Tudo começou com uma pequena peça de teatro.
Três mulheres que trabalham em neurociências entram em palco. Têm de decidir qual será o tema do próximo Evento Ar. Depois de alguma discussão, escolhem o teatro. Como é que as neurociências explicam o que acontece quando vemos actores a representar? O trio veste batas brancas para melhor pensar cientificamente.
Começam por ler toda a literatura científica relativa ao teatro, “para ver se alguém já tinha pensado neste problema e chegado a alguma conclusão”. Depois fazem experiências e analisam os dados.
Concebem uma fórmula destinada a explicar tudo: “O teatro é igual a: A representa B enquanto C assiste”. Mas esta fórmula apenas diz o óbvio. “Fizemos todo este trabalho para obter 'A representa B enquanto C assiste'?”, exclamam, desiludidas.
“E o que se passa com A?”, reflectem as cientistas. “Pobre A! Perdemo-la! Exactamente! Quem é A quando está a fazer de B? Onde pára a sua identidade?”. Torna-se óbvio para elas que aquilo a que chamamos “sentido de si” tem de ser parte da resposta à sua pergunta científica.
Há outras coisas que também têm de estar envolvidas: as emoções, a empatia, o sentimento de recompensa. “Neurónios-espelho!”, exclama uma das investigadoras. “Aqueles que são activados quando realizamos uma acção, mas também quando vemos outros a realizar a mesma acção? Talvez mecanismos semelhantes estejam envolvidos quando nos emocionamos enquanto vemos outros a emocionar-se em palco!”
“Talvez o teatro seja realmente sobre ligações humanas”, concluem, ”sobre aquilo que temos em comum e o que nos distingue. A interpretação teatral mexe com a nossa empatia para com os outros para estabelecer uma ligação a outras realidades. E assim podemos puxar-vos para esta realidade. Vocês podem entrar nesta história! Podemos fazer parte das histórias uns dos outros.”
As três actrizes-cientistas – que conseguiram efectivamente, durante alguns minutos, puxar-nos para a sua história – são, na verdade, as três anfitriãs da noite: Daniela Pereira, investigadora do Laboratório de Disfunção dos Circuitos Neurais da Fundação Champalimaud (FC); Luisa Vasconcelos, líder do Laboratório de Comportamento Inato da FC; e Maria Vito, responsável por uma das plataformas da FC de suporte à investigação.
Neurónios-espelho por todo o lado
O evento contou com dois oradores convidados – dois cientistas conhecidos pelo seu trabalho sobre empatia e sentido de si. O primeiro foi Christian Keysers, um neurocientista franco-alemão do Instituto Holandês de Neurociências. O seu trabalho alargou a noção de neurónios-espelho do sistema motor para os sistemas táctil e límbico, melhorando a nossa compreensão das bases neurais da empatia, como salientou Daniela Pereira.
Keysers começou por projectar uma cena famosa de “Dr. No”, o primeiro filme de James Bond, de 1962, em que o actor Sean Connery dá de caras, na cama, com uma tarântula. “O que eu acho notável na nossa experiência cinematográfica”, disse Keysers, ”é que quando vemos James Bond a lutar com uma tarântula, não compreendemos apenas o que ele está a passar. Ficamos tensos nós próprios. Por vezes, começamos a suar. E para quem não gosta mesmo de aranhas, vê-lo com a aranha em cima do corpo pode ser quase insuportável”.
E continuou: “A questão para mim é o que acontece no nosso cérebro e faz com que não apenas vejamos e percebamos o que está a acontecer a Bond, mas que nos tornemos parte do drama que está a viver.” Porque é que, quando vemos a aranha a rastejar no peito de Bond, o nosso cérebro transforma a experiência em algo que nós próprios sentimos?
Keysers descreveu então o seu extenso trabalho sobre os neurónios-espelho associados a tarefas motoras, sensações (ser tocado) e emoções (nojo e dor) – em macacos, humanos e ratos. Neurónios-espelho foram encontrados, respectivamente, no córtex motor no caso das acções; no sistema somatossensorial no caso das sensações; e, no caso das emoções, no sistema límbico, na ínsula e no córtex cingulado anterior, regiões cerebrais associadas às respostas emocionais.
Estes neurónios podem estar envolvidos nos mecanismos neuronais que originam a empatia. “Imitar a acção dentro de nós permite-nos deixar de ver alguém apenas a fazer algo e começar a sentir realmente aquilo por que essa pessoa está a passar. Temos um cérebro que está programado para transformar o que vemos os outros fazer na forma como nós próprios o faríamos”. Mais precisamente, acrescentou, projectamos na mente do outro o que faríamos e sentiríamos no seu lugar.
“Se formos muito parecidos com a outra pessoa, esta projeção é uma imitação muito boa do que se passa no outro, e sentimos realmente o que outro sente”, continuou Keysers. “É por isso que, nas peças de teatro ou nos filmes, o que é importante é fazerem-nos sentir que a personagem principal é alguém um pouco como nós, alguém do nosso 'in-group', e assim podemos realmente sentir empatia por ela.”
Para concluir a sua palestra, Keysers perguntou: será que controlamos realmente a nossa empatia ou que é algo que, simplesmente, nos acontece? A sua equipa estudou criminosos psicopatas e concluiu que eles fazem coisas terríveis porque não sentem a dor que infligem aos outros. Surpreendentemente, a equipa também mostrou que os criminosos psicopatas podem ser mais empáticos se fizerem um esforço nesse sentido. “O problema deles não é serem incapazes de sentir empatia, mas sim o facto de não usarem essa capacidade de forma tão espontânea como nós”, afirmou Keysers.
Mas o contrário também é verdade, como outras experiências mostraram: “A empatia não é algo que tenhamos em grande ou pequena quantidade. Não somos empáticos nem deixamos de ser; na verdade, temos a opção de, a cada instante, ligarmos ou desligarmos a empatia”, disse Keysers. “Penso que esta é uma responsabilidade que todos devemos levar muito a sério”.
A representação e o sentido de si
A segunda oradora foi Dwaynica Greaves, do Instituto de Neurociências Cognitivas do University College London, que investiga os efeitos da formação teatral no sentido de si dos actores.
“O que é o sentido de si?”, perguntou. “Escolhi a definição psicanalítica: é a capacidade de ter uma experiência consciente, pré-consciente e inconsciente de si próprio(a) enquanto entidade diferente das outras pessoas ou organismos vivos. Portanto, eu sei que sou eu, sei que não sou tu. Tu sabes que não és eu, eu sei que não sou este monitor, certo? O sentido desse “eu” até é mais profundo do que isso”, disse Greaves, “porque persiste mesmo enquanto sonhamos.”
Dois tipos interessantes de “eus” são o “eu” fenomenal, que é o “eu” corporal, o “eu” físico real que se pode ver, tocar, sentir. E há o “eu” narrativo – isto é, o nosso “eu” socialmente construído.
“Porquê estudar actores?”, perguntou Greaves. “Para além do facto de eu gostar genuinamente de teatro e de representar desde criança, há uma razão científica que explica o meu interesse pelos actores: eles utilizam muitas técnicas diferentes para entrarem nas personagens que interpretam”. No processo de aprenderem a representar, os actores utilizam os seus próprios “eus” fenomenais e narrativos para criar um “eu” fenomenal e um “eu” narrativo para a sua personagem.
Como é que um neurocientista pode medir o sentido de si? Quando analisou a literatura sobre o tema, Greaves descobriu que havia muita investigação que utilizava a fMRI (imagens por ressonância magnética funcional) para medir a actividade do cérebro. E, em particular, estudos mostraram que, numa área do cérebro chamada córtex pré-frontal medial (que desempenha um papel essencial na consciência de si), ouvir o nosso próprio nome provoca uma resposta neural mais forte do que ouvir qualquer outro nome. Claramente, trata-se do sentido si em acção.
“Não há muita investigação que tenha sido feita sobre teatro e neurociências”, afirmou. “Por isso, quisemos construir um grande estudo através da realização de um espectáculo de teatro real e da medição do cérebro dos actores durante o período de ensaio.” Será que os actores conseguem manipular o seu sentido de si quando actuam?
“Partimos da hipótese de que, quando um actor não está a representar, está a ser, basicamente, ele próprio”, explicou Greaves. “Por isso, a representação do seu próprio nome no córtex pré-frontal medial deve ser muito mais forte. Por outro lado, quando está a representar, essa resposta mais forte pode ser cancelada”.
Trabalhando com o Flute Theatre – uma companhia londrina especializada na criação de produções de Shakespeare para pessoas autistas – e utilizando dispositivos de imagiologia cerebral e algumas técnicas inovadoras (como a espectroscopia funcional por infravermelho próximo), os investigadores mediram a actividade cerebral de vários actores enquanto ensaiavam cenas de Sonho de uma noite de verão.
Descobriram que, durante a representação, a resposta neural dos actores à chamada do seu próprio nome não era tão forte como quando não estavam a representar. Este efeito foi registado numa área do cérebro próxima do córtex pré-frontal medial. Greaves observou que seria necessário um estudo maior e diferente para obter dados de melhor qualidade e melhor esclarecer a questão.
O que mais interessa Greaves neste trabalho é obter alguma informação sobre o que acontece aos actores, ao comportamento humano, durante as representações teatrais. Quais poderão ser as consequências de mexer com o sentido de identidade de uma pessoa? “Pergunto-me como é que a representação afecta as pessoas que têm de actuar e de viver a representação”, disse. “É isso que realmente impulsiona a minha investigação e o que faço”.
Teatro playback e grande final
Seguiu-se o grupo de teatro InVerso – três actores e um músico, liderados pela encenadora e actriz Elsa Maurício Childs, num espetáculo de “playback theater”.
O teatro playback é uma forma de improvisação em que pessoas do público contam uma história sobre as suas vidas, que é logo imediatamente encenada. Várias pessoas contribuíram com experiências pessoais, algumas delas comoventes.
Seguiu-se um resumo das respostas dadas online pelo público, aquando da sua inscrição no Evento Ar, às perguntas dos organizadores. Alguns números: cerca de 25% do público era composto por pessoas que trabalhavam em investigação científica; outras trabalhavam em teatro e cinema, ou em ambos; e as restantes noutras áreas. Muitas pessoas disseram que costumam ir ao teatro ou ao cinema pelo menos uma vez por ano.
Por último, as palavras que as pessoas associaram ao “teatro” nas suas respostas foram nomes específicos de actores ou do seu trabalho, movimento, dinamismo, interação física, entretenimento, riso, lazer, bem-estar, terapia, felicidade, comunicação e narração de histórias, espelho da vida, artificialidade e exagero. Também evocaram a empatia, as emoções, o aumento do autoconhecimento – e Shakespeare.
Uma mesa redonda encerrou o evento, com os oradores e organizadoras a juntarem-se no palco para fazer e responder a perguntas sobre o tema da noite.
Uma delas foi: o teatro pode afetar a nossa empatia ou influenciar as nossas capacidades empáticas? “Sou um pouco parcial para responder a esta pergunta, porque a forma de teatro que mais faço tem tudo a ver com empatia”, respondeu Childs. “Trata-se de ouvir uma história muito pessoal de alguém à nossa frente, de nos colocarmos no lugar dessa pessoa e de interpretarmos o que nos disse da melhor forma possível nesse momento, respeitando a sua nota mais profunda e quem aceitou expor-se ao contar-nos a sua história. Mas não me parece que isso afecte o nosso sentido de identidade. Acho que, na verdade, só o aumenta”.
Se voltarmos ao ‘eu’ narrativo de que falava antes”, disse Greaves, ”as interações com as pessoas à medida que atravessamos o mundo mudam-nos para o bem ou para o mal, moldam quem somos. Se assistirmos a uma peça de teatro, ou se estivermos envolvidos numa peça de teatro, isso também faz parte da nossa vida”. Por outras palavras, qualquer experiência pode potencialmente “mexer” com o sentido de si – não apenas o teatro.
Outra pergunta: ver uma peça de teatro ou um filme pode alterar as nossas capacidades empáticas? Esta pergunta foi dirigida especificamente a Keysers. A sua resposta: “Penso que o que é importante para desenvolver a empatia é o facto de a empatia poder ser gratificante. E muito poucas coisas são tão gratificantes como ver uma boa peça de teatro ou um bom filme em que nos abrimos à empatia. É através destas experiências positivas que nos abrimos ao que as outras pessoas pensam, e podemos realmente ir fundo, ouvir profundamente e comover-nos com os outros.”
“A empatia é boa ou má?”, foi outra questão colocada a Keysers. “A empatia não é boa nem má em termos absolutos. Depende sempre da situação”, respondeu.
“Se formos cirurgiões e formos demasiado empáticos, evitando fazer o que temos de fazer, isso é mau. Ser empático perante o sofrimento não ajuda a longo prazo. A empatia também pode ser usada para manipular os outros, como num anúncio que leva as pessoas a fumar mais.”
“Mas há muitas outras situações em que a empatia é incrivelmente importante”, acrescentou Keysers. “Por isso, penso que é fundamental aprender a perceber quando é que a empatia é boa e quando é má, activá-la quando é boa e garantir que a controlamos quando nos leva a fazer coisas erradas.”
E, por último, o que é que o teatro e as neurociências nos podem dizer sobre as interações quotidianas com as pessoas que nos rodeiam? “As neurociências ajudam a explicar o mundo de uma forma a que nós, leigos, não estamos habituados”, disse Childs. “Quanto ao teatro, penso eu, permite-nos viver as histórias de outras pessoas, sejam elas fictícias ou não. Somos seres sociais, por isso esta forma de arte é a base da vida.”
Text by Ana Gerschenfeld, Health & Science Writer of the Champalimaud Foundation.