As razões pelas quais um animal escolhe um caminho em detrimento de outro, ou se comporta de forma diferente dos demais, podem parecer enigmáticas. Mas uma equipa liderada pelo grupo de Claire Wyart no Instituto do Cérebro de Paris (ICM), em colaboração com o laboratório de Michael Orger na Fundação Champalimaud (FC), vem trazer agora novos dados sobre estas diferenças, revelando a relação dinâmica entre os estados internos de um animal e o seu ambiente.
Comportamento Animal em Várias Escalas Temporais
Estudos anteriores sobre movimento animal concentravam-se frequentemente em escalas temporais específicas. Por exemplo, movimentos de curta duração – como um desvio rápido para evitar um predador – estão ligados a circuitos neurais envolvidos em respostas rápidas a estímulos sensoriais. Em contrapartida, em escalas mais longas, observam-se comportamentos influenciados por mudanças nos estados internos ou objetivos que evoluem ao longo de horas ou dias.
O que torna este estudo, publicado na revista científica PNAS, único é a sua abordagem de ligação entre estas escalas, capturando uma “hierarquia” de padrões comportamentais que varia entre reações rápidas e estratégias de longo prazo. Através desta abordagem, os investigadores conseguiram identificar uma estrutura multiescala no comportamento do peixe-zebra, mostrando como os estímulos sensoriais, a experiência anterior e as características individuais moldam conjuntamente as escolhas de navegação dos peixes.
“Em investigações anteriores”, observa João Marques, investigador na FC, “identificámos que as larvas de peixe-zebra realizam 13 tipos distintos de movimentos, conhecidos como ‘swim bouts’, cada um com duração de cerca de 200 milissegundos. Embora este catálogo de movimentos tenha sido um importante avanço, não explica como os peixes-zebra alcançam objetivos de longo prazo como, por exemplo, encontrar comida ou explorar novos territórios.”
João Marques acrescenta: “Gautam Sridhar e Antonio Costa, no laboratório de Claire Wyart no ICM, reanalisaram o nosso conjunto de dados usando um novo método computacional, que permite medir de forma robusta a variabilidade de comportamentos das múltiplas escalas temporais, e descobriram que os peixes-zebra têm estratégias de navegação de longa duração que refletem estados internos ocultos. Surpreendentemente, estes estados comportamentais definem a individualidade dos peixes.”
Personalidades dos Peixes: Exploração do desconhecido vs. Exploração do familiar
O estudo revelou que os comportamentos dos peixes-zebra operam em diferentes escalas temporais, cada uma com o seu próprio padrão. Na escala temporal mais longa, o comportamento do peixe é definido pela frequência com que muda de direção, enquanto as preferências para mudanças na velocidade ou para virar à direita ou esquerda emergem nas escalas temporais mais rápidas. No conjunto, estes padrões revelam um equilíbrio entre exploração de novas áreas e exploração local, ou seja, permanecendo em áreas familiares e ricas em recursos. Notavelmente, peixes individuais mostraram preferências consistentes ao longo deste espectro, sugerindo “personalidades” ou tipos comportamentais únicos.
“Descobrir estes estados internos ocultos explica grande parte da variabilidade entre peixes individuais”, aponta João Marques. “Isto sugere que um fenómeno semelhante pode ocorrer no desenvolvimento de personalidades em animais mais sofisticados, como os humanos.”
Através de experiências simuladas em computador, os investigadores descobriram que estas tendências comportamentais eram adequadas a tarefas específicas. Por exemplo, alguns peixes eram mais hábeis em perseguir e capturar presas (exploração local/familiar), enquanto outros se destacavam na exploração de novos territórios (exploração do desconhecido).
A Experiência Impacta o Comportamento Individual
João Marques também explica que, “ao contrário dos comportamentos de curto prazo, como os swim bouts, estas estratégias de longo prazo não eram fortemente influenciadas pelo que o peixe estava a fazer no momento. Em vez disso, elas pareciam otimizar a forma como o peixe explorava o seu ambiente e eram moldadas por experiências passadas, particularmente na caça.”
Uma das descobertas mais surpreendentes foi como a experiência prévia de caça influenciou as estratégias de longo prazo dos peixes. Peixes que tinham sido expostos a presas mostraram uma forte preferência pela exploração local/familiar, passando mais tempo em áreas onde era provável encontrar alimento. “Os peixes aprendem com experiências anteriores a explorar melhor o mundo”, observa João Marques. “Esta aprendizagem não se limita a reações imediatas – ela molda as motivações internas e estratégias persistentes.”
Este insight destaca a importância da experiência na formação do comportamento, mesmo em organismos simples. Também sublinha como os estados internos podem prevalecer sobre estímulos sensoriais imediatos, conduzindo a diferenças individuais consistentes.
Abaixo da Superfície: Explorando os Caminhos Neurais
A descoberta destes estados internos ocultos abre novas oportunidades para compreender a base neural do comportamento. “Os próximos passos deste trabalho”, explica João Marques, “serão descobrir quais os mecanismos neurais que dão origem a estas estratégias de longo prazo e como se desenvolvem com base nas experiências anteriores dos peixes. Compreender isto pode ter implicações mais amplas sobre como personalidades e estratégias comportamentais se desenvolvem em animais mais complexos.”
E acrescenta: “O nosso estudo mostra que até mesmo criaturas simples, como o peixe-zebra, têm mundos internos complexos influenciados pelas suas experiências. É um lembrete do quanto ainda existe por descobrir sobre as mentes dos animais.”
Original PNAS paper here.
Legenda da imagem: Esta imagem mostra como larvas do peixe-zebra, representadas por pontos, se agrupam em sete grupos comportamentais distintos com base nos seus estados internos e experiências sensoriais. A exposição a predadores surge como um fator importante capaz de moldar estas diferenças comportamentais, revelando como a experiência despoleta a individualidade mesmo nas criaturas mais pequenas. Crédito pela imagem: Gautam Sridha.
Texto por Hedi Young, Science Writer and Content Developer da Equipa de Comunicação, Eventos & Outreach da Fundação Champalimaud.