“A cirurgia pode curar”, afirmou Markus Büchler, director do recém-inaugurado Centro Botton-Champalimaud do Cancro Pancreático, em Lisboa, durante a sua intervenção. Büchler referia-se a uma forma de cirurgia do cancro do pâncreas chamada “operação do triângulo”, que inventou e desenvolveu.
Esta forma de cirurgia está indicada para todos os adenocarcinomas pancreáticos ductais (PDAC em inglês, que representa 95% dos casos de cancro do pâncreas) que ainda não desenvolveram metástases. O procedimento, realizado após um ciclo de quimioterapia para reduzir o tumor, consiste na remoção radical de todos os tecidos moles localizados num “triângulo” formado no pâncreas pela veia porta, a artéria hepática do tronco celíaco e a artéria mesentérica superior. A cirurgia pode envolver a reconstrução da vasculatura se o tumor a tiver invadido. “A cirurgia pancreática transformou-se em cirurgia vascular”, declarou Büchler.
“Limpar o triângulo”, acrescentou, “reduz as hipóteses de recidiva local do cancro’, que considera ser um “problema candente” do cancro do pâncreas. Este procedimento “melhora a sobrevivência sem recidiva”, sublinhou. Mas, admitiu, “ainda estamos longe de onde queremos chegar”.
Um cancro raro mas mortal
O cancro do pâncreas é um cancro raro – estima-se que represente 3% de todos os cancros nos EUA – mas é uma das formas mais mortíferas de cancro, sendo a terceira causa de morte por cancro nos EUA e a sexta em Portugal. Quando ainda está localizado, a taxa estimada de sobrevivência a cinco anos é de 44%, de acordo com estatísticas recentes do Instituto Nacional do Cancro dos EUA. Mas depois de metastizar, esse valor desce para cerca de 3%.
O problema com o cancro do pâncreas é duplo. Por um lado, não existem biomarcadores específicos nem métodos de rastreio suficientemente fiáveis para fazer o seu diagnóstico precoce, quando o doente ainda pode ser operado. De facto, quando os sintomas aparecem, a doença encontra-se geralmente numa fase avançada. Por outro lado, as diferentes terapias sistémicas, não cirúrgicas, que estão a ser testadas têm tido, até agora, resultados pouco convincentes.
Para além disto tudo, os sintomas de cancro do pâncreas – tais como dores de estômago, indigestão, dores nas costas, perda de peso inexplicável, perda de apetite, diabetes de início recente, icterícia – não são específicos e por isso são facilmente confundidos com os de outras doenças.
Para resolver este enorme problema, a Fundação Champalimaud abriu o Centro Botton-Champalimaud do Cancro Pancreático, uma instalação única equipada para reunir os melhores investigadores fundamentais e oncologistas médicos de forma a promover a rápida “tranlação” dos avanços da investigação para a prática clínica (https://www.fchampalimaud.org/news/botton-champalimaud-pancreatic-cance…).
De 23 a 26 de outubro – menos de um mês depois de ter ficado totalmente operacional – o Centro Botton-Champalimaud do Cancro Pancreático realizou a sua primeira conferência internacional em Lisboa, reunindo cirurgiões, oncologistas, radioterapeutas, patologistas, investigadores translacionais e cientistas básicos de renome mundial para debater os mais recentes conhecimentos sobre o cancro do pâncreas, as mais recentes formas de cirurgia e as futuras potenciais abordagens terapêuticas.
Oncogenes, círculos de ADN, células T preguiçosas
Eileen O'Reilly, do Memorial Sloan-Kettering Cancer Center, em Nova Iorque, falou sobre o desenvolvimento de terapias genéticas contra o cancro do pâncreas que poderão basear-se em mutações do gene KRAS. “O gene RAS é o motor desta doença”, afirmou. Este oncogene (gene causador de cancro) encontra-se mutado em 98% dos casos de cancro do pâncreas, pelo que a sua inibição directa poderia constituir um potencial tratamento do cancro do pâncreas. Mas “ainda não foi aprovada nenhuma terapêutica anti-RAS para o cancro do pâncreas”, concluiu.
Paul Mischel, da Universidade de Stanford, discutiu o facto de os oncogenes que impulsionam o cancro do pâncreas não se encontrarem na molécula de ADN, mas sim no chamado ADN extracromossómico (ecDNA), uma molécula de ADN circular específica do cancro, derivada do ADN cromossómico.
Uma vez que o ecDNA tem uma menor fidelidade de replicação do que o ADN cromossómico linear, a sua presença “faz de cada divisão celular uma autêntica lotaria”, explicou Mischel. De facto, “quebrando as regras de Mendel” da genética, o ecDNA torna os tumores resistentes aos tratamentos ao facilitar a transcrição maciça de oncogenes e a rápida evolução genómica.
Em resultados muito recentes, liderados por Mischel, ele e os seus colegas demonstraram que 17% de todos os cancros contêm ecDNA, o que é enorme em números absolutos, fez notar. “Os doentes com ecDNA têm piores resultados do que todos os outros”, acrescentou Mischel. Os investigadores mostraram também que, para além dos oncogenes que provocam o cancro e de elementos imunossupressores, dois círculos de ecDNA podem juntar-se e interagir, agravando os seus efeitos.
Estes pequenos círculos de ADN – “o lado negro do ADN”, como lhes chamou Mischel – podem também ser alvos potenciais para abordagens terapêuticas do cancro do pâncreas. A investigação no Centro Botton-Champalimaud, no laboratório do recém-nomeado investigador principal Vincenzo Corbo, está a estudar o papel do ecDNA no cancro do pâncreas.
Ben Stanger, da Universidade da Pensilvânia, centrou a sua intervenção nas imunoterapias, salientando logo que “as imunoterapias para o cancro do pâncreas ainda não existem”.
“Alguns PDAC têm muitas células T, outros têm muito poucas, mas todos têm um nível fraco de ativação das células T, em comparação com o melanoma”, por exemplo, disse Stanger. De facto, ter ou não ter células T, acrescentou, “não faz diferença. O tumor cresce na mesma”. Este fenómeno está ainda por explicar. Alguma coisa, nas próprias células tumorais, poderá ser responsável por este fenómeno.
“Não somos imunologistas”, acrescentou outro orador – Dieter Saur, da Universidade Técnica de Munique, suscitando algumas risadas na audiência – “mas percebemos que pode ser importante”.
Esperar para ver o que acontece?
Voltando à cirurgia, vários oradores discutiram a chamada estratégia “Wait and See” para o cancro do pâncreas, que adia a cirurgia.
Acontece que, à medida que as pessoas envelhecem, muitas desenvolvem quistos pancreáticos benignos, ou neoplasias mucinosas papilares intraductais (NMPI), a maioria dos quais não são cancerosos – e não deveriam ser operados. Mas alguns deles podem tornar-se cancerosos.
E não é tudo: aos 80 anos, estima-se que 30 a 40% da população tenha lesões quísticas no pâncreas que são clinicamente irrelevantes – “incidentalomas”, como alguém lhes chamou, ou “quistos Tom Cruise”... porque vão ter sempre o mesmo aspecto.
Este estado de coisas levou o orador Volkan Adsay a falar sobre o desafio de definir a malignidade: “Precisamos de reconhecer melhor as pessoas propensas à progressão do cancro”, afirmou. Uma tarefa que se pode revelar hercúlea.
A dimensão da lesão é um factor a considerar, mas não é suficiente, disse Massimo Falconi, do Hospital San Raffaele, em Milão. “Também temos de excluir a presença de caraterísticas agressivas nas lesões”, advertiu.
Giovanni Marchegiani, da Universidade de Verona, propôs uma possível solução para o desafio literalmente intransponível de acompanhar “milhões e milhões de indivíduos (não doentes) que têm um quisto no pâncreas” detectado por acaso. “Deveríamos considerar”, disse, “acabar com a vigilância de NMPI triviais e realizar uma cirurgia mais precoce e mais agressiva sempre que a genética do tumor nos diga que se vai tornar um cancro”.
Alguém na audiência comentou então: “sabemos que a cirurgia do pâncreas pode ser realizada em segurança nas pessoas mais velhas. Mas o que é que estamos a retirar se não for um cancro? Qualidade de vida e quantidade de vida. Temos de avaliar isso melhor”.
A mensagem geral? Tendo em conta os enormes desafios colocados pelo cancro do pâncreas, só através da colaboração entre especialistas multidisciplinares a nível mundial é que a compreensão, o diagnóstico e o tratamento desta doença poderão avançar ao ritmo acelerado necessário para enfrentar a ameaça premente que representa.
Texto de Ana Gerschenfeld, Health & Science Writer da Fundação Champalimaud.