do pâncreas podem também apresentar um risco acrescido de desenvolver cancro pancreático. Actualmente, o Centro Clínico Champalimaud já oferece às famílias e aos doentes com risco acrescido um programa específico de vigilância para tentar prevenir ou diagnosticar a doença o mais precocemente possível.

De facto, nas primeiras fases do cancro do pâncreas, os sintomas podem, frequentemente, ou não existir ou não ser suficientemente específicos. A maioria dos doentes só desenvolve sintomas em fases mais avançadas da doença, que podem incluir cansaço, perda de peso e massa muscular, perda de apetite, náuseas, icterícia, dores abdominais e o aparecimento recente de diabetes. Na ausência de testes eficazes de diagnóstico e com tão poucos sintomas indicadores precoces, mais de 80% dos cancros do pâncreas são diagnosticados numa fase avançada, quando os doentes já apresentam metástases noutros órgãos, ou quando o tumor primário já se tornou demasiado grande ou demasiado difícil de remover cirurgicamente.   

Um outro desafio colocado pelo cancro pancreático é a agressividade biológica do tumor. Nas fases mais avançadas, a disseminação do cancro para outros órgãos torna-se mais difícil de controlar – e os tratamentos são bastante limitados. De facto, mais de metade dos doentes que procuram ajuda médica já apresentam metástases. E mesmo quando é possível remover o tumor, ainda existe um risco elevado de permanecerem algumas células tumorais no corpo do doente, que poderão levar ao desenvolvimento de metástases nos primeiros anos após a cirurgia.

Com isto em mente, cientistas da Fundação Champalimaud já estão a explorar novas maneiras de perceber por que é que o cancro do pâncreas tem uma particular tendência a desenvolver metástases rapidamente. “Bruno Costa-Silva e o seu laboratório de Oncologia dos Sistemas estão actualmente a estudar de que forma umas minúsculas partículas libertadas pelo cancro, chamadas “exossomas”, poderão estar envolvidas nesta disseminação metastática precoce”, diz Carlos Carvalho. “A nossa expectativa é que, visto que estes exossomas também contêm informação genómica – e não só – sobre as células cancerosas, este tipo de investigação possa ajudar a explicar por que é que o cancro pancreático é tão agressivo – e até contribuir para permitir um diagnóstico mais precoce e o desenvolvimento de novas alternativas terapêuticas.” 

A falta de testes de diagnóstico, a escassez de sintomas iniciais e a tendência agressiva para o desenvolvimento precoce de metástases fizeram com que, a taxa global de sobrevivência ao fim de cinco anos dos doentes diagnosticados com cancro do pâncreas se situasse abaixo dos 10% há poucos anos, ao passo que ela atingia 90% para o cancro da mama (dados do SEER / NCI sobre doentes em todos os estádios diagnosticados entre 2010 e 2016). No entanto, na última década, tem havido alguns avanços significativos. Existem hoje regimes de quimioterapia  capazes de induzir uma melhor resposta da doença e que estão a ser cada vez mais utilizados para reduzir o volume do tumor de forma a aumentar a sua operabilidade e também para diminuir a probabilidade de metastização. “Actualmente, graças à combinação de quimioterapia mais eficaz e de boa cirurgia pancreática a taxa de sobrevivência ao fim de cinco anos dos doentes cujo cancro pancreático foi removido cirurgicamente subiu para acima dos 40%”, diz Carlos Carvalho. “Neste grupo particular de doentes, muitos têm agora uma hipótese real de sobreviver durante muito tempo e até de serem considerados curados.”

Uma das maiores dificuldades da cirurgia pancreática é a localização profunda do pâncreas, entre o estômago e a coluna vertebral, e a sua proximidade a grandes vasos abdominais vitais. O cancro pancreático cresce frequentemente à volta destes vasos, dificultando e mesmo impossibilitando a remoção completa do tumor. Nestes tumores, ditos localmente avançados, está a ser usada quimioterapia pré-operatória para reduzir o tumor e para permitir que o doente possa eventualmente ser submetido à cirurgia. Mas os cirurgiões poderão ainda ter de retirar alguns vasos desta área sensível, algo que exige sempre muita experiência e grande perícia cirúrgica.

“Na Fundação Champalimaud, a nossa equipa exclusivamente dedicada à cirurgia do pâncreas possui experiência em todos os tipos de cirurgia pancreática, das minimamente invasivas às mais complexas e exigentes ressecções vasculares do pâncreas quando estes vasos vitais estão envolvidos”, diz Carlos Carvalho. “As nossas equipas multidisciplinares de investigação e clínica procuram oferecer aos doentes com cancro pancreático diversas opções de tratamentos combinatórios e individualizados que podem incluir cirurgia, quimioterapia, radioterapia e mesmo terapias mais inovadoras que podem necessitar de uma caracterização genómico-molecular ainda mais pormenorizada do tumor, e a inclusão do doente em ensaios clínicos específicos.”

O futuro: o Botton-Champalimaud Pancreatic Cancer Centre

Porém, a taxa global de sobrevivência ao fim de cinco anos, dos doentes diagnosticados com cancro do pâncreas, ainda é hoje muito baixa. Nos Estados Unidos, atingiu muito recentemente os 10%; na Europa, ronda os 9%.

Em 2018, a Fundação Champalimaud anunciou que graças a uma doação de 50 milhões de euros feita por Mauricio Botton Carasso e Charlotte Botton, tinha sido decidida a abertura de um centro dedicado à guerra contra o cancro pancreático. As instalações multidisciplinares de investigação e clínica serão alojadas num novo edifício, contíguo ao “navio-mãe” do Centro Champalimaud. A construção do Botton-Champalimaud Pancreatic Cancer Centre deverá ficar concluída em Outubro 2021.

“O lançamento do Botton-Champalimaud Pancreatic Cancer Centre é uma clara resposta à necessidade urgente de concretizar um investimento mais coerente e dedicado, que possa vir a oferecer melhores opções terapêuticas aos doentes com cancro pancreático”, diz Carlos Carvalho. “O novo centro reunirá uma equipa internacional de clínicos e investigadores clínicos num ambiente único, equipado com laboratórios e plataformas de última geração para abordar perguntas ainda sem resposta sobre a biologia e a evolução clínica do cancro pancreático, e focado constantemente no desenvolvimento de novas terapias promissoras e de ensaios clínicos inovadores que possam  oferecer expectativas concretas e reais, capazes de mudar o futuro dos doentes com cancro pancreático.”

A estratégia do Botton-Champalimaud Pancreatic Cancer Centre: os melhores cuidados, a investigação de “fusão” e os tratamentos inovadores

Hoje em dia, a investigação e os novos tratamentos na área do cancro dependem crucialmente da possibilidade de juntar investigadores clínicos e “translacionais” do cancro. Esta “fusão” de trabalho e de conceitos é diariamente exemplificada pela colaboração de oncologistas como Carlos Carvalho e de cientistas em oncologia como Markus Maeurer, que lidera o laboratório de  de Imunoterapia e Imunocirurgia da Fundação Champalimaud. Ambos levantam ainda outra questão, ainda misteriosa, acerca do cancro do pâncreas: “Por que é que tantos doentes não respondem à maioria dos fármacos anti-cancro disponíveis?”.   

No laboratório de Markus Maeurer, células provenientes de cancros do pâncreas estão a ser sistematicamente colhidas, juntamente com as células imunitárias correspondentes, e submetidas a uma profunda análise molecular, genómica, funcional e imunitária de forma a obter uma espécie de “impressão digital” associada ao sucesso e ao fracasso dos diversos tratamentos. “Esperamos que isto possa ajudar a perceber melhor por que o cancro pancreático é tão resistente aos tratamentos actuais e qual poderia vir a constituir uma estratégia alternativa”, diz Carlos Carvalho.

Actualmente, uma das áreas mais promissoras na luta contra o cancro é a imunoterapia. “Para alguns tipos de tumores, a imunoterapia do cancro já se tornou uma das principais opções terapêuticas”, diz Markus Maeurer. Mas infelizmente, apenas um pequeno número de doentes com cancro do pâncreas respondem aos “fármacos” de imunoterapia disponíveis. Todavia, existem novos tipos de imunoterapia e novas formas de combinar a imunoterapia com outros tratamentos do cancro, sejam eles convencionais ou mais avançados.  

Uma destas novas modalidades de imunoterapia é a chamada “imunoterapia celular”, na qual as células imunitárias são colhidas, multiplicadas e a seguir activadas ou direccionadas para destruir as células cancerosas de um dado doente. Alguns estudos clínicos já mostraram que a imunoterapia celular consegue controlar eficazmente a doença em doentes com determinados tipos de cancro tais como o melanoma, certas formas de leucemias ou linfomas e em doentes com cancro do colo do útero. 

“A imunoterapia celular exige laboratórios especificamente concebidos para possibilitar a colheita e manipulação das células imunitárias num ambiente estéril, seguro e controlado”, diz Markus Maeurer. “Mas apenas um punhado de centros de cancro no mundo dispõem deste tipo de instalações altamente especializadas de ‘boa prática de fabrico’ ou ‘GMP’ [em inglês, good manufacturing practice] de células destinadas à imunoterapia. Um laboratório GMP já está a ser instalado no novo Botton-Champalimaud Pancreatic Cancer Centre. 

Como explica ainda Markus Maeurer, isto não só irá permitir que os cientistas investiguem um dos tipos mais promissores de imunoterapia celular, mas também que os médicos colham e preparem as células imunitárias que poderão efectivamente ser usadas para tratar de forma individualizada doentes com cancro pancreático. “Diversos tipos de células imunitárias podem ser produzidas nestes laboratórios GMP”, faz notar Markus Maeurer: seja células que reconhecem as células tumorais e infiltram os tecidos próximos, chamadas linfócitos infiltrantes de tumores (TIL); seja células imunitárias geneticamente manipuladas, dirigidas contra alvos específicos do tumor e chamadas ‘linfócitos T com receptor quimérico de antigénio’ (células CAR-T).” Um dos objetivos visados no Botton-Champalimaud Pancreatic Cancer Centre será explorar a utilização destas inovadoras imunoterapias celulares através de novos ensaios clínicos dedicados especificamente a doentes com cancro do pâncreas.

Markus Maeurer também refere um outro tipo promissor de imunoterapia: a utilização de vacinas anti-tumorais. Algumas destas vacinas baseiam-se na administração de substâncias sintetizadas no laboratório que, só por si, são incapazes de induzir cancro, mas que contêm antigénios (sintéticos) idênticos a alguns dos antigénios específicos do tumor - isto é, presentes à superfície das células cancerosas. Ora, os antigénios são moléculas que são reconhecidas pelo sistema imunitário como estranhas ao corpo e podem assim ser atacadas pelo sistema imunitário. Por isso, os antigénios sintéticos da vacina poderão ajudar a estimular as células imunitárias do próprio doente, fazendo com a que estas ataquem as células do cancro portadoras dos mesmos antigénios tumorais que a vacina. Tal como outros centros internacionais de estudo do cancro, a Fundação Champalimaud já desenvolveu investigação nesta área e está a estabelecer colaborações com vista à organização de futuros ensaios clínicos de vacinas para doentes com cancro do pâncreas.

Um último tipo de imunoterapia a destacar, que também irá ser explorado no Botton-Champalimaud Pancreatic Cancer Centre, é a infusão de “citoquinas”, proteínas que constituem sinais químicos importantes entre as células imunitárias e outras células do corpo. “Algumas citoquinas parecem promissoras para o tratamento dos doentes com cancro pancreático porque alertam especificamente as células imunitárias, fazendo-as combater melhor as células cancerosas, e tornam as células imunitárias mais resistentes aos sinais negativos produzidos pelas células cancerosas”, diz Markus Maeurer.

“A luta eficaz contra o cancro pancreático requer a sensibilização da sociedade, visão estratégica, determinação e recursos, mas também o reconhecimento de que este esforço global contra o cancro pancreático deve ser partilhado através de parcerias internacionais multidisciplinares”, acrescenta Markus Maeurer. De facto, o Botton-Champalimaud Pancreatic Cancer Centre já desenvolveu as primeiras parcerias estratégicas com outros centros dedicados ao cancro na Ásia (Universidade de Shandong, na China), na Europa (Instituto Gustave Roussy, em França) e nos EUA (Centro do Cancro da Universidade de Pittsburgh). “Estas parcerias envolvem a partilha aberta de conhecimento, de competências clínicas e investimentos comuns na investigação e nos protocolos clínicos, esperando-se fortemente que possam resultar em perspectivas mais optimistas para o futuro dos doentes diagnosticados com cancro pancreático”, conclui Carlos Carvalho. 

 

Por Ana Gerschenfeld, science writer da Fundação Champalimaud (com o Dr. Carlos Carvalho e o Prof. Markus Maeurer).

 

Carlos Carvalho
Markus Maeurer
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