27 Junho 2024

Igualdade de género: um passo para a frente, dois para trás?

As mudanças que se impõem na saúde, no campo da igualdade de género para os cargos de chefia, são profundas. Não é por acaso que a conferência anual de Enfermagem, que decorreu recentemente na Fundação Champalimaud, incluiu uma mesa redonda sobre este tema.

Igualdade de género: um passo para a frente, dois para trás?

Sendo a enfermagem uma profissão maioritariamente de mulheres, por que é que os cargos de direcção são maioritariamente ocupados por homens? 

A pergunta foi lançada por Carla Martins, directora de enfermagem da unidade local de saúde do Hospital Santa Maria, durante um recente debate na Fundação Champalimaud (FC) que abordou a igualdade de género e mais especificamente a liderança no feminino na área da saúde.

O tema fazia todo o sentido no âmbito da Conferência de Enfermagem anual da FC, que este ano se centrou na mudança, na capacidade de adaptação dos profissionais de saúde à mudança, nas realidades emergentes e na necessidade de os profissionais de enfermagem terem um papel activo nessa mudança.

O painel, moderado por Leonor Beleza, Presidente da FC, contou ainda com os contributos de André Valente, neurocientista da Fundação; Fátima Cardoso, oncologista e directora da Unidade de Mama; e Rita Sá Machado, Directora-Geral da Saúde.

“A questão da liderança no feminino em torno das profissões de saúde é para mim uma experiência pessoal muito interessante”, disse Leonor Beleza. “Tem uma enorme relevância em todas as áreas – e sabemos que ao longo dos tempos, nem sempre lhe foi prestada a devida importância”, acrescentou, “mas como são as questões da saúde que aqui nos ocupam, é natural que falemos dela mais em torno da saúde”.

Foi Fátima Cardoso que evocou a questão do recuo recente da igualdade de género e da liderança no feminino nas sociedades ocidentais. “Nos últimos anos, parece que estamos um pouco a andar para trás em vez de continuar a andar para a frente”, salientou esta médica.

A seguir, a oncologista forneceu alguns dados que confirmam esse retrocesso na Oncologia e na Medicina. “Hoje em dia, mais de 80% dos estudantes de Medicina em Portugal são mulheres, disse. “No entanto, nem sequer 20% dos cargos de chefia são ocupados por mulheres”. Há muito poucas mulheres que tentam postular para este tipo de cargo por acharem que não vale a pena porque não serão escolhidas”, considerou. Na área da investigação, a situação não é melhor.

“Então, o que é que nós podemos fazer para rectificar esta situação?”, interrogou Fátima Cardoso. “Acho que a partir de agora temos que escolher entre os candidatos a estes cargos com um viés consciente. O mérito tem de ser a primeira característica, mas quando duas pessoas têm méritos iguais ou muito parecidos, quem toma as decisões tem de escolher conscientemente a mulher. Tem de ser.”

Fátima Cardoso pensa que nunca iremos conseguir o equilíbrio de género se optarmos por alternar entre homens e mulheres nos cargos de chefia. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde, disse ainda, à velocidade a que está a tentar-se atingir a igualdade de género na Medicina, o processo vai demorar quase três séculos. “Eu acho que temos de andar mais depressa”, concluiu. 

O primeiro orador tinha sido André Valente, que evocou os problemas de igualdade de género na investigação, Mas focou-se principalmente noutra questão; o facto de não ter sido dada, durante muito tempo, a devida importância ao sexo dos animais de laboratório que são utilizados nas experiências. “O crescimento da ciência e da forma como lidamos com o género não é uma história feliz”, disse.

Como exemplo deu o caso da talidomida, um sedativo utilizado para as náuseas que as mulheres grávidas usaram durante os anos 1950 e 1960. Ora, esse fármaco nunca fora testado em animais fêmeas durante o período de gestação, nem em mulheres grávidas. “O resultado foi absolutamente devastador: muitos dos fetos não sobreviveram e os que sobreviveram nasceram sem membros”, explicou André Valente. “Se tivesse havido animais gestantes entre os animais experimentais, teríamos provavelmente sabido a tempo do efeito da talidomida. Mas não houve”, lamentou.

Hoje sabe-se que os animais de sexo diferente podem ter respostas muito diferentes aos fármacos e que é preciso ter isso em conta. “Mas não é algo que tenha sido automático no campo científico”, concluiu André Valente.

Rita Sá Machado falou da liderança no feminino, olhando para “as características da liderança”. Para ela, os líderes, homens e mulheres, são um “mix” de atributos, alguns mais masculinos e outros mais femininos.

“Porquê é que ainda existem tão poucas mulheres em cargos de liderança?” perguntou. “É falta de competência? Não é, de certeza absoluta, essa a razão. Será que as mulheres têm menos disponibilidade? Pode ser.” Será que têm menos vontade de ir para esse tipo de cargos? Conseguem lidar com as dificuldades dos cargos de liderança de topo? 

“Precisamos de empoderar as mulheres a tomar decisões” salientou Rita Machado de Sá. “A tomada de decisão é um processo difícil, é um processo solitário”, acrescentou, falando do seu caso pessoal. “Espero que a alteração de cultura necessária para chegar ao equilíbrio de género na saúde não demore trezentos anos”, disse para terminar.

A última oradora foi Carla Martins. “Estamos neste momento a assistir a uma transformação social relacionada com questões de género e ainda faz sentido falar da expressão ‘liderança no feminino’”, começou por afirmar esta enfermeira. “Apesar da melhoria do número de mulheres na liderança, o progresso é insuficiente só com as medidas actuais.” 

Segundo o Instituto Europeu para a Igualdade de Género, em 2023, apenas 6,7% dos cargos de direção executiva das empresas de topo portuguesas eram ocupados por mulheres, frisou. A média da União Europeia não é muito melhor: 8,3%. Por outro lado, um estudo muito recente da McKinsey aponta que, em Portugal, o número de mulheres está a diminuir nos cargos de liderança.

Na enfermagem acontece o mesmo. “Temos uma profissão maioritariamente de mulheres, mas os enfermeiros diretores, nos cargos de direção, são na maioria homens. Porquê?”, perguntou Carla Martins.
 
Para ela, a liderança feminina na saúde tem sem dúvida valor acrescentado. “Nós, enquanto mulheres, temos uma perspectiva mais forte de inclusão, de comunicação e de colaboração”, afirmou. “Também conseguimos gerir melhor as crises e não entrar tanto em pânico como alguns homens”.

Além disso, “todos os estudos apontam que nos cargos de direção, sempre que há mulheres envolvidas elas conseguem fazer uma melhor gestão do dinheiro”, acrescentou Carla Martins. E salientou que a liderança feminina na saúde também tem benefícios tangíveis para a qualidade dos cuidados e a satisfação de utentes e profissionais. 

Mas existem barreiras “que não nos permitem avançar”, disse ainda Carla Martins. “E muitos dos factores que não nos permitem avançar são da nossa responsabilidade”, adiantou. “Tive e continuo a ter inúmeras colegas que me dizem ’não sei se tenho tempo, não sei se consigo, não sei como é que vou conseguir gerir as coisas’.” 

“Está na hora de nós próprias acreditarmos que temos a força”, concluiu Carla Martins. “Cada desafio que enfrentamos aproxima-nos de um futuro em que liderar com autenticidade e coragem se tornará a norma e não a exceção para as mulheres”, concluiu.
 

Texto por Ana Gerschenfeld, Health&Science Writer da Fundação Champalimaud.
Mesa Redonda - "Liderança no Feminino. Uma realidade e não uma novidade"
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