09 Janeiro 2025

O estado da água? Alarmante

A série dos Ar Events da Fundação Champalimaud encerrou 2024 com um serão sob o título “O Estado da Água”. É necessária uma acção urgente, defenderam os oradores convidados, para garantir que os governos dão prioridade à gestão da água.

O estado da água? Alarmante

A água é a matriz do nosso planeta. A vida humana em sociedade, bem com todas as formas de vida existentes na Terra, dependem da água. E, embora continuemos a considerar a sua disponibilidade como um dado adquirido, trata-se de um recurso que se está a tornar rapidamente escasso devido às alterações climáticas, à agricultura intensiva e às desigualdades de acesso à água para beber, cozinhar e para a higiene pessoal.

A água cobre 70% da superfície da Terra. Os oceanos e os mares representam 97,5% do total dos recursos hídricos, os restantes 2,5% são água doce. E desta pequena percentagem, apenas uma minúscula parte está disponível sob a forma de água acessível e imediatamente consumível.

\O último dos Eventos Ar 2024 na Fundação Champalimaud (FC), que decorreu em novembro, foi dedicado ao “Estado da Água”. Sob a orientação de Laura Silva, técnica de investigação do Laboratório de Neurociências de Sistemas da FC, o evento iniciou-se com uma curta introdução ao tema, seguida de um filme de 30 minutos intitulado “Esta é uma história sobre a água”, realizado por Samuel Viana, do Departamento de Artes Performativas da Universidade de Évora, e pela cineasta americana radicada na Irlanda Kathleen Harris. 

Seguiram-se as palestras de Samuel Viana e de Catarina de Albuquerque, uma das principais defensoras do direito à água e ao saneamento, atualmente CEO da Sanitation and Water for All (uma parceria global de governos, doadores e organizações da sociedade civil).

Urina de dinossauro reciclada

Laura Silva disse uma coisa que nem toda a gente sabe: “a primeira água que apareceu na Terra é praticamente a mesma que temos hoje. A água que temos agora e a água que os primeiros seres que apareceram neste planeta tinham, bem como a água que vamos ter no futuro previsível, é a mesma”.

Mais tarde, Catarina de Albuquerque acrescentaria com humor que, quando ela fala com crianças, diz-lhes que hoje “estamos a beber urina de dinossauro reciclada”.

A natureza tem a capacidade de reabastecer os reservatórios de água doce através de um processo de reciclagem infinito chamado ciclo da água. “A água evapora-se principalmente vinda do oceano, condensa-se em nuvens na atmosfera e, quando as nuvens estão demasiado carregadas de água, precipita-se de volta à Terra sob a forma de chuva, neve ou graniço”, explicou Laura Silva. “De volta à Terra, a mesma água escorre e reabastece rios, lagos e oceanos, ou infiltra-se no solo, preenchendo os reservatórios de água subterrânea.”

“Esta é a forma que a natureza tem de transformar a água salgada em água doce, a água que todos os seres terrestres podem consumir”, concluiu.

Viver com escassez de água

O documentário de Samuel Viana e de Kathleen Harris é um olhar sobre o quotidiano das populações do sudoeste alentejano, nas imediações da barragem de Santa Clara, perto de Odemira. Estas populações estão a sofrer com a escassez de água, uma vez que a agricultura intensiva em estufas de uma empresa americana, no litoral alentejano – para mais, num parque natural protegido –, está a retirar cada vez mais água da barragem (originalmente construída para irrigar a agricultura no interior) para cultivar abacates e pequenos frutos vermelhos destinados à exportação.

Depois do visionamento, foi a vez de Samuel Viana subir ao palco. “Antes de ir viver para o Alentejo, não pensava muito na água”, disse. “A água era uma coisa que saia das torneiras como que por magia. Mas quando me mudei para lá, comecei a perceber que a água é de facto uma questão muito política e que a gestão da água é ao mesmo tempo um catalisador e um reflexo de algumas das desigualdades na nossa sociedade.”

Uma lição que aprendeu com a rodagem do documentário, acrescentou Samuel Viana, foi que “temos uma reserva de água cada vez menor, que estamos literalmente a exportar sob a forma de abacates e bagas para países do Norte, muitas vezes ricos em água”.

O realizador reflectiu ainda que, neste processo, “a população migrante que não está integrada na nossa sociedade torna-se vulnerável à exploração”. 
Como resumiu um entrevistado local no documentário: “Temos este enorme problema da barragem de Santa Clara, cuja água é canalizada para as estufas existentes num parque natural. E há todos estes migrantes a serem explorados. Isto é tudo tão absurdo”.

“(...) Estamos a ser demasiado bondosos, permitindo que todas estas grandes multinacionais venham explorar, destruir e utilizar excessivamente os recursos naturais. “Começo a pensar que isto é uma loucura total. Os rios estão a desaparecer e estão a ser mal utilizados, maltratados. (...) A água não é um recurso económico. A água é vida e é para todos”.

Para Samuel Viana, é óbvio que o problema da escassez e da má utilização da água, agravado pelas alterações climáticas, não pode ser resolvido de forma eficaz e séria sem vontade política e sem a libertação de fundos públicos. “Tenho esperança de que nos possamos coordenar para resolver este problema colectivo”, concluiu.

Um estado alarmante

“Qual é o estado da água?”, perguntou a seguir Catarina de Albuquerque. “Posso dizer-vos que o estado da água é alarmante – e vimos isso no documentário do Sam”.

Há quase 15 anos, lembrou à audiência, a água e o saneamento foram reconhecidos como direitos humanos pela Assembleia Geral das Nações Unidas. No entanto, em comunidades marginalizadas de todo o mundo, as mulheres continuam a ter de andar quilómetros para ir buscar água, as raparigas não podem ir à escola quando têm o período por falta de saneamento adequado – e itsto levanta questões fundamentais de igualdade de género. Os povos indígenas também lutam pelo acesso à água.

Quando as pessoas se inscreveram no evento, os organizadores fizeram-lhes algumas perguntas. Uma delas era quantas pessoas achavam serem afectadas pela escassez de água. De acordo com o WWF (World Wide Fund), cerca de 2,7 mil milhões de pessoas enfrentam escassez de água durante pelo menos um mês por ano, e este número pode vir a aumentar para dois terços do mundo em 2025. A opinião do público dividiu-se principalmente entre os que seleccionaram a resposta mais próxima de três mil milhões de pessoas afectadas pela escassez de água e os que escolheram mil milhões (ver fig.1). Curiosamente, quanto mais jovem era o inquirido, maior era a probabilidade de este subestimar a escala da crise da água.

Plot 1
fig. 1

“A crise climática é, na sua essência, uma crise da água”, prosseguiu Catarina de Albuquerque. “O aumento das temperaturas, a precipitação errática, as inundações avassaladoras e as secas graves estão a criar uma enorme pressão sobre os recursos hídricos.”

O público partilhava esta posição: quando lhes foi previamente perguntado o que, na sua opinião, mais tem contribuído para a escassez de água – alterações climáticas, globalização ou aumento da população mundial –, a maioria considerou que as alterações climáticas eram a principal causa da escassez de água (ver fig. 2).

Plot 2

 

fig. 2

À medida que os reservatórios secam e o acesso à água diminui, a própria água torna-se um alvo e motivo de conflito. “De acordo com o Índice Global da Paz, a violência relacionada com os recursos hídricos aumentou em 150% só no último ano.”

A situação da água em Gaza, onde as bombas israelitas estão a destruir as infra-estruturas de bastecimento de água e de saneamento, é um exemplo disso. (...) Israel tem vindo a cortar ou a limitar o abastecimento de água” numa região que já lutava pelo acesso à água antes do actual conflito. Tendências semelhantes podem ser observadas na Ucrânia e na região do Sahel, em África, acrescentou.

Catarina de Albuquerque sublinhou a urgência em estabelecer a alocação dos usos da água de acordo com as normas dos direitos humanos. “Actualmente, entre 80% e 90% das captações de água são utilizadas para irrigação, enquanto apenas 10% da água é utilizada para consumo humano directo”, afirmou. “Precisamos de ter a coragem de exigir que os nossos líderes dêem prioridade à água e ao saneamento como direitos humanos.”

Esta falta de prioritização não é um problema de tecnologia, capacidade ou conhecimento, segundo Catarina de Albuquerque. “É uma falha de vontade política”, concordou com Samuel Viana. “E acredito que os movimentos da sociedade civil podem pressionar os governos a fazer as coisas de forma diferente.”

“A água é a base da dignidade humana, da paz e da sobrevivência”, concluiu Catarina de Albuquerque. “Estamos no ponto de viragem. Podemos deixar que esta crise se aprofunde ou aproveitar este momento para construir um futuro que valorize a resiliência, a justiça, os direitos humanos, a sustentabilidade. E este não é um problema distante. Já está aqui. É agora”.

Assistam ao evento completo aqui.

Texto por Ana Gerschenfeld, Health & Science Writer da Fundação Champalimaud.
The state of water
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