25 Janeiro 2024
Melanoma: Não há bronzeado saudável
Entrevista com Daniela Cunha e Miguel Correia, da Unidade de Dermatologia do Centro Clínico Champalimaud.
25 Janeiro 2024
Entrevista com Daniela Cunha e Miguel Correia, da Unidade de Dermatologia do Centro Clínico Champalimaud.
Em Novembro de 2023 decorreu na Fundação Champalimaud um encontro sobre melanoma maligno intitulado “Challenging Malignant Melanoma”, organizado pela Unidade de Dermatologia e dirigido a médicos e investigadores de variadas especializações. Os seus organizadores consideram-no um sucesso e tencionam multiplicar este tipo de eventos de fusão da clínica e da ciência.
O melanoma maligno, o mais letal dos cancros da pele, está a aumentar em todos os países do mundo excepto na Austrália (o país que mais tem apostado na sua prevenção nos últimos 50 anos). Nos Estados Unidos, o número de óbitos por melanoma tem-se mantido estável devido ao desenvolvimento de novas terapias nos últimos anos.
Foi isso que explicou – abrindo o encontro que decorreu no passado mês de Novembro na Fundação Champalimaud – o dermatologista Claus Garbe, que estuda a epidemiologia dos cancros da pele na Universidade de Tubingen. O mau da fita? A exposição da pele aos raios ultravioletas. “Os banhos de Sol não são saudáveis e os protectores solares não ajudam”, sentenciou.
Daniela Cunha e Miguel Correia, da Unidade de Dermatologia da Fundação, que estiveram por detrás da organização da conferência, evocam aqui alguns pontos-chave do evento, nomeadamente no que diz respeito ao futuro da inteligência artificial no diagnóstico precoce do melanoma e às novas terapias moleculares que estão a surgir para o seu tratamento.
Mas também falam da importância da colaboração com os médicos de família no diagnóstico precoce do melanoma, da potencial influência destes profissionais na mudança de comportamentos nefastos – e ainda do papel que a Unidade de Dermatologia, recentemente reformulada, vai ter como “promotora de educação médica de alta qualidade na área do cancro da pele” (nas palavras de Miguel Correia).
O que é que o encontro sobre melanoma, que decorreu recentemente na Fundação Champalimaud, teve de mais relevante?
Acima de tudo, o facto de a abordagem ao tema não ter sido nem estritamente clínica nem estritamente de investigação, mas antes muito translacional e transversal e muito focada na inovação na clínica, na terapêutica e na investigação do melanoma.
O que foi realmente diferente foi termos juntado no mesmo palco peritos do diagnóstico precoce e do rastreio e, ao mesmo tempo, alguns dos maiores especialistas do que de mais inovador se faz na investigação em termos de diagnóstico não invasivo e de imuno-oncologia (a crista da onda em termos de tratamento oncológico).
Foi essa perspectiva de fusão da clínica e da investigação que quisemos imprimir ao evento, porque o benefício para o doente é maior quando temos o melhor da clínica de mãos dadas com o melhor da investigação.
Um dos hot topics foi o papel da inteligência artificial [IA]. Estamos a avançar cada vez mais para uma medicina que vai ser apoiada, na minha perspectiva, pela IA. Por isso, devemos saber utilizá-la com bom senso clínico, em benefício do doente.
Um dos palestrantes nesta área foi Josep Malvehy, director da unidade de dermatologia no Hospital Clínico de Barcelona, que se dedica ao diagnóstico não invasivo. Malvehy falou de dispositivos de diagnóstico auxiliados pela IA – alguns dos quais já em utilização, outros ainda em fase experimental, mas não sem apontar algumas das fragilidades da IA quando aplicada directamente à clínica.
Trata-se de um tema muito actual que é preciso discutir de forma séria, sem cepticismos nem dogmas. E ele fez uma análise muito madura, de quem já está há bastante tempo a trabalhar nisto e tem muita experiência.
Outro palestrante de relevo foi Markus Maeurer – o líder do Grupo de Imunoterapia/Imunocirurgia da Fundação Champalimaud –, que evocou futuras abordagens terapêuticas no campo das vacinas e da terapia celular no caso específico do melanoma. E ainda Bruno Silva Santos, líder de grupo e vice-director do Instituto de Medicina Molecular (IMM), em Lisboa, que falou das principais “avenidas” de investigação em imunologia e cancro e em imunoterapia, um tratamento em que o melanoma teve, digamos, um papel pioneiro em termos de aplicação clínica.
Quando comecei a minha formação, o melanoma metastizado era uma sentença de morte – e é fascinante ver a mudança no tratamento do melanoma, que também se verificou para outros tumores. A imunoterapia tem hoje um papel cada vez mais importante, não apenas no melanoma e nos cancros da pele, mas também noutros tipos de cancro.
Tal como [a Daniela] disse, acho que esta reunião teve um aspecto de fusão entre ciência básica e prática clínica como característica marcante e diferenciadora relativamente às reuniões de atualização científica. E, sobretudo, que mostrou a Unidade de Dermatologia da Fundação Champalimaud como promotora de educação médica de alta qualidade na área do cancro da pele.
Este segundo aspecto parece-me inovador e vai ser continuado. O que eu quero dizer com isto é que o simpósio não foi um acontecimento isolado, mas faz parte de uma sequência de acontecimentos que marca a posição do serviço de dermatologia da Fundação Champalimaud na educação médica a todos os níveis, da medicina geral e familiar ao especialista mais especializado em Oncologia Cutânea.
Já foram feitos estudos comparativos “médico versus máquina” para imagens de lesões específicas. E concluiu-se que, nas lesões mais típicas, a máquina é melhor do que o olho humano. Mas não quando se trata de lesões duvidosas e mais raras, tais como os melanomas amelanóticos, que se podem apresentar apenas como pápulas rosadas. Estes são melanomas atípicos, porque o melanoma é tipicamente uma lesão negra. Ora, nas lesões atípicas, actualmente a máquina ainda falha.
Eu vejo a IA na dermatologia como um parceiro. Não acho que vamos ser substituídos pelas máquinas. A IA é algo que é muito importante desenvolver porque é um grande auxiliar de diagnóstico. Mas o doente não se esgota nas imagens do seu tumor. Nós, quando avaliamos um doente, palpamos a sua pele. Tocamos na pele para perceber se é áspera ou não, a sua textura, pressionamos a pele para perceber se o tumor está mais ou menos infiltrado. Neste momento, ainda não há máquina que possa fazer isso.
Mesmo que venhamos a ter robôs capazes de fazer avaliações tácteis, acho que a IA não nos vai substituir na interação que temos de ter com o doente. Um doente, nomeadamente na área oncológica, é uma pessoa vulnerável e a interação humana é fundamental na gestão das expectativas, na estabilização da ansiedade em relação ao diagnóstico e na forma personalizada como abordamos cada caso.
Acredito que a inteligência artificial venha a ser uma arma de diagnóstico e de terapêutica muito importante no futuro próximo, uma ferramenta que devemos ter ao nosso lado e que devemos acarinhar. Na verdade, já todos nós utilizamos inteligência artifical no nosso dia-a-dia sem nos apercebermos. Pessoalmente, não me sinto ameaçada e julgo que o maior benefício do doente será se a IA trabalhar com o médico e não contra ele.
Há muitos anos que se anda a trabalhar no tema específico das vacinas [não preventivas, mas sim terapêuticas] no caso do melanoma – e os resultados iniciais foram pouco entusiasmantes. Usando a tecnologia do ARN mensageiro [mARN, como se fez com sucesso no caso da vacina contra a COVID] poder-se-á chegar a bom porto. A imunoterapia, essa sim é uma mudança sólida, com provas dadas. A terapêutica celular também tem bastante potencial.
Foram recentemente publicados os resultados de um ensaio clínico em que se testou a combinação de uma vacina de mARN com pembrolizumab (um dos principais fármacos utilizados em imunoterapia). Os resultados são, de facto, entusiasmantes, mas ainda não estamos na fase de utilização terapêutica fora de ensaios clínicos.
Em termos de audiência, planeámos e conseguimos ter essa diversidade e riqueza de backgrounds. Quanto aos médicos de Medicina Geral e Familiar, tendo proximidade com um leque de doentes muito grande, cada médico tem um potencial muito elevado quer de diagnóstico precoce, quer de prevenção, quer de acompanhamento, de um enormíssimo número de doentes. Isso é fundamental.
O que é que o médico de família deve saber? Deve conhecer os sinais de alerta mais importantes para o diagnóstico precoce – tais como uma lesão que se modifica, o chamado “sinal do patinho feio”. O médico de família, quando está a auscultar um doente, olha para as costas desse doente, que está lá porque tem tosse ou por outro motivo e, no meio dos vários sinais que o doente tem, pode identificar que há um que é diferente, porque é muito mais escuro, ou porque é muito maior, ou até porque é mais claro do que todos os outros: é o tal patinho feio no conjunto da ninhada dos patinhos. É importante reconhecer o “patinho feio”.
Os médicos de Medicina Geral e Familiar são uma fonte de identificação precoce, porque nós sabemos que as iniciativas de rastreio do melanoma não são suficientes – e isto não se aplica apenas à dermatologia. É que, de uma maneira geral, as pessoas que vão aos rastreios são aquelas que estão naturalmente mais alertas e que procurariam um médico mais precocemente por causa de um sinal na pele.
Por isso, um dos grandes papéis do médico de Medicina Geral e Familiar é a identificação dos doentes que provavelmente não iriam ao rastreio porque não estão sensibilizados – mas que, por terem outro problema de saúde, vão ter com o seu médico de família e acabam por ser observados.
Além disso, os médicos de família podem incentivar os seus doentes a observarem a sua própria pele. Não é possível fotografarmos a totalidade da pele de toda a população, por isso é importante que cada pessoa tenha alguma atenção aos seus sinais, para ter uma noção se existem modificações ou sinais novos. Ou seja, ensinar os doentes a olhar para a sua pele também é fundamental e uma sensibilização importante pelos médicos de Medicina Geral e Familiar.
Há também as medidas de cuidado com o sol que o médico de família pode transmitir, tais como evitar a exposição ao sol nos horários de maior risco, usar vestuário protector, chapéu, óculos escuros e obviamente aplicar e reaplicar protector solar nas áreas expostas. Portanto, os médicos de família são fulcrais na educação para a prevenção e diagnóstico precoce do melanoma.
Quero acrescentar que o médico de família é o médico da comunidade. Ora, o comportamento de prevenção em relação ao cancro da pele, designadamente no tocante à exposição ao sol, só se consegue modificar em momentos-chave. E o momento-chave na vida da família e na vida da comunidade é quando há um diagnóstico de cancro da pele em alguém muito próximo. E aí, o médico de família é o técnico de saúde mais bem colocado para conseguir aproveitar esse momento e fazer educação para a saúde a toda a família e à comunidade próxima. Por isso, deve estar capacitado para o fazer.
Acredito que eventos como este simpósio, abertos à Medicina Geral e Familiar, dotam os médicos de família da capacitação académica e da motivação para ajudar junto das comunidades com quem contactam a mudar os seus comportamentos de risco. De modo que acho que o médico de família é fundamental para combater o cancro da pele desde as fases mais precoces.
Depende do significa o termo “sensibilizado”. Se quer dizer “ter conhecimento de”, duvido que haja algum cidadão em Portugal que não tenha conhecimento de. Se quer dizer mudar o comportamento em função disso, a conversa é completamente diferente.
Mudar os comportamentos é muito difícil. São hábitos muito enraizados, muito culturais. Essa coisa de ir à praia, de jogar à bola de tronco nu… Como já disse, mudar isso só é possível em momentos de crise. E o médico de família consegue-o melhor do que as campanhas. “A tua irmã teve um cancro, como é que isso foi? Faz-me lembrar os escaldões que eu apanhei, se calhar isso teve importância. Vou já contar à minha família o que aconteceu à Maria e dizer-lhes para terem cuidado.” É assim é que funciona, é assim que se mudam comportamentos. E é o médico de família quem fala da Maria, do João e do Joaquim, não é a campanha de prevenção na televisão.
O melanoma é efectivamente mais frequente em pessoas de pele mais clara, olhos claros, sardentos, os ruivos também são muito mais vulneráveis, muito mais suscetíveis a ter cancro da pele e em particular melanoma. Uma pele mais morena tem, só por esse facto, um risco menor, mas o risco existe!
E há outro aspecto fundamental que vai contra essa ideia [do risco inexistente]. É que, independentemente da cor da pele, as pessoas hoje vivem muitíssimos mais anos do que antigamente. E por isso, mesmo que a pessoa seja muito morena e menos susceptível de ter um cancro de pele aos 50 ou aos 60 anos, pode tê-lo aos 80 ou 90. Nós vemos hoje uma explosão de cancros da pele em pessoas de idade avançada moreníssimas. De modo que o ser moreno... Mas eu não creio que seja esta a questão que faz com que as pessoas vão ou não à praia. É muito mais irracional do que isso.
Há uma razão muito mais relevante para as pessoas irem à praia e exporem-se ao sol apesar do perigo: na sociedade ocidental, uma pessoa que está um morena, um bocadinho bronzeada, é comumente considerada ter “boas cores” e um ar saudável. Mas se estiver branquinha está com um ar doente. Este preconceito, que hoje está demasiadamente interiorizado na nossa sociedade, é uma associação completamente errónea.
Outro conceito errado e que interfere na avaliação de risco pelas pessoas, mesmo sabendo que o risco de cancro da pele existe, é a ideia de que ir à praia faz bem aos ossos. Que o iodo das praias faz bem aos ossos; que as crianças precisam de apanhar o ar do mar e precisam de apanhar sol para terem mais vitamina D. Na verdade, a vitamina D é sintetizada na nossa pele em resultado da exposição à radiação UV, mas 15-20 minutos por dia são suficientes e não é necessário ficar bronzeado ou com queimadura solar para obter esse efeito. E como vitamina D também pode ser obtida de diferentes formas, nomeadamente por via alimentar, e não é necessária exposição solar excessiva, que aumenta o risco de desenvolver cancro da pele.
Não há bronzeado saudável, isso não existe. O bronzeado é um mecanismo de defesa à radiação eletromagnética UV que fez com que o corpo se procurasse defender. É um mecanismo de defesa de uma pele que foi agredida. Repito: não há bronzeado saudável.
Ao mesmo tempo, é irónico que exista toda uma indústria cosmética gigante, que vende mais do que a indústria do medicamento, para corrigir as alterações da aparência da pele – a esmagadora maioria das quais associadas à exposição ao Sol…
Anteriormente, a Unidade de Dermatologia acompanhava casos de cancro da pele, mas também com outras doenças cutâneas. Mas desde há sensivelmente um ano que temos uma nova equipa, dedicada ao diagnóstico e tratamento do cancro da pele.
A realização de eventos como este simpósio sobre melanoma está integrada num dos princípios fundamentais da Unidade de Dermatologia, que é a educação em dermato-oncologia.
Exatamente, já houve outros antes deste e haverá outros depois deste. A nossa é uma Unidade de excelência em dermatologia oncológica e também contribui para o conhecimento da comunidade médica na matéria. Não fica com o conhecimento para si, ajuda a difundir esse conhecimento porque é na partilha que todos nós evoluímos. E essa é uma linha que a Unidade de Dermatologia da Fundação Champalimaud está claramente a trilhar. Pode ter a certeza que assim continuará.