15 Junho 2023

Da promessa à prática: uma dose de realidade para terapias psicadélicas

Os psicadélicos encontram-se numa importante encruzilhada na saúde mental, oferecendo a perspetiva de novos caminhos terapêuticos para lidar com várias condições mentais, desde a depressão resistente ao tratamento até à perturbação de stress pós-traumático (PSPT). No entanto, as suas propriedades de alteração da mente apresentam desafios éticos e clínicos únicos. Num artigo recentemente publicado na Nature Medicine, psiquiatras, psicólogos e psicoterapeutas destacam, por um lado, a importância de proteger os doentes durante estes estados vulneráveis ​​de consciência alterada e, por outro, a imperativa criação de estruturas regulatórias e esforços colaborativos para que possam ser atingidos, na sua plenitude, os potenciais benefícios deste emergente paradigma terapêutico.

Da promessa à prática: uma dose de realidade para terapias psicadélicas

A procura de terapias alternativas para transtornos de saúde mental difíceis de tratar trouxe à superfície uma série de psicadélicos, como a psilocibina, presente nos “cogumelos mágicos”, e o LSD, substâncias até agora mais associadas a uma contracultura do que à prática clínica. Ao lado de psicadélicos “atípicos” como a ketamina e a MDMA, estas substâncias são cada vez mais reconhecidas pelos seus potenciais atributos terapêuticos. Por exemplo, a psilocibina sintética mostrou resultados promissores no alívio dos sintomas de depressão e ansiedade associados ao diagnóstico de cancro, sendo que a sua eficácia está a ser investigada em condições como o transtorno obsessivo-compulsivo, transtornos alimentares e transtornos por uso de substâncias.

Além disso, embora as experiências subjetivas que provocam possam diferir, tanto os psicadélicos típicos quanto os atípicos são geralmente considerados seguros, com potencial limitado para abuso. No entanto, uma transição perfeita dos ensaios clínicos para a prática clínica quotidiana não é de forma alguma garantida. Como refere Albino Oliveira-Maia, autor do artigo e Diretor da Unidade de Neuropsiquiatria da Fundação Champalimaud, “até agora, as terapias psicadélicas têm estado largamente confinadas ao domínio da investigação e dos estudos clínicos. Mas isto parece estar prestes a mudar. Já estamos a testemunhar o uso off-label da ketamina, antes vista apenas como anestésico, no tratamento de depressão e perturbações por uso de substâncias, apesar da falta de diretrizes claras, aprovação formal por agências reguladoras e recomendações sobre suporte psicológico.”

Ao contrário da maioria dos tratamentos com medicamentos, os psicadélicos são normalmente associados à psicoterapia para proteger os doentes e potencialmente aumentar a eficácia clínica, ao moldar as experiências subjetivas induzidas pelas drogas. Os autores enfatizam a necessidade de avaliar a eficácia clínica da intervenção psicológica que acompanha estes tratamentos. “Se a psicoterapia durante a experiência psicadélica oferece benefícios adicionais substanciais ao doente, torna-se essencial definir e padronizar os procedimentos terapêuticos ideais para essas sessões de dosagem”, diz Oliveira-Maia. “O nosso objetivo é também garantir que a promessa dos psicadélicos não ocorra às custas da segurança dos doentes”. Os psicadélicos podem provocar maior sugestionabilidade ou sentimentos de intimidade, o que pode aumentar a vulnerabilidade a possíveis abusos e transgressões de limites na relação terapeuta-doente.

Um alegado exemplo de tal transgressão ocorreu num ensaio clínico canadiano de terapia assistida por MDMA para PSPT, onde uma participante e o seu terapeuta não licenciado estiveram envolvidos num acordo extrajudicial para uma acusação de abuso sexual. Tais incidentes tornam clara a necessidade de profissionais certificados e treinados, de supervisão regulatória e de procedimentos aprimorados de consentimento informado para abordar o possível uso do toque e a suscetibilidade do doente durante estados mentais alterados.

“Isto vai exigir um esforço coletivo”, elucida a coautora Ana Matos Pires, Diretora do Departamento de Saúde Mental da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo e membro da Direção do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos. “Não envolverá apenas os médicos que prescrevem o tratamento e os psicólogos que o administram, mas também uma série de outras partes interessadas a nível nacional e internacional, desde órgãos reguladores como a Food and Drug Administration dos EUA e a European Medicines Agency, até aos de decisores políticos, conselhos de ética, farmacêuticos, enfermeiros e, claro, os próprios doentes”.

Em Portugal, os investigadores que trabalham com psicadélicos já estão a trabalhar com sociedades profissionais de psiquiatras e psicólogos clínicos, bem como autoridades éticas, para abordar preventivamente os desafios regulatórios que podem surgir se estes tratamentos psicadélicos se tornarem populares. “Vemos esta nossa abordagem proativa a servir de modelo para outros países que se estão a preparar para a possível incorporação de tratamentos psicadélicos na prática clínica”, afirma Matos Pires. “A promoção da literacia em saúde também é crítica nesta área. É crucial que informemos claramente o público sobre este tipo de tratamento. Terapias psicadélicas não são uma panaceia, mas sim outra ferramenta para tratar doenças mentais”.

Ainda existem muitos aspetos que precisam ser esclarecidos, desde a determinação de dosagens e antipsicóticos adequados para gerir efeitos adversos, até à identificação dos ambientes ideais para o tratamento, sejam ambientes hospitalares tradicionais ou espaços terapêuticos alternativos. O tempo, porém, é essencial. Recentemente, a Austrália declarou a sua intenção de autorizar o uso terapêutico de MDMA e psilocibina já a partir de julho de 2023, enquanto o FDA poderá aprovar o uso de MDMA para o tratamento de PSPT já em 2024.

“Estamos de acordo quanto aos potenciais benefícios dos psicadélicos”, afirma o co-autor Luís Madeira, Presidente eleito da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental e Conselheiro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. “No entanto, é vital reconhecer os desafios associados e evitar apressar o processo. Dado que os ensaios normalmente combinam psicadélicos com terapia, precisamos de mais investigação para melhor compreender os efeitos individuais da droga e da terapia. É plausível que um se mostre mais eficaz que o outro”.

Um desafio notável que Luís Madeira levanta é a dificuldade de conduzir estudos aleatorizados e em dupla ocultação, pois os efeitos psicoativos distintivos tornam óbvio tanto para o participante quanto para o investigador que recebeu o tratamento ou o placebo. Além disso, surge a questão da acessibilidade no sistema público de saúde, visto que cada experiência psicadélica pode durar 8 horas e geralmente envolve dois terapeutas treinados. “Uma possível solução”, explica Luís Madeira, “pode ser a terapia de grupo, permitindo que os terapeutas tratem vários doentes simultaneamente, reduzindo custos e tornando o tratamento mais viável nos sistemas de saúde públicos”.

Carolina Seybert, primeira autora do artigo e Psicóloga Clínica no Centro Clínico Champalimaud, sublinha a necessidade de um processo ágil. “Estes protocolos devem ser flexíveis e dinâmicos à medida que a nossa compreensão sobre estas terapias evolui. Num campo em rápida mudança como este, no qual a nossa base de conhecimento está em constante atualização, é fundamental que as nossas diretrizes e regulamentos não sejam apenas robustos, mas também adaptáveis. Precisamos de uma estrutura uniforme que possa ser modificada à medida que novas informações chegam. Se deixarmos que este processo resulte da autorregulação individual, a experiência do doente pode variar substancialmente de um caso para outro”. De certa forma, a nossa exploração de psicodélicos na saúde mental reflete a própria natureza do tratamento em si, uma aventura em território desconhecido e novas possibilidades. Este novo artigo fornece uma bússola oportuna e uma apreciação lúcida das realidades éticas e regulatórias que estão por vir.

Artigo original aqui.

Texto de Hedi Young, Editor & Science Writer da Equipa de Comunicação, Eventos & Outreach da Fundação Champalimaud.
Traduzido por Catarina Ramos, Co-coordenadora da Equipa de Comunicação, Eventos & Outreach da Fundação Champalimaud.
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