06 Agosto 2021

“O tabagismo é de certeza um factor de risco determinante do cancro do pulmão, mas não é a causa”

Entrevista com Nuno Gil, Diretor da Unidade de Pulmão

Entrevista com Nuno Gil, Diretor da Unidade de Pulmão

O cancro do pulmão é hoje o cancro que mais mortes causa no mundo. E 80% das suas vítimas são fumadores, o que faz do tabagismo um factor de risco determinante para este cancro. Mas segundo o médico Nuno Gil, o oncologista que dirige a Unidade de Pulmão no Centro Clínico Champalimaud, o tabagismo não é, porém, a derradeira causa do cancro do pulmão – dado que, por um lado, muitos fumadores nunca desenvolvem cancro do pulmão e por outro, um número crescente de “nunca fumadores” padece hoje desta doença. Nuno Gil gostava imenso de desvendar este mistério.

Quem conversa com Nuno Gil percebe logo a sua grande empatia pelas pessoas e em particular pelos seus doentes. Não é fácil dar a alguém a má notícia de que tem um cancro do pulmão e é preciso muita humanidade para ajudar o doente a lidar com ela. 

O cancro do pulmão pode ser muito agressivo e é frequentemente detectado já em fase avançada. As estatísticas de sobrevivência também não são muito alentadoras. Mesmo assim, tem certamente havido avanços, nos últimos anos, no tratamento de certos tipos de cancro do pulmão – e a qualidade de vida dos doentes tem melhorado. Nuno Gil falou connosco desses avanços, e evocou ainda uma potencial nova abordagem de rastreio que está a ser desenvolvida pela sua equipa e que poderá melhorar o diagnóstico precoce do cancro do pulmão.

Os casos de cancro do pulmão têm vindo a diminuir nos últimos anos, indubitavelmente devido à redução do tabagismo, um factor de risco determinante. Mas isso não chega para Nuno Gil, que aos 62 anos pensa que a verdadeira causa do cancro do pulmão ainda não foi identificada.  

No fundo, as células cancerosas confundem Nuno Gil, que gostaria um dia “de lhes perceber a lógica”. Dividem-se, multiplicam-se e a seguir espalham-se, e o resultado final é a sua própria morte – ao contrário dos vírus, que infectam cada vez mais hospedeiros e não desaparecem. “Acho isso tão esquisito!”, exclama.

Nuno Gil considera esta questão um grande mistério e acredita que não será possível acabar com o cancro do pulmão enquanto o mistério perdurar. Também propõe pistas inéditas para o tentar desvendar.

Qual é o ranking actual do cancro do pulmão na mortalidade por cancro?

É número um no mundo. O cancro da mama, que é mais frequente, é menos mortal porque pode ser diagnosticado precocemente. Mas se há um sintoma relativamente frequente em cancro do pulmão, é a tosse. E uma tosse… pode ser uma alergia, o efeito de um medicamento contra a hipertensão e tantas outras causas. 

Existem diversos tipos de cancro do pulmão? 

Sim. A divisão do cancro do pulmão em subtipos tem evoluído ao longo da história. Basicamente, em meados do século passado, nós dividíamos o cancro do pulmão em dois grandes grupos: tumores de células pequenas e tumores – carcinomas – ditos de células “não pequenas”. Ninguém sabe por que os tumores de células pequenas têm células pequenas. Estranho, não é?
 
Há ainda vários subtipos de cancros de células “não-pequenas”. Inicialmente, o subtipo dominante era o carcinoma escamoso, cujas células são planas e achatadas (ao passo que as células do aparelho respiratório são cilíndricas). Assemelham-se às células da pele e são também chamados de “epidermóides”. Mas nos últimos tempos, foi o adenocarcinoma, que é feito de células cilíndricas, que se tornou o subtipo mais vulgar. Porquê, ninguém sabe.

Há portanto quatro tipos de cancro do pulmão?

Havia. Talvez a partir da primeira década deste século, começou-se a compreender que havia diversas variantes de adenocarcinomas, caracterizadas por mutações genéticas específicas. Não se trata de um delírio de classificação: nestas variantes de adenocarcinoma, a natureza das células é diferente, a história natural da doença é diferente. Por exemplo, nós já começamos a ter uma ideia de quais são as sobrevivências medianas para algumas delas. Sabemos que a sobrevida mediana no adenocarcinoma com mutação num gene chamado EGFR andará nos 22 a 24 meses. Mas se a pessoa tiver a variante que tem uma mutação num outro gene, chamado ALK, a sobrevivência mediana são 81 meses. O que significa que há doenças diferentes dentro desta amálgama que nós chamávamos inicialmente de carcinoma de não pequenas células.

E essas podem ter tratamentos diferentes?

Sim. A diferença é sobretudo que, havendo mutações conhecidas, tem havido cada vez mais fármacos próprios que tentam anular o seu efeito. Já há tratamentos específicos para cerca de dez destas variantes com mutações.

Se quiséssemos ser exactos na classificação, devíamos dizer que existem provavelmente muitas mais variantes, porque não há cancro sem mutações. Mas a distinção da variante só é feita quando existem fármacos específicos contra a mutação. A classificação actual está dependente dos tipos de fármacos próprios utilizados.

Quantas pessoas morrem de cancro do pulmão por ano em Portugal?

Segundo os dados do Globocan de 2020, em Portugal faleceram quase 4800. A incidência (número de novos doentes diagnosticados) foi de 5400, portanto a taxa de mortalidade é muito grande.

Se o cancro do pulmão fosse diagnosticado mais cedo, seria menos mortal?

Sim. Um dos dogmas da oncologia é que quanto mais cedo se detectar esta doença, maior a probabilidade de cura. Isso é geral para todos os tumores. Primeiro problema: como é que se faz para detectar a doença cedo? E antes dessa pergunta, outra: quem são as pessoas em risco de apanhar essa doença? No cancro do pulmão, nós até temos uma facilidade, que é a relação desse risco com o tabagismo. 

O tabagismo é a causa do cancro do pulmão? Ou há também muitos doentes que nunca fumaram?

Vou dizer uma heresia [põe a mão na testa e ri-se]: não acredito que o tabaco seja a causa do cancro do pulmão. Por que é que eu digo isto? Bom, contra o meu argumento, temos um número: em 100 casos de diagnóstico de cancro do pulmão, 80 são de pessoas que fumam ou fumaram. Ao dizer isto, já estou a contradizer o que acabei de dizer a propósito da relação causal.

Mas agora, vamos pensar ao contrário e perguntar: em 100 fumadores de uma vida inteira, quantos é que vão ter um diagnóstico de cancro do pulmão ao longo da sua vida? (Um fumador da vida inteira começa a fumar, digamos, aos 18, e termina aos 80, que é a esperança de vida média.) Repito a pergunta: em 100 fumadores de uma vida inteira, sabe quantos vão ter um diagnóstico de cancro do pulmão? Em Portugal, estima-se que sejam quinze por cento. E na Suécia, oito por cento. 

Dito de outra forma, se a maioria das pessoas que é exposta a uma suposta causa não sofre a consequência, então essa suposta causa não pode ser a causa. O tabagismo é com certeza um factor de risco determinante do cancro do pulmão, mas não é a causa. Faz sentido, não faz? Quem fuma está mais propenso a ter cancro do pulmão, mas fumar por si só não é uma razão suficiente para se ter a doença: os restantes 85% dos fumadores nunca irão apanhar cancro do pulmão. E isso levanta questões intrigantes: qual foi o segredo deles?

Claro que, quando olhamos para as estatísticas da incidência do cancro do pulmão e comparamos fumadores com não fumadores, vemos que a incidência do cancro do pulmão tem vindo a descer ao longo dos anos, em paralelo com a descida da taxa de fumadores. Isso tem acontecido de uma forma clara no sexo masculino há já décadas e também se verificava para o sexo feminino até há uns dez anos. E claro que acredito que essa descida é fruto das campanhas anti-tabaco, que chamam a atenção para o risco. Apesar de não ser a causa, o tabagismo é um forte factor de risco.

Na sua Unidade, vêem muitos doentes com cancro do pulmão que não são fumadores nem nunca foram?

Vemos. Há coisa de dez anos, começámos a ver uma coisa interessante: a taxa de cancro do pulmão a aumentar em nunca fumadores, sobretudo no sexo feminino. E esse é um assunto que não tem resposta – não só relativamente à causa, mas sobretudo porque significa que nós não estamos a dar uma resposta adequada em termos de diagnóstico precoce. Porque os estudos que favorecem o screening por TAC do cancro do pulmão estão dirigidos prioritariamente aos fumadores, activos ou passados, de acordo com o número de cigarros que fumam. No caso dos nunca fumadores, a suposta “causa” do tabagismo nem sequer se coloca e portanto essas pessoas ficam fora dos planos de diagnóstico precoce. Esta é, para mim, a população mais afligida, embora não seja a mais frequente.

Há rastreio do cancro do pulmão para fumadores em Portugal?

Não há rastreio do cancro do pulmão em Portugal, ponto – por mais que os estudos médicos que foram feitos tanto nos Estados Unidos como na Europa tenham demonstrado a redução da mortalidade graças ao rastreio. Mas, mesmo que houvesse, não seria para nunca fumadores. Esses estariam sempre fora de uma oferta de diagnóstico precoce.

No entanto, os doentes mais frequentes continuam a ser os fumadores... Acha que esta tendência vai inverter-se?

Os números têm sugerido isso. Tanto assim que aquela percentagem inicial que eu dei de 80% de fumadores contra 20% de não fumadores está a descer para os fumadores: já vamos mais ou menos nos 75/25. Portanto, o que vai acontecer é que o número de cancros do pulmão em nunca fumadores vai aumentar. Claro que podemos especular que, apesar de não serem fumadores, fumam os gases de escape e a poluição das grandes cidades…

E o tabagismo passivo?

O tabagismo passivo é muito difícil de quantificar. Depende não só da quantidade que fuma a pessoa que está a fumar, mas do ambiente onde a pessoa passiva vai receber o fumo do fumador activo. Se estiver numa sala fechada não sei quantos dias seguidos é uma coisa, mas se estiver numa área aberta, ampla, arejada, se calhar o risco é diferente. É muito difícil quantificar esse risco e por isso é que os estudos que têm olhado para ele dão percentagens de risco que variam entre 5% e mais de 20%. São margens enormes. 

Se fumar é um factor de risco determinante mas não uma causa do cancro do pulmão, o que é que há para além do tabagismo por detrás do cancro do pulmão? 

Aquilo que tem sido falado é a questão da poluição e há vários estudos que têm olhado para a exposição aos gases de escape dos automóveis, nomeadamente dos diesel. Há também a exposição ao amianto, que tem sido muito utilizado na construção civil, naval, etc.. O amianto também é um factor de risco. E também o é a exposição a um gás natural chamado radão, um gás radioactivo que aparece sobretudo nas terras graníticas – e ainda a exposição a certos químicos.

São todos factores ambientais.  

O cancro do pulmão é um problema ambiental; não é um problema genético no sentido heredo-familiar. É ambiental porque até hoje, não foram descritas nenhumas mutações, como da mama por exemplo, que são transmissíveis de geração em geração e que são um factor de risco para o aparecimento da doença. E nós já estamos numa fase em que quase todo o genoma já foi compreendido – ou pelo menos em boa parte.

Não há casos de cancro do pulmão hereditário, portanto.

Só há um caso descrito na literatura mundial, que vem do Japão, de uma doente que tinha um adenocarcinoma com uma determinada mutação - no gene EGFR - e cujo filho também tinha um cancro do pulmão com a mesma mutação.

Mas também, podemos perguntar, ainda relativamente ao tabagismo enquanto causa, se os países onde se fuma mais são os que têm maior incidência de cancro de pulmão. Não são. Não há uma concordância directa. E sabe qual é a zona de Portugal com maior incidência de cancro do pulmão em relação ao número de habitantes – e de todos os cancros, já agora? Os Açores. 

Isso tem explicação?

A DGS pensa na hipótese de que, como existe mais consanguinidade, visto que são ilhas, a menor diversidade genética facilita o aparecimento de mais doenças. E também há outra razão possível no caso do cancro do pulmão: é o único sítio de Portugal onde se cultiva tabaco neste momento. Há tabaco açoriano e creio que a acessibilidade ao tabaco é maior e o seu preço mais baixo. Portanto, eventualmente, pode ser um sítio onde se fuma mais, o que faz aumentar o risco. Nós próprios tentámos fazer esse trabalho epidemiológico, mas não existem dados suficientemente exactos por concelho.

O facto de fumar pode não ser a causa do cancro do pulmão. Mas isso não significa que não se deva defender as campanhas contra o tabaco, pois não? 

Se quisesse filosofar, diria assim: fumar é um hábito ancestral da humanidade, certo? Até para fins medicinais. Ora, do ponto de vista da biologia evolutiva, um hábito que é prejudicial à espécie, das duas uma: ou se extingue o hábito, ou se extingue a espécie. Mas ainda hoje se fuma. E mais: nós vemos, naqueles programas do National Geographic, populações isoladas onde toda a gente fuma desde criança. Ora, não sei se há lá muitos cancros de pulmão...

O problema pode não ser o fumar em si, mas o que é dado a fumar, certo? Aí está uma diferença. E, pensando bem, o que é o tabaco? É uma planta que foi posta a apodrecer. Para quem não sabe, as folhas de tabaco estão apodrecidas! E a podridão é um processo mediado por microorganismos.

Poderia estar em causa um microorganismo presente no tabaco?

Vou confidenciar uma coisa. Aqui há uns tempos, eu a Dra. Susana Simões, uma pneumologista da Unidade de Pulmão, fomos ao centro de investigação da Philip Morris, na Suíça. Fomos ver aquilo que eles têm para oferecer às pessoas que querem continuar a fumar e usufruir desse prazer, mas com o menor risco possível. Para isso, eles inventaram o tabaco aquecido - o chamado IQOS. Há outros cigarros electrónicos que apenas vaporizam nicotina, mas o IQOS tem lá dentro um rolinho de tabaco que é aquecido, mas que não entra em combustão. E eles demonstraram – e por isso honra lhes seja feita – que a quantidade de nitrosaminas (que são substâncias químicas possivelmente cancerígenas) e a quantidade de monóxido de carbono ficam reduzidas a 10% daquilo que existe nos cigarros normais. Estas são as duas componentes que se pensa que são responsáveis por tantas doenças associadas ao tabaco e não só o cancro.

Mas nós fomos lá questioná-los sobre um outro aspecto: o que é que o tabaco transporta? Eles nunca tinham pensado no tabaco como transportador de microorganismos. Ora, há microorganismos que resistem à combustão, chamam-se extremófilos. Também nunca tinham pensado se o tabaco poderá ser um transportador de doenças através de microrganismos, e não só através de compostos puramente químicos. Ficaram muito surpreendidos com essa hipótese.

Nós conhecemos associações entre vários tumores e microorganismos: por exemplo, entre o carcinoma do colo do útero e o vírus do papiloma humano, o HPV, essa é super-conhecida. Ou a da bactéria Helicobacter pylori e alguns tumores do estômago e linfomas gástricos. E há mais.

Seja como for, há pessoas que chegam aos serviços de oncologia e têm cancro do pulmão. Tem havido avanços, em termos de prevenção, diagnóstico, tratamento? Há menos pessoas a morrer de cancro do pulmão devido a esses avanços?

A diminuição do tabagismo, que fez diminuir o número de casos de tumores associados ao tabaco, é claramente um avanço em termos de prevenção. Mas temos ainda aquele problema do crescimento de tumores do pulmão em nunca fumadores e desse lado, não temos feito avanço nenhum. Como é que se pode prevenir uma coisa cuja causa não é conhecida?

No caso do pulmão, os estudos, tanto europeus como um estudo americano, que foi aliás o primeiro, mostraram que fazer uma TAC periódica a pessoas de risco que tenham normalmente a ver com o tabaco, a partir de uma idade X (que varia com os estudos), reduz a mortalidade por cancro do pulmão na ordem de 20% (estudo americano) – o que é mais do que permite a mamografia (perto de 15%). No estudo europeu, a redução da mortalidade foi inclusivé maior, creio que dos 33 aos 44%, sobretudo no sexo feminino.

Mas há no entanto um problema com os programas de rastreio:  lidar com os falsos positivos. Sobretudo num baseado em imagens, em TAC (na mamografia o problema também existe, embora com menos falsos positivos do que com a TAC). Porque é um problema? Porque na TAC, muitas alterações que detectamos, e que são morfologicamente idênticas a um tumor canceroso do pulmão no início, podem ser pelo contrário cicatriciais, ou até benignas. Mas a sua detecção obriga a fazer uma série de exames invasivos e estudos adicionais, que implicam biópsias e às vezes cirurgias para obter resultados conclusivos. Ora, existe uma taxa de mortalidade – embora muitíssimo baixa – associada a um rastreio, que é o pior de todos os resultados possíveis: morrer-se porque se vai fazer um diagnóstico precoce. Claro que esse é o problema de todos os programas de rastreio, mas no caso do cancro do pulmão é particularmente agudo.

De qualquer das maneiras, a validade do rastreio já está mais do que demonstrada e só falta pô-lo em prática. Se tudo correr bem, nós na Fundação Champalimaud iremos iniciar um programa desses nos próximos meses. Mas, por outro lado, também temos uma consulta de diagnóstico precoce que já está a começar a apanhar doentes que são enviados para diagnóstico precoce do cancro do pulmão.

Aliás, a ASCO (American Society of Clinical Oncology), que faz um relatório anual das novidades do ano, tem vindo a assinalar que, nestes últimos anos, a mortalidade por cancro tem vindo a descer sobretudo devido ao cancro do pulmão. Porquê? Provavelmente porque começa a aumentar a sensibilidade à ideia do diagnóstico mais precoce. 

O vosso programa de rastreio também incluirá os nunca fumadores?

O dogma do rastreio do cancro do pulmão centra-se muito nos fumadores e também começa a haver valorização da história familiar. Mas não havendo para esta doença nenhuma mutação descrita de transmissão de geração em geração (a não ser aquele caso no Japão, que mesmo assim, era especial), nós conseguimos reconhecer muitos casos familiares – que apanham fumadores e não fumadores. 

Casos familiares?

Sim. Há famílias que têm vários casos de cancro de pulmão, com fumadores e não fumadores. Portanto, sabemos que existe um risco familiar, mas não há mutações conhecidas. Se a família tem vários casos, há um risco, por intangível que seja. E as famílias começam a ter essa percepção e a pedir para serem rastreadas.

Mas então, o problema que se coloca é o que vamos poder fazer para evitar os riscos do próprio rastreio. Precisamente nesse sentido, estamos a desenvolver um estudo, chamado VOX-PULMO, cujo objectivo é tentar identificar perfis químicos de cheiros próprios do cancro do pulmão (partindo do pressuposto que as doenças têm um cheiro próprio), obtendo o que os especialistas chamam de “biópsia respiratória”.

Este método implicaria apenas um exame não invasivo, fácil de fazer, pouco oneroso, e que também poderá, eventualmente, dar uma resposta directa a esse grupo crescente de pessoas que, não fumando, não pertencem aos grupos clássicos de risco para rastreio com TAC. Fazer primeiro um diagnóstico biológico como este e obter um perfil suspeito poderá abrir a porta para fazer uma TAC, evitando assim fazer não sei quantas TAC inúteis – porque é também um facto que a maior parte dos não fumadores nunca vai ter cancro do pulmão. 

Por enquanto, portanto, não há forma de deteção precoce do cancro do pulmão.

A maioria dos doentes que têm um diagnóstico precoce não têm sintomas. São detectados, por exemplo, porque fizeram uma radiografia num pré-operatório para outra coisa e aparece lá uma lesão, ou porque fizeram uma TAC por outras razões. As TAC cardíacas, que agora se fazem, apanham parte do pulmão e acontece detectar-se qualquer coisa. Mas basicamente, esses doentes são apanhados por acaso. 

Há novos tratamentos?

Sim, temos evoluído bastante. É claro que o melhor tratamento conhecido é a cirurgia. Mas só é acessível a uns 25 a 30 % das pessoas. As outras já estão com a doença localmente avançada ou com metástases, na altura do diagnóstico. E obviamente, a probabilidade de cura para uma doença metastizada é quase zero. Digo quase porque alguns desses doentes beneficiam de tratamentos, sobretudo baseados em imunoterapia, que podem dar respostas fabulosas a longo prazo – embora ainda esteja por saber-se quão longo. 

A cirurgia serve quando a doença já está disseminada, mas apenas localmente, dentro do pulmão? Pode remover-se o pulmão afectado?

Não. Essas pessoas nunca são operadas. Nós às vezes, quando a doença está apenas localizada no tórax, mas já avançada, tratamo-la com uma combinação de quimio e radioterapia. Estamos aqui a falar dos cancros de células não pequenas.

Com os cancros de pequenas células a situação é diferente?

Sim. Os cancros de pequenas células são muito agressivos, de início muito sistémicos, e portanto apenas uns 20% dos casos deste tipo de cancro de pulmão são localizados. E quase todos eles tratados com quimioterapia.

O tratamento que se fazia para o carcinoma de pequenas células do pulmão há 40 anos é o mesmo que eu faço hoje aos doentes com esse tipo de cancro. E se em 40 anos o tratamento de primeira linha para pequenas células não mudou, é porque realmente andamos muito mal; é um bocadinho devastador, certo? 

Os tratamentos não cirúrgicos para os cancros de não pequenas células são eficazes? Falou de 20 meses de sobrevida mediana… Parece pouco.

Sim, mas esse número diz respeito aos doentes que têm mutações. Porque os que não têm mutações que possam ser tratadas especificamente – e que aliás são a maioria neste momento – eles já são hoje habitualmente tratados com uma combinação de imunoterapia e quimioterapia em simultâneo, porque a imunoterapia dá um ganho àquilo que a quimioterapia faz.

Só para ter uma ideia, no caso de uma pessoa que tenha um adenocarcinoma do pulmão em estadio IV no diagnóstico – sem mutações, portanto – e não fizer tratamento nenhum, a sobrevida mediana são quatro meses. Se fizer uma quimioterapia das mais recentes (ditas de terceira geração), a sobrevida mediana passa a entre nove e 11 meses. Mas actualmente, acrescentando imunoterapia, andamos provavelmente em sobrevivências medianas de 22 meses. Ou seja, vamos ganhando coisas...   

Com qualidade de vida?

Essa é uma questão difícil, porque obviamente a qualidade de vida seria uma condição sine qua non. Estar a fazer tratamento a um morto-vivo é inútil e eticamente reprovável, parece-me. A questão é como se define qualidade de vida. 

Eu vou dar um exemplo, de um doente que eu tratei há muitos anos que tinha um carcinoma de pequenas células do pulmão em situação avançada. O tratamento – o mesmo que utilizamos há 40 anos, como já disse –, é a cisplatina, um derivado da platina. A cisplatina é tóxica, tem muitos efeitos secundários e um deles são as náuseas e os vómitos que delas decorrem. E eu por acaso apanhei essa transição: daqueles medicamentos para os vómitos que eram pouco eficazes, para aquilo que foi uma das grandes inovações em oncologia, que foram os medicamentos dos vómitos. Um dos maiores ganhos, acho eu. 

Eu fui portanto dando àquele doente toda a medicação e em cada consulta fazia uma check-list de todos os efeitos secundários. Para ver como podíamos minorá-los, não é? Porque aqui não há bela sem senão, há sempre um preço a pagar. E eu perguntava-lhe: “então, como é que estamos de náuseas e vómitos?” E ele respondia: “vomitei, vomitei até muito”. E eu: “Então, mas toma os medicamentos? Ao que ele respondeu que não. “Mas não sente sofrimento, prejuízo nisso?”, disse eu. “Não”, respondeu ele. “Sabe porquê? Porque eu acho que se eu vomitar estou a expulsar os químicos maus do meu corpo.” Nas escalas de qualidade de vida isso era um menos, mas para ele era um mais. 

Mas é claro que estamos sempre a procurar que a qualidade de vida seja a melhor possível. Eu acho que aí melhorámos bastante e que, no cômputo geral, podemos dizer que hoje em dia fazer quimioterapia já não é aquele calvário a que os doentes se submetiam para obter um ganho que talvez fosse pequeno... No pulmão, nós temos uma vantagem, pois são poucos os medicamentos que fazem cair o cabelo, o que considero ser uma marca muito importante da qualidade de vida. 

Acho que a qualidade de vida tem melhorado e se o nosso objectivo principal é prolongar a vida, acho que temos conseguido.

A sua Unidade faz aconselhamento sobre o tabagismo?

Sim, há uma consulta de desabituação tabágica. Era uma ironia que não tivéssemos, não é? Mas agora pense nesta ideia maluca: transformar o tabaco num instrumento terapêutico... Mas essa é outra história.

Há portanto muitos doentes que chegam tarde demais à consulta de cancro. Como se anuncia a má notícia a um doente?

Podemos pôr a questão ao contrário: Quantos doentes é que perguntam directamente quanto tempo é que lhes resta? Eu diria que são mais ou menos 10%. Já houve vários doentes que me disseram “olhe, quando isto estiver a ficar mesmo pior não me diga". 

Por outro lado, eu nunca utilizo a palavra “cura” com os doentes. Há uma definição de um oncologista inglês que eu uso muito: “Cura”, diz ele, “é a palavra a dizer no dia em que a pessoa, morrendo, não morre do cancro”.

Mesmo que os doentes não queiram saber, têm de receber, nalguma altura, a notícia de que têm um cancro que pode vir a matá-los, no futuro mais ou menos próximo.

O que eu costumo dizer-lhes é que esta doença, à luz do conhecimento médico actual, não é curável, mas habitualmente tem tratamento. E se me perguntam o que é que os espera em termos de tempo, embora sejam poucos os que fazem essa pergunta, digo que não sei. E não é para fugir ao tema; é exactamente porque já vi tanta coisa, que tudo pode acontecer. A medicina tende a falar em medianas de sobrevivência, mas a distribuição estatística do tempo de vida é um curva dita de Gauss (em forma de sino, com a mediana no ponto mais alto). No entanto, um doente com cancro tanto pode morrer nos dias a seguir ou viver anos e anos.

Mas o mais provável é que estejam dentro da norma, não é?

Sim, mas se a probabilidade de estar vivo daqui a um ano é de 99%, eu posso fazer parte do 1% que não chega lá ou que ultrapassa as expectativas. 

Essa não é de facto uma forma de não dizer às pessoas algo que é de facto muito difícil de ouvir?

Não. Eu assumo que não sei dizer para ser justo perante a verdade. Porque a verdade individual, eu não sei qual é. A verdade estatística é aquela que conheço. Mas atenção, essa verdade estatística é sempre uma verdade do passado; não é do momento presente em que eu tenho de tomar uma decisão. Quero dizer com isto que tudo aquilo que são as curvas estatísticas dizem respeito a estudos passados, antigos, e podem ter mudado entretanto.

Acha que o médico tem de ter compaixão e saber ouvir o doente?

Acho. O médico tem de ter a coragem de chorar, se for caso disso. 

Já lhe aconteceu?

Então? Tantas vezes!

Com o doente ou depois?

Com o doente. Depois, muito mais. Eu normalmente fujo um bocadinho a isso, porque o doente está à espera que eu seja o seu porto de abrigo, qualquer coisa que não vai desabar. Mas às vezes é impossível. Para mim é impossível [tem uma expressão muito triste].

Na sua Unidade, os problemas psicológicos dos doentes são uma componente importante da abordagem clínica?

São. Tanto assim que nós já tivemos aqui formação sobre como comunicar más notícias. Com role-playing, precisamente para treinar aquilo que não nos ensinam nas faculdades, que é comunicar. As competências de comunicação são essenciais – e não só para que a relação com o doente seja a melhor possível. São também essenciais para as equipas e já agora para a nossa própria felicidade. No meu tempo, as horas dedicadas a competências de comunicação eram zero. Faz uma falta gigante.

Como se faz para transmitir a um doente uma dose de esperança, para o motivar a não desistir logo? Os doentes têm de querer fazer o tratamento.

A maior parte dos doentes, talvez por força do instinto de sobrevivência, têm habitualmente uma certa motivação para fazer alguma coisa; são poucos aqueles que dizem a priori que não estão interessados em fazer nada. Mas há.

Como transmitir a esperança onde ela aparentemente não pode existir? De facto, a esperança pode ser outras coisas. O que vamos fazer é focar a esperança em objectivos secundários atingíveis e não naquele principal. O principal, a sobrevivência, a pessoa terá o tempo suficiente para o “metabolizar” e sentir se o vai conseguir ou não. 

Mas se nós, por exemplo, focarmos num objectivo como dizer-lhes que vamos fazer isto para melhorar a falta de ar e o cansaço ao esforço, esses podem ser objectivos atingíveis - e são legítimos, justos, apropriados e verdadeiros. E isso pode deslocar o focar-se no futuro para algo que seja tangível no imediato e que dê ao doente mais motivação para tudo o que vier a seguir.

Compreender o que o doente quer exige vários momentos, é raro que suceda numa primeira consulta. E nesses vários momentos, é preciso ir fazendo perguntas abertas para a pessoa exprimir o que quer. É assim que nós, fazendo as perguntas em momentos diferentes e obtendo a mesma resposta, percebemos o que o doente deseja. Sabendo ao mesmo tempo que o doente pode vir a mudar de opinião a qualquer momento – apenas porque sim. Sem se perceber porquê.

Houve sempre um estigma sobre o cancro. Isso mudou ou existe ainda hoje? 

Existe ainda hoje. Nos meios de comunicação fala-se sempre em “doença prolongada” e não de cancro. 

Mas na vivência dos doentes, eles ainda consideram que é uma sentença de morte?

Eu acho que quase sempre. Mesmo se não o dizem especificamente, esse pensamento está lá sempre. 

Mas em certos casos, esse sentimento está desfasado da realidade.

É verdade. Há alguns cancros em que o prognóstico é muito melhor do que no cancro do pulmão. Portanto essa ideia da cura, que é morrer sem tumor, já é cada vez mais atingível. Mas a palavra cancro continua a ser uma palavra associada a morte e sofrimento. E não só para os doentes, também para as suas famílias. Um diagnóstico de cancro não é só o de uma pessoa, é o de uma família. 

Por Ana Gerschenfeld, Health & Science Writer da Fundação Champalimaud.
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