Entrevista com Amjad Parvaiz
Quando era jovem, Amjad Parvaiz, hoje com 54 anos, queria ser “um grande cirurgião de urgência e trauma”. Depois de se graduar pela universidade da sua cidade natal de Lahore, no Paquistão, viajou para a África do Sul para lá fazer a sua formação em cirurgia de urgência trauma. Enquanto lá estava, em 1995, contou, “um dos meus chefes chamou-me e disse-me: ‘se queres fazer cirurgia de século XXI, vai aprender a fazer laparoscopias. As pessoas nos países civilizados têm mais probabilidade de desenvolver cancro e outras doenças do que de serem baleadas na rua’.” Amjad Parvaiz seguiu o conselho do seu chefe e mudou-se para o Reino Unido em 1998, tornando-se primeiro um destacado cirurgião na área da laparoscopia do cancro colorretal e, posteriormente, a partir de 2013, um proeminente cirurgião na área da cirurgia robótica do cancro colorretal. A seguir, foi convidado para colaborar com a Fundação Champalimaud (FC), pelo cirurgião britânico Bill Heald (que será um dos nossos entrevistados na próxima semana), para dar formação em laparoscopia a cirurgiões oncológicos. Amjad Parvaiz chegou a Lisboa em 2014-2015 e quando, em 2016, a FC adquiriu o seu primeiro sistema de cirurgia robótica, criou a Academia Europeia de Cirurgia Robótica Colorretal para treinar cirurgiões de toda a Europa nesta modalidade cirúrgica. Nesta entrevista, partilha connosco a sua visão do futuro da cirurgia oncológica.
A cirurgia é o principal tratamento do cancro colorretal?
No estadio adequado, a cirurgia continua a ser a única ferramenta que permite a cura. Para remover um cancro do cólon ou do recto em segurança, a cirurgia é o tratamento fulcral para possibilitar uma cura a longo prazo.
Quando diz “cura”, quer dizer “remissão”, ou longos períodos de tempo em que o doente permanece livre de cancro?
Não. É por isso que disse que dependia do estadio do cancro. Por exemplo, se uma pessoa tem um cancro de estadio I, será quase seguramente curado pela cirurgia. Nós falamos em “sobrevivência a cinco anos”, que representa a percentagem de casos semelhantes que operamos que, ao fim de cinco anos, continuam sem manifestar a doença. E para o estadio I essa percentagem ronda os 95 a 98%. Este é o grupo que consideramos curados. Se se tratar da doença em estadio III, [mais avançada] as percentagens diminuem, mas a cirurgia continua a ter um impacto: pelo menos 70% desses doentes estarão vivos e de boa saúde – e sem tumores – passados cinco anos.
Há doentes que não podem ser operados?
Para 20 a 30% dos doentes, a cirurgia não é a primeira opção de tratamento, porque é melhor para estes doentes receber outros tratamentos primeiro, tal como quimioterapia ou radioterapia.
Há vários tipos de cirurgia. Quais são eles?
A mais antiga, a cirurgia aberta, é realizada fazendo uma grande incisão no meio de abdómen; e é assim desde que a cirurgia existe. (Hoje em dia, a maioria das cirurgias no mundo ainda são abertas.) E tem sido demonstrado, durante anos, que é possível obter excelentes resultados no cancro colorretal utilizando a técnica de cirurgia aberta. Mas pelo facto de ser preciso fazer grandes incisões, este tipo de cirurgia apresenta complicações: grandes feridas, recuperação lenta, infecção da ferida, feridas que reabrem – é sabido que tudo isto está associado às grandes incisões. Para mais, os doentes terão de permanecer hospitalizados, em média, cerca de duas semanas. Sem esquecer ainda que a cirurgia do cancro rectal é particularmente desafiante e que, neste caso, o risco de complicações associadas é maior.
Nas três últimas décadas, a comunidade cirúrgica tem, lentamente, adoptado a laparoscopia [uma técnica minimamente invasiva, que apenas envolve pequenas incisões e instrumentos miniaturizados]. Dentro do corpo, a operação continua a ser a mesma , mas agora fazemos uma pequena incisão de um centímetro para introduzir os instrumentos e, normalmente, utilizamos incisões de cerca de cinco centímetros para extrair o tumor.
A laparoscopia foi fortemente escrutinada, porque implicava uma mudança de paradigma no trabalho dos cirurgiões, um desafio à prática existente. Eu fiz parte dessa mudança durante a minha formação, e o debate durou anos. Hoje, sabemos que, por ser feita através de uma pequena incisão, os doentes recuperam mais depressa, regressam a casa mais cedo, requerem menos morfina, a dor que sentem é menos intensa e podem retomar mais depressa as suas actividades quotidianas.
A seguir, em 2013, entrou em cena a cirurgia robótica. Essencialmente, continua a significar a utilização da abordagem minimamente invasiva, mas o sistema robótico permite uma muito melhor visão do local da operação e o acesso a melhores instrumentos. E em particular para locais do corpo que são estreitos e de difícil acesso, tal como acontece no cancro rectal, a cirurgia robótica começou a demonstrar trazer uma enorme vantagem para os doentes – se for possível utilizá-la com grande precisão.
De facto, a maior vantagem da abordagem robótica consiste na melhoria da visão do cirurgião, com o 4K, a alta resolução tal como a laparoscopia, mais um grau de ampliação 10 vezes maior, 3D e a capacidade de rotação em 360º dos instrumentos [ao passo que os nossos pulsos tem uma amplitude de rotação limitada]. Os ganhos podem ser gigantescos para os doentes; por exemplo, um dos principais problemas decorrentes da cirurgia do cancro rectal é a disfunção urogenital – impotência nos homens, disfunção da bexiga nas mulheres e perda do controlo dos intestinos. Todas estas ocorrências melhoram com a utilização de robôs cirúrgicos, porque o cirurgião também visualiza muito melhor os nervos envolvidos e pode evitar danificá-los.
Há quem critique a cirurgia robótica argumentando que ainda não existem estudos suficientes para mostrar que os resultados deste tipo de cirurgia são melhores do que os da laparoscopia. O que acha?
Acho legítimo que, de cada vez que tentamos introduzir uma novidade no tratamento dos doentes, tenhamos de a submeter a um escrutínio e uma autocrítica rigorosa, para perceber se se trata de uma mudança para melhor ou de uma mudança só pelo gosto de mudar. Eu, que fui testemunha da evolução da laparoscopia, posso dizer que o mesmo debate aconteceu há uns 25 anos, quando os jovens cirurgiões perguntavam se a laparoscopia era melhor do que a cirurgia aberta. A pressão para mostrar que a laparoscopia era efectivamente melhor, foi muito grande. À medida que os cirurgiões começaram a ter mais experiência e a melhorar o seu desempenho em laparoscopia, os resultados da nova abordagem tornaram-se visíveis.
Acho que, com a cirurgia robótica está a acontecer um fenómeno semelhante. Falo por experiência própria: quando surgiu a laparoscopia, as pessoas que se mostravam contra eram cirurgiões experientes e destacados da cirurgia aberta, que de repente pensaram que poderiam tornar-se menos relevantes por causa de laparoscopia. Avancemos 25 anos , e é a vez de cirurgiões experientes e destacados da laparoscopia pensarem que, agora que finalmente conseguiram aprender a fazer laparoscopias com qualidade, a baliza mudou de sítio. Esta pode ser uma leitura.
Mas, desde há cerca uma década, na Europa, começámos a assistir ao mesmo que aconteceu com a laparoscopia: alguns centros apresentam excelentes resultados quando utilizam a cirurgia robótica, mas outros não, e que as pessoas estão a adquirir competências e a melhorar o seu desempenho.
A Fundação Champalimaud teve um papel muito importante nesta evolução, em particular na formação?
Formar cirurgiões é algo que me é muito próximo, e a Fundação Champalimaud foi central neste processo na Europa. Tínhamos uma Academia Europeia de Cirurgia Colorretal Robótica aqui na Fundação Champalimaud, formámos mais de 150 cirurgiões na Academia, e fizemos mais de 1.400 cirurgias supervisionadas através desta escola. Os cirurgiões vinham à Fundação Champalimaud observar as cirurgias, aprender nos cursos e a seguir os docentes viajavam para os hospitais europeus onde os formandos trabalhavam e estes faziam cirurgias robóticas nos seu próprios doentes sob a supervisão directa dos docentes.
Nós na Fundação Champalimaud éramos o gabinete de coordenação central, dávamos e avaliávamos a formação. Docentes de outras instituições europeias também contribuíram para estes esforços, mas nós éramos os principais contribuidores, por assim dizer. Só para citar uns números: das 670 cirurgias robóticas de treino realizadas na Europa, através da Academia, mais de 400 foram feitas sob a supervisão directa dos docentes da Fundação Champalimaud. Todos os dados foram revistos por pares e apresentados em respeitadas publicações, e mostram que a formação melhora os resultados. Profissionais de todo o mundo, e não só da Europa, começou também a vir ter formação na Academia.
Quando é que a Academia iniciou as suas actividades?
Em 2015, a Fundação Champalimaud estabeleceu a Academia Internacional de Formação em Cirurgia Robótica Colorretal. Depois veio a COVID e os cirurgiões deixaram de poder viajar e portanto o ensino foi temporariamente suspenso.
Há planos para a reabrir?
Sim, isto é algo que está muito presente na mente da nossa administração, o Conselho de Administração da Fundação Champalimaud está muito empenhado em restabelecer a Academia. Talvez já em Maio ou Junho possamos organizar o primeiro curso que irá relançar a Academia.
A Cirurgia robótica ainda está longe de ser um procedimento habitual?
Pois. Mas a cada mês que passa, mais unidades de cirurgia robótica estão a ser vendidas na Europa, e mais cirurgiões estão a receber formação. Acho que, só no Reino Unido, há actualmente mais de cem sistemas robóticos já instalados e a funcionar. Na Alemanha, há duas vezes mais. Aliás, já existem cinco ou seis empresas internacionais capazes de fabricar robôs cirúrgicos, portanto os preços deverão descer, o que significa que cada vez mais pessoas terão acesso à cirurgia robótica.
Mas os robôs cirúrgicos são apenas ferramentas, plataformas; o mais importante, como já referi, é que os cirurgiões sejam treinados, de forma a conseguir fazer um melhor trabalho com esta ferramenta tão cara.
O mais conhecido - e historicamente o primeiro – robô cirúrgico é o robô Da Vinci, um dos quais está instalado na Fundação Champalimaud. Em concreto, como é que este robô faz uma cirurgia do cancro colorretal?
Primeiro, do ponto de vista do público, é importante perceber que não se trata de um robô autónomo, que opera sozinho. Funciona na base do conceito mestre-seguidor, o que significa que temos uma ferramenta fisicamente ligada ao doente, com instrumentos colocados no braço do robô que fazem incisões com um centímetro ou menos e insuflam ar no abdómen do doente.
O cirurgião está sentado em frente a uma consola de operação, afastado do doente; olha para uma vista tridimensional do doente num ecrã e move os instrumentos ao mexer as pontas dos dedos. O sistema ainda não é wireless, mas um dia será possível realizar cirurgias robóticas remotas graças à 5G. Imaginemos que um cirurgião está em Lisboa e que a máquina está ligada a um ou uma doente que se encontra em Southampton: a 5G fará com que o desfasamento entre os movimentos do cirurgião e os dos instrumentos seja de apenas um centésimo de milissegundo. Mas isto não é para já.
Segundo, não há máquinas que pensem e que possam deixar, de repente, de obedecer às ordens do cirurgião. Todavia, há muito trabalho a ser feito em algo chamado automatização – parecido com o piloto automático que faz voar aviões enquanto os pilotos, no cockpit, verificam que os comandos estão normais e que portanto o avião está a fazer o que é suposto. É esta a automatização que está a ser desenvolvida, e que poderá tornar-se realidade dentro de 10 ou 20 anos – e na minha opinião, é aí que as vantagens da cirurgia robótica serão visíveis. Mas por enquanto, ainda se trata de um conceito mestre-seguidor. E, durante a cirurgia, há assistentes junto da mesa de operação – talvez um ou dois cirurgiões em formação – portanto os doentes não estão sozinhos. Os assistentes podem ajustar o braço robótico se necessário.
Para os doentes com cancro colorretal a Fundação Champalimaud desenvolveu uma equipa multidisciplinar, reunindo cirurgiões, oncologistas médicos, radioterapeutas, radiologistas, patologistas, cientistas, fisioterapuetas, psicólogos e enfermeiros especializados. Com esta equipa são tratados e acompanhados na Fundação um número muito elevado de doentes com resultados que estão publicados em revistas cientificas internacionais e que são citados como dos melhores do mundo.
A cirurgia robótica também é usada para operar outros cancros?
Na Fundação Champalimaud estamos actualmente a propor a abordagem robótica à maior parte dos nossos doentes oncológicos submetidos a cirurgia. Os cirurgiões colorretais foram os primeiros a utilizar o robô, mas atualmente urologistas, ginecologistas, cirurgiões torácicos e cirurgiões do fígado e do pâncreas estão a poder oferecer cirurgia robótica a um número crescente de doentes.
Por Ana Gerschenfeld, Health & Science Writer na Fundação Champalimaud.