12 Abril 2023

É fundamental que a prática de exercício físico seja parte integrante do plano de tratamento do cancro

A prática de exercício físico regular é fundamental na promoção da saúde, quer a nível físico quer a nível psíquico. Os doentes oncológicos que realizam exercício físico regularmente apresentam efeitos secundários menos graves associados aos tratamentos, melhorando a sua qualidade de vida e diminuindo o seu risco de recidivas. Mas esta não é ainda uma prática corrente nos centros de tratamento do cancro. Na Fundação Champalimaud, existe, desde há poucos meses, um novo serviço de implementação e supervisão de programas de exercício físico personalizado, dirigido aos doentes oncológicos.

É fundamental que a prática de exercício físico seja parte integrante do plano de tratamento do cancro

Carla Malveiro é responsável, na Fundação Champalimaud, pela implementação dos programas de exercício físico dos doentes oncológicos – e em particular das mulheres a serem tratadas na Unidade de Mama. A fazer o doutoramento na Faculdade de Motricidade Humana (FMH) da Universidade de Lisboa, esta fisiologista do exercício, especialista em oncologia, de 41 anos, ocupa o cargo desde Outubro passado. Para além da Unidade de Mama, ambiciona ajudar os doentes oncológicos das outras Unidades da Fundação a melhor tolerarem os tratamentos agressivos e, consequentemente, melhorarem a sua qualidade de vida. 

Já ninguém nega que a actividade física é um factor determinante na prevenção do cancro e de outras doenças. Mais quais são os benefícios da actividade física no caso de doentes com cancro?

Atualmente, já existe forte evidência científica associada aos benefícios do exercício físico na área oncológica. A investigação mostra que o exercício pode ajudar os doentes oncológicos a tolerar melhor os tratamentos, minimizar os declínios físicos causados pela doença, contrariar a fadiga (um dos principais sintomas reportados pelos doentes e com um forte impacto nas atividades diárias), minimizar sentimentos de ansiedade e depressão – e sobretudo, melhorar a qualidade de vida.

É fisiologista do exercício. O que é exactamente a fisiologia do exercício?

O Fisiologista do Exercício é um profissional licenciado (ou com grau superior) em Ciências do Desporto, com especialidade em fisiologia do exercício, ou exercício e saúde, ou rendimento/treino desportivo, posicionando-se como o profissional de referência na área da avaliação da aptidão física e prescrição de exercício físico, bem como na conceptualização, condução e avaliação de programas de exercício físico e de promoção da atividade física e saúde. No âmbito das profissões associadas à promoção da saúde e prevenção da doença, como acontece aqui na Fundação Champalimaud, o Fisiologista do Exercício é o parceiro natural das equipas clínicas em contextos de intervenção multidisciplinares.

Trabalha com mulheres com cancro da mama que receberam uma combinação de quimioterapia, radioterapia, cirurgia mais ou menos radical, hormonoterapia, etc. Quais são as complicações destes tratamentos que podem ser mitigadas pela prática de actividade física?

Os tratamentos oncológicos associam-se ao desenvolvimento de vários efeitos secundários. Como já referi, a fadiga é o efeito que as pessoas mais relatam a curto e longo prazo, sobretudo para quem se encontra a realizar quimioterapia e/ou radioterapia. Ora, as pessoas que praticam exercício toleram muito melhor a fadiga. Isto pode parecer controverso; se o exercício provoca cansaço, fazer exercício não vai ser pior do que não fazer? A verdade é que o cansaço associado ao exercício é totalmente diferente da fadiga provocada pelos tratamentos. Aliás, a grande maioria das doentes que acompanho referem que estão esgotadas, mas que o exercício lhes dá um boost de energia extra que lhes permite continuar a realizar as suas tarefas diárias ou até mesmo trabalhar. 

Também existem alterações relacionadas com a composição corporal, muito frequentes durante e após os tratamentos:  nomeadamente a diminuição da massa muscular (sarcopenia) e da massa óssea (osteopenia e osteoporose), assim como possíveis complicações cardíacas, que podem ser atenuadas através da prática de exercício físico. No caso específico do cancro da mama, por vezes a cirurgia implica proceder a um esvaziamento axilar, isto é, à remoção de gânglios linfáticos da axila do lado da mama afectada. Podem então surgir complicações associadas à mobilidade do ombro e, por vezes, um linfedema (inchaço do braço do lado operado devido à acumulação de linfa nos tecidos). 

Existem treinos específicos para lidar com esta situação?

Existem e implicam prescrições individualizadas que englobem exercícios específicos, realizados com determinadas intensidades e volumes. As diretrizes baseadas em evidências recomendam que as pessoas com cancro sejam tão fisicamente ativas quanto a sua capacidade e condição atual permita. Para obterem benefícios significativos para a saúde, devem realizar pelo menos 150 minutos semanais de exercício aeróbio de intensidade moderada e, duas a três vezes por semana, exercícios de força muscular de intensidade moderada a vigorosa direcionados aos principais grupos musculares. 

No passado recente, havia um mito em relação ao treino de força em mulheres com cancro da mama, recomendando que estas não movimentassem o braço afetado nem carregassem qualquer tipo de peso, pois isso poderia levar ao aparecimento e/ou exacerbação do linfedema. Infelizmente, nos dias de hoje, ainda há quem acredite nisso. 

Contudo, a evidência científica, assim como os resultados que se têm verificado no terreno (que posso confirmar, após mais de oito anos de intervenção direta com pessoas com este tipo de cancro), mostram precisamente o contrário. Ou seja, a prática de exercício pós-cirurgia, desde que devidamente orientado e supervisionado, nomeadamente a que inclua treino de força, não só é uma opção segura, mas sobretudo eficaz na redução deste efeito secundário, uma vez que potencia as respostas hemodinâmicas venosas e a circulação linfática, contribuindo para uma diminuição do inchaço associado ao edema.

E quanto ao estado anímico, à ansiedade, o exercício também ajuda, apesar da fadiga?

Sim. O exercício tem essa capacidade, já que é um potente libertador de endorfinas que proporcionam uma sensação de bem-estar e prazer. Adicionalmente, quando o exercício é realizado de forma supervisionada e simultaneamente com outras doentes, como acontece no ginásio da Fundação, a possibilidade de partilharem experiências e perceberem que estão todas em processos semelhantes funciona como um grupo de entreajuda, melhorando consideravelmente possíveis estados depressivos ou de ansiedade. 

Também trabalha com outras unidades, para além da Unidade de Mama da Fundação?

Estou receptiva a receber todos os doentes, embora neste momento apenas acompanhe doentes com cancro da mama.

Porquê?

Porque o ginásio da Fundação, onde desenvolvo o meu trabalho, só abriu em Outubro [esteve fechado durante a pandemia] e abriu com o nosso projeto de investigação de doutoramento, chamado NeoProgram, que é específico para doentes com cancro da mama em terapia neoadjuvante [que pode ser uma combinação de quimioterapia, radioterapia, etc., realizada antes da cirurgia]. Por outro lado, como eu também já trabalhava com alguns médicos da Unidade de Mama, que defendem e recomendam a prática de exercício físico, torna-se muito mais fácil encaminharem doentes para os nossos programas. 

O programa de treino aplicado varia com o tipo de cancro?

Varia sim. A prescrição de exercício deve ser vista de forma semelhante ao modo como os médicos prescrevem medicamentos; conhecendo como o cancro afeta a nossa saúde e compreendendo como certos exercícios melhoram a estrutura e a função dos sistemas do nosso corpo. Por exemplo, para um doente com cancro da próstata, com uma maior probabilidade de desenvolver incontinência urinária devido à cirurgia, existe um tipo de intervenção específico, que consistirá no fortalecimento dos músculos do soalho pélvico. O plano de treino tem de ser realizado sempre em função do tipo de cancro, do indivíduo e do contexto.

O treino faz-se durante ou depois do tratamento?

O treino pode ser realizado durante os tratamentos ou após os mesmos. Nunca é tarde para começar…. Contudo, o ideal seria começar logo após o diagnóstico, devido a todos os benefícios já mencionados.

As doentes com cancro da mama com quem trabalha costumam começar nessa altura? 

Normalmente não. Entendo que seja difícil começar logo após o diagnóstico, principalmente para quem nunca praticou exercício. Quando alguém acaba de ser diagnosticado com cancro, só pensa em como vai sobreviver à doença, não em fazer exercício físico. 

Mas a verdade é que, quando os médicos conseguem sensibilizar as doentes para a importância da prática de exercício logo após diagnóstico, os doentes tornam-se muito mais receptivos e optam por iniciar o programa de exercício. Actualmente, o mais comum é recebermos doentes com cancro da mama antes da radioterapia, para ajudarmos com a mobilidade do ombro (muito importante para assegurar um correto posicionamento na máquina) ou até mesmo para um trabalho respiratório (essencial para protocolos de radioterapia feitos em apneia). E também recebemos sobreviventes que ainda sofrem dos efeitos secundários dos tratamentos anteriores e/ou que são submetidas a tratamento hormonal. Mas agora, com o NeoProgram, acredito que esta tendência se altere.

Em que consiste o programa de exercício físico? Normalmente, as sessões têm uma duração de 45 minutos. O acompanhamento é sempre estruturado e personalizado. Em linhas gerais, a prescrição comporta um trabalho de mobilidade e estabilidade, uma componente cardiorrespiratória e um trabalho de resistência e força muscular. 

Quanto tempo dura o programa de treino?

Não há um tempo definido, mas recomendamos pelo menos 12 semanas, duas a três vezes por semana, para se verificarem resultados significativos.

Acha que o exercício físico deveria ser parte integrante do plano de tratamento de todos os doentes com cancro? 
Tenho a certeza e toda a evidência científica suporta esta certeza! É fundamental que a prática de exercício físico seja parte integrante do plano de tratamento do cancro e sempre englobado numa equipa multidisciplinar. Os doentes oncológicos que realizam exercício físico regularmente apresentam efeitos secundários aos tratamentos menos graves e têm um menor risco de recidivas. Portanto, o meu conselho é que seja iniciado, de forma supervisionada, logo após o diagnóstico. 

Esta situação já se verifica hoje no meio hospitalar português, ou ainda nem todos os oncologistas consideram o exercício físico como uma necessidade terapêutica?

Em Portugal, existem alguns programas e associações que englobam equipas multidisciplinares e que incluem o exercício físico como uma necessidade terapêutica. Contudo, é muito raro que este trabalho seja desenvolvido em contexto hospitalar. Neste sentido, a Fundação Champalimaud está de parabéns por ter dado este passo, que acredito ser tão importante na melhoria da qualidade de vida dos nossos doentes oncológicos. 

Entrevista de Ana Gerschenfeld, Health & Science Writer da Fundação Champalimaud.
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