Entrevista com Paulo Fidalgo
Paulo Fidalgo, de 66 anos, diz que tem “dois amores” na Fundação Champalimaud: a gastrenterologia e a avaliação do risco oncológico. Ou não fosse fazer parte, como médico gastrenterologista, da Unidade do Digestivo do Centro Clínico Champalimaud – e, ao mesmo tempo, dirigir o Programa de Avaliação de Risco e Diagnóstico Precoce deste Centro. Tornou-se gastrenterologista por influência do seu mestre, o médico José Pinto Correia, “uma pessoa ímpar da história da medicina e a pessoa que mais influenciou toda uma geração de médicos”, diz. Nesta entrevista, falámos com ele do aumento dos cancros intestinais na população jovem, do diagnóstico da doença, e do que, na sua opinião, é a forma “ideal” de rastreio para a prevenir.
Qual é actualmente o número de novos casos de cancro colorrectal por ano, em Portugal e no mundo?
O cancro colorrectal é o segundo cancro mais frequente em Portugal: mais de 7000 novos casos por ano. É também o mais letal. A nível mundial, é o terceiro cancro mais frequente, com quase dois milhões de novos casos em 2020, e o segundo mais letal.
O que é um bocado frustrante é que, embora tenhamos todos os instrumentos para fazer baixar esta incidência, ela não está a diminuir. Até está a aumentar. Portanto, estamos perante um problema de política de saúde, em Portugal e no mundo: não estamos a conseguir ser eficazes nas medidas de combate à doença.
A incidência está a aumentar em todas as faixas etárias por igual, ou em faixas etárias que antes eram menos afectadas?
Está a aumentar abaixo dos 50 anos, não só em Portugal, mas também em muitos outros países. É o chamado early-onset colon cancer (cancro do cólon de idade precoce). Há dez anos, a frequência de cancro do cólon e do recto abaixo dos 50 anos era de 5% da totalidade dos cancros e agora é de 10%. Em apenas 10 anos, houve uma duplicação dos casos de cancro do cólon e recto em pessoas com menos de 50 anos.
Qual é a explicação deste fenómeno?
As explorações que têm sido feitas não são muito dirigidas a explicar o fenómeno. Para já, sabemos que os carcinomas de idade precoce têm características peculiares: tendem a ser carcinomas do sigmóide e do recto, que são as duas porções do intestino mais próximas do ânus. São portanto carcinomas da parte final do intestino, enquanto que habitualmente, os tumores do cólon se distribuem um bocado mais equilibradamente por todo o cólon.
Temos feito algumas explorações e constatámos, em primeiro lugar, que na esmagadora maioria destes casos de cancros “jovens”, não se consegue identificar uma base hereditária. Numa grande exploração genética que foi publicada, de mutações constitutivas, germinais – determinantes do risco de cancro do cólon e recto - só 15% dos tumores de idade precoce apresentam alterações genéticas de risco significativo para o cancro. Nos restantes 85% dos casos, este cancro parece ser de índole esporádica ou causado pelos efeitos de estilo de vida adquiridos – porventura até, estilos de vida adquiridos muito precocemente, na infância e na adolescência.
Isso tem a ver com a dieta das pessoas?
Nós actualmente classificamos o estilo de vida com cinco parâmetros: o exercício físico, o tabagismo, o consumo de álcool, o excesso de peso e a falta de adesão à dieta mediterrânica. Também designado de “stress oncológico”, este último parâmetro caracteriza o quão afastada está a alimentação de uma pessoa daquilo que é o conceito de dieta adequada para prevenir o cancro, e que é a dieta de tipo mediterrânico.
Mas por que razão as pessoas mais novas têm mais cancro colorrectal? Não são as que dão mais importância ao estilo de vida saudável do que as mais velhas?
Não tenho a certeza que dêem. Nós fazemos avaliação de risco oncológico na Fundação para pessoas saudáveis ou com poucas queixas, e verificámos que os estilos de vida pouco saudáveis não poupam os jovens. Pelo contrário, até são capazes de ser mais frequentes nos jovens. Os jovens têm um estilo de vida adverso.
O que procuramos saber, quando questionamos as pessoas que vêm ter connosco, diz basicamente respeito aos seus hábitos nos últimos 12 meses (nunca lhes fazemos perguntas sobre a sua infância). E são mais frequentemente as pessoas mais velhas que já tomaram consciência de que tinham de mudar o seu estilo de vida, não as mais jovens, na casa dos 30.
Já houve estudos para tentar explicar como pessoas novas estão de repente a desenvolver mais cancros do cólon?
Ainda não. Mas o tema está actualmente a suscitar imensa curiosidade científica. Tentar perceber como, num curto espaço de tempo, debaixo dos nossos olhos, se modificou de tal maneira a epidemiologia do cancro colorrectal que agora temos uma série de gente jovem a desenvolver este cancro.
Para mais, este cancro traz consigo uma certa penalização: às vezes o diagnóstico do cancro do cólon early-onset é tardio. Isso deve-se ao facto de a perda de sangue, que continua a ser um elemento dominante de suspeita ser, de um modo geral, atribuída a causas benignas, tipo doença hemorroidária, nas pessoas jovens. Ou seja, é por causa desta atitude contemplativa face à persistência das queixas que o diagnóstico pode ser tardio; porque ninguém acredita que uma pessoa de 40 anos vai ter um cancro colorrectal.
Quanto tempo demoram a manifestar-se os sintomas de um cancro colorrectal?
Os nossos cálculos em geral são que, entre um pólipo benigno e um cancro do intestino, o processo demora em média dez anos. Mas não sabemos ainda com tanta certeza se esse será o caso do early-onset, porque pode não ter a mesma velocidade de progressão que os tumores mais clássicos. Pode haver aqui uma via mais acelerada, não sabemos.
Os rastreios do cancro colorrectal são feitos a partir de que idade?
Até agora, eram recomendados a partir dos 50 anos. Mas de há três anos para cá, a U.S. Multi-Society Task Force on Colorectal Cancer e a Associação Americana de Gastroenterologia recomendam vivamente que se mude a data de início dos rastreios para os 45 anos.
E em Portugal, alguma coisa mudou?
Oficialmente não. As autoridades financiadoras do SNS são muito vagarosas a adoptar este tipo de mudanças, porque acham que isso vai encarecer o sistema.
O que está recomendado oficialmente para a prevenção do cancro colorrectal em Portugal?
Uma pesquisa de sangue oculto nas fezes, de dois em dois anos, a partir dos 50 anos.
O cancro do intestino pode ser prevenido?
Se dividirmos o estilo de vida saudável em cinco níveis, as pessoas que estão no nível máximo de estilo de vida saudável têm reduções de incidência do cancro colorrectal superiores a 50%. É uma medida muito forte de prevenção e não envolve medicamentos: só mudança alimentar, cuidados com o excesso de peso, não fumar, não consumir álcool em excesso e fazer exercício físico. E reduz a incidência do cancro colorrectal mesmo nos grupos de alto risco. Ou seja, as pessoas portadoras de mutações de alto risco podem beneficiar significativamente de um estilo de vida saudável. Isso já foi bem demonstrado. Também há um determinismo genético importante, mas isso não impede que o estilo de vida ocupe um lugar muito importante na prevenção.
O segundo elemento que os gastrenterologistas consideram predominante para prevenir o cancro do cólon é tirar os pólipos às pessoas, quando estes são benignos. Se nós formos capazes de tirar os pólipos às pessoas, elas não chegarão nunca a desenvolver um cancro do intestino. Todos os cancros do intestino começam num pólipo.
Mesmo tendo o pior estilo de vida do mundo?
Nunca fizemos essa prova [ri-se], mas a impressão que temos é que não há nada melhor do que tirar os pólipos às pessoas.
Quais são os sintomas do cancro colorrectal?
No cancro do cólon e recto, sintomas são uma coisa que nós não queremos que aconteça. Não queremos que as pessoas sejam diagnosticadas por terem sintomas. O que queremos é fazer diagnósticos antes de haver sintomas. Mas o sintoma dominante na doença mais avançada é a perda de sangue. É o sinal de alarme mais importante.
Quem, hoje, deve fazer rastreio deste cancro e que tipo de rastreio?
Se fosse eu a mandar, eu diria que todas as pessoas deviam fazer colonoscopia a partir dos 45 anos se não tiverem risco aumentado. Se tiverem risco aumentado – história da doença ou de pólipos avançados – entre os membros da sua família (pai, mãe, irmãos), devem começar aos 40 anos — ou dez anos mais cedo que a idade que tinha o caso mais jovem da família quando foi diagnosticado(a). As pessoas com risco acrescido devem fazer colonoscopia de cinco em cinco anos, enquanto as pessoas sem risco acrescido, se tiverem uma colonoscopia em muito boas condições, podem ter uma garantia de 10 anos.
Alguns serviços, por iniciativa própria, promovem uma versão incrementada de rastreio baseada apenas na colonoscopia. Quanto às pessoas com risco aumentado por história familiar, na opinião dos gastrenterologistas, não devem fazer pesquisa de sangue oculto; devem sempre fazer apenas colonoscopia.
Por Ana Gerschenfeld, Health & Science Writer da Fundação Champalimaud.