24 Agosto 2023

Noventa por cento dos cancros ocorrem acima dos 50 anos de idade

As pessoas não têm bem noção de quão ligados estão o cancro e o envelhecimento, diz António Parreira, Director Clínico do Centro Clínico Champalimaud. Há contudo formas de fazer diminuir a probabilidade individual de virmos a contrair a doença ao longo da vida.

António Parreira, Clinical Director of the Champalimaud Clinical Centre

Entrevista a António Parreira, Director Clínico do Centro Clínico Champalimaud. 

Há cada vez um maior número de casos de cancro? A que se deve esse aumento?

Há. Sabemos que esse aumento existe. A questão é tentar perceber de que forma é que podemos, não só compreender esse fenómeno, como também de alguma forma minimizar os seus efeitos.

Este fenómeno tem a ver com o envelhecimento. O desenvolvimento de cancros é uma das consequências muito diretas do envelhecimento.

A realidade é impressionante: menos de 5% de todos os cancros ocorrem na idade infantil – ou seja, abaixo dos 12, 15 anos. E 90% dos cancros que afligem a espécie humana ocorrem acima dos 50 anos de idade. 

Se nós analisarmos as curvas de incidência do cancro de mama, cancro do pulmão, cancro intestinal, cancro do estômago, cancros hematológicos, cancros do útero, do ovário e por aí fora, o que  vemos é que o número de casos por 100.000 habitantes aumenta com a idade. Só se verifica uma descida a partir dos 90, 95 anos.

Talvez a exceção sejam alguns casos de cancro de mama que ocorrem em mulheres mais jovens, provavelmente devido a defeitos no património genético que aumentam o risco de ocorrência de cancros nos mais jovens. Da mesma maneira, é bem sabido que certos cancros hematológicas ocorrem em pessoas mais jovens.

Porém, muitas vezes as pessoas não têm noção disso. Sabem que o cancro é mais frequente nas idades mais avançadas, mas não têm uma percepção muito clara do que isso representa, nem das razões pelas quais acontece. E isto não é uma teoria, são factos, que fazem com que hoje em dia, muitos centros de investigação e muitos cientistas estudem a relação cancro-envelhecimento. 

Por que é que o cancro aumenta com a idade? 

Isso acontece por razões de natureza biológica e há neste momento uma bibliografia relativamente extensa sobre este assunto.
 
Como sabemos há já muitos anos, o cancro é genuinamente uma doença causada por mutações nas células do nosso corpo. Ora, as mutações acumuladas vão criar condições para que a regulação do funcionamento das células seja insuficiente ao ponto de poderem começar a proliferar e crescer sem respeitar a harmonia do organismo. Tornam-se como aliens capazes de destruir os tecidos à sua volta e às vezes à distância – acabando por conduzir à morte da pessoa.

Nas idades mais jovens, na vasta maioria dos casos, estes defeitos são felizmente reparados por sistemas de reparação do ADN: sistemas intrínsecos das próprias células, mecanismos de defesa que dependem das células que estão à volta das células em que essas anomalias ocorrem – o chamado “microambiente tumoral” – que têm a ver essencialmente com células que intervêm no processo de resposta imunitária.

Uma das coisas interessantes que é preciso mencionar é que, de facto, a razão porque nós não temos, em geral, cancro em idades mais jovens é porque, nessa fase da vida, o conjunto de mecanismos de defesa contra a emergência do cancro é particularmente robusto.

Como é que isso explica esta robustez nos jovens?

O facto desses mecanismos serem tão extremamente robustos nos jovens tem provavelmente a ver com a conservação da espécie do ponto de vista evolutivo. Por outras palavras, com a necessidade de preservar a normalidade do nosso corpo durante a nossa vida reprodutiva, para podermos procriar e perpetuar a nossa espécie. 

Assim, há quem defenda que a razão pela qual estes mecanismos perdem robustez e eficácia a partir dos 50 ou 60 anos de idade é porque já não estamos em idade de procriar. Já não há uma pressão seletiva da evolução darwiniana na preservação dos organismos. Já procriaram, já não fazem falta. 

Concorda com esta teoria?

É apenas uma explicação possível. Mas é um facto que o aumento do cancro com a idade tem a ver com fenómenos subjacentes aos nossos processos de envelhecimento. Sabemos que os mecanismos de reparação que o nosso corpo possui vão perdendo eficácia após as primeiras décadas da vida. A própria estrutura dos tecidos vai-se tornando mais frágil. 

E em cima disto, nós acrescentamos muitas vezes fatores de natureza ambiental, de hábitos de vida, que vão fazer ainda mais estragos, porque vão contribuir para o aumento da probabilidade de mutações capazes de conduzir a anomalias que estão na base do cancro.

Com as pessoas a viver cada vez mais e a população a envelhecer, o cancro pode tornar-se na principal causa de morte nos países ricos?

Sim. Actualmente, a principal causa de morte ainda são as doenças cardiovasculares. Mas rapidamente, isso pode deixar de ser e provavelmente não estejamos a muitos anos de passarmos a ter o cancro como principal causa de morte.

É possível combater o envelhecimento do corpo para evitar isso?  

Já temos formas de combater certos aspectos do envelhecimento. Podemos diminuir as suas repercussões negativas. Há muitos exemplos disto. Quando os nossos olhos se enchem de cataratas, o oftalmologista consegue remover o cristalino danificado e substitui-lo por uma lente artificial. 

Quando temos uma articulação praticamente destruída pelo envelhecimento, um ortopedista pode substituir o joelho ou a nossa anca para continuarmos a ter qualidade de vida. Os exemplos são inúmeros.

Nós contrariamos esses efeitos do envelhecimento, sim, mas do ponto de vista biológico, aí já não chega. Pelo menos por enquanto. Há uma realidade biológica que nós não sabemos controlar, nem temos capacidade de modificar.

Se não conseguimos alterar a biologia, o que podemos fazer para contrariar o aumento, ao longo do tempo, da probabilidade de ter cancro?

Podemos manter uma vida saudável para que o nosso organismo tenha uma melhor resistência ao aparecimento da doença: mantermo-nos activos, com exercício físico regular, evitando comer em excesso, evitando os riscos ambientais – pelo menos aqueles que conseguimos evitar, como seja o consumo de tabaco e, dentro do possível, a poluição atmosférica, etc. E evitar a obesidade, que é um factor indiscutível de maior risco para vários tipos de cancro, não só pela obesidade em si, mas também pela inflamação que a obesidade acarreta.

Tal como muitos outros predadores na natureza, fomos evoluindo num estado de permanente fome, de permanente carência. Fomos – e ainda estamos – biologicamente “programados” para estar sempre com fome. Portanto, a partir do momento em que o acesso à comida se tornou fácil, porque é só abrir a porta do frigorífico e servirmo-nos, ficámos condenados a ter uma taxa de obesidade crescente nas sociedades mais desenvolvidas economicamente. 

A probabilidade de qualquer um de nós desenvolver cancro hoje em dia, ao longo da vida, é de uma em duas ou três. Não é propriamente uma coisa rara. Todos sabemos que podemos vir a ter. E quanto mais tempo vivemos, repito, mais probabilidades temos de contrair cancro. 

Pode também fazer-se vigilância.

Sim, uma outra coisa importante é de facto a vigilância, que nos proporciona oportunidades de diagnóstico muito precoce do cancro. E o diagnóstico precoce consegue fazer com que, em muitas circunstâncias, tenhamos uma oportunidade temporal (muito pequena) para termos sucesso com um tratamento curativo.

Numa fase muito inicial, o cirurgião consegue extrair totalmente o cancro. Os doentes ficam clinicamente curados e às vezes verdadeiramente curados. Isto aplica-se no caso do pulmão, mas também no caso do estômago e da mama, da próstata e do ovário – e mesmo do pâncreas, que é um cancro muito letal.

Hoje em dia, já temos alguma facilidade em detectar as formas iniciais de certos cancros, por exemplo o cancro da mama, e há portanto programas de rastreio que permitem, através de exames sistemáticos, mesmo antes do cancro surgir, detectar sintomas precursores. O mesmo acontece com os tumores do estômago, do cólon e mesmo do pulmão, embora este último já seja mais difícil de detectar precocemente.
 
Em particular, o cancro do cólon, mesmo detectado já em fase cancerosa, se o tumor for muito localizado, ele pode ser removido totalmente.
 
Com a próstata já não é tão fácil. Apesar de tudo, temos um indicador no sangue relativamente robusto: o PSA. E se um homem, a partir dos 45, 50 anos, for vigiado através da medição do PSA, isso pode permitir, numa vasta maioria dos casos, detectar o início do cancro. E como este cancro é em geral de evolução relativamente lenta, a possibilidade de encontrar a janela de tratamento eficaz é maior do que nos cancros de evolução mais rápida. 

Hoje em dia, o cancro não é uma sentença de morte.

Podemos prevenir o cancro através da avaliação do nosso risco de vir a ter cancro?

Nas pessoas com história familiar de cancro, em particular, uma maneira de tentar prevenir a doença é fazer uma avaliação do seu risco individual. É mais um instrumento para optimizar as estratégias de vigilância.

Se soubermos que uma pessoa tem uma alteração hereditária em determinados genes que faz aumentar a probabilidade de desenvolver um determinado tipo de cancro – por exemplo, no caso do cancro da mama, mutações nos genes BRAC1 e BRAC2 –, isso justifica uma vigilância mais precoce e até, por vezes, a remoção do órgão antes da sua eventual ocorrência. 

[Na Fundação Champalimaud, existe um programa de avaliação e gestão de risco oncológico, o Oncorrisco – ver aqui mais pormenores: https://fchampalimaud.org/pt-pt/clinical_programs/programa-de-oncorrisco]

Acha que, em Portugal, as pessoas percebem a importância de fazer prevenção do cancro? 

Em Portugal, a população sabe e tem consciência de que é preciso fazer prevenção. Eu acho que, nesse aspeto, a população portuguesa tem mostrado um grande nível de maturidade e que os programas de rastreio que têm sido feitos têm um nível de adesão bastante grande.
 
A população portuguesa tem uma atitude, eu diria, fortemente positiva em relação a isso.

Entrevista por Ana Gerschenfeld, Health & Science Writer da Fundação Champalimaud.
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