26 Setembro 2024

Os cientistas que desvendaram o puzzle neural do reconhecimento facial

Como é que o nosso cérebro reconhece de forma singular um rosto numa multidão? Os quatro cientistas que receberam o Prémio António Champalimaud de Visão 2024 desvendaram os fascinantes mecanismos neurais subjacentes ao reconhecimento facial.

Os cientistas que desvendaram o puzzle neural do reconhecimento facial

Somos uma espécie altamente visual e social, e sermos capazes de reconhecer quase instantaneamente rostos específicos, bem como expressões faciais, são ferramentas cruciais para interagirmos com os nossos conspecíficos e navegarmos no nosso complexo mundo social.

Mas como é que o cérebro consegue realizar a proeza do reconhecimento facial? Como é que nós, humanos, escolhemos um rosto único num mar de rostos desconhecidos? E como é que reconhecemos um número virtualmente ilimitado de rostos familiares? Os laureados do Prémio António Champalimaud de Visão 2024 – Margaret Livingstone, Nancy Kanwisher, Doris Tsao e Winrich Freiwald – contribuíram significativamente para a descoberta das estruturas cerebrais e dos mecanismos neurais que tornam isso possível.

Em 1997, Kanwisher, neurocientista norte-americana a trabalhar no MIT, utilizou a fMRI (neuroimagem) para localizar uma região do cérebro humano, designada “área fusiforme”, que respondia aos rostos. Situava-se praticamente no mesmo local em todos os indivíduos por ela testados e activava-se quando eram apresentadas imagens de rostos humanos, mas não de outros objectos.

Mais tarde, em 2020, ela e a sua equipa viriam a demonstrar que mesmo em pessoas cegas, esta região do cérebro activa-se quando passam os dedos sobre modelos de rostos humanos! Estamos tão sintonizados para o reconhecimento de rostos que a visão pode nem sequer ser necessária para produzir essa activação...

“A forma como o cérebro normalmente obtém esta informação é através dos olhos, mas quando isso não é possível, o cérebro é capaz de utilizar outro tipo de percepção para preencher a lacuna”, disse o co-laureado Freiwald numa entrevista, quando esteve em Lisboa para receber o Prémio. “Isso não significa que as pessoas cegas usem esta estratégia no seu dia-a-dia, mas é provável que exista um processo não visual para construir modelos dos rostos humanos a partir de outras informações, de forma a conseguirem funcionar no mundo social.”

Voltando à história: uns anos mais tarde, a descoberta da área fusiforme por Kanwisher inspirou o trabalho de Livingstone, Tsao e Freiwald – os três outros galardoados de 2024. Tsao, neurocientista nascida na China e criada no Maryland, que na altura estava a fazer o seu doutoramento em Harvard com Margaret Livingstone, juntou-se ao neurocientista alemão Freiwald, que estava a concluir uma bolsa de pós-doutoramento sob a orientação de Kanwisher.

Juntos, replicaram as análises de fMRI de Kanwisher e também detectaram uma “área facial”. Em seguida, utilizaram os resultados da fMRI como guia para obter registos eléctricos da actividade neuronal dessa área em modelos animais. Descobriram assim que mais de 95% dos neurónios nesta pequena área respondiam selectivamente aos rostos. Num trabalho inovador, descreveram estas células e mostraram que respondiam a conjuntos distintos de partes da face – o que sugeria fortemente que o cérebro construía os rostos “montando-os” peça a peça, como se de puzzles se tratasse.

Mais concretamente, Freiwald e Tsao mostraram que a sensibilidade às faces reside num conjunto de seis áreas cerebrais vizinhas e interligadas, cada uma desempenhando papéis diferentes no reconhecimento facial. Chamaram a estas áreas “face patches”. São seis áreas em cada hemisfério, no córtex temporal inferior do cérebro. E como a perturbação da actividade neural nestas áreas interfere com a capacidade de reconhecimento dos rostos, ficou claro que elas são de facto cruciais para a perceção dos mesmos.

“Os rostos são algo muito complexo”, disse Freiwald. “Temos 23 músculos faciais que alteram a configuração do rosto. Há muitos outros objectos visuais que são muito mais simples. No entanto, quanto à questão de saber como é que algo tão complexo como o cérebro processa algo tão complexo como o rosto, existe uma resposta simples.”

“Isto não quer dizer que todas as funções cerebrais estejam localizadas e organizadas desta forma”, continuou. “Mas dá-me a esperança de que possamos compreender o cérebro humano apesar da sua complexidade.”

Mais tarde, no Caltech, Tsao descobriu a forma como os neurónios do nosso cérebro codificam os rostos, ao desvendar as ligações do sistema de face patches. Com a sua equipa, conseguiu “decifrar o código neural” dos rostos – a Pedra de Roseta dos rostos, como lhe chama (http://magazine.ar.fchampalimaud.org/doris-tsao-the-woman-who-cracked-t…).

Freiwald, em 2021, na altura já na Universidade Rockefeller, descobriu que uma outra região cerebral – o pólo temporal, situado na ponta do lobo temporal do cérebro – acelera o nosso reconhecimento de rostos familiares. “Acreditamos que existem células no pólo temporal que são selectivas para o reconhecimento das pessoas que conhecemos muito bem”, disse Freiwald. “Uma forma de o dizer é: [Não sabemos se] há um lugar especial no nosso coração para os nossos entes queridos, mas há sem dúvida um lugar especial para os nossos entes queridos nesta parte do nosso cérebro”, acrescentou com humor.

“Em Harvard, antes de Doris e Winrich começarem a olhar para os rostos”, disse a neurocientista americana Livingstone, que também esteve em Lisboa para a cerimónia de entrega do Prémio, numa entrevista separada, ”David Hubel [Prémio Nobel da Medicina de 1981 pelo trabalho pioneiro sobre o processamento visual no cérebro] e eu tínhamos feito um enorme trabalho sobre as subdivisões dos córtices visuais primário e secundário. Foi apenas mais um passo para encontrar módulos no córtex infratemporal.”

O papel de Livingstone foi fundamental: deu a Tsao e Freiwald o espaço e a liberdade de que necessitavam para prosseguirem o seu trabalho sobre reconhecimento facial. “Penso que a minha forma de dirigir um laboratório reside numa espécie de 'negligência benigna'”, afirmou. “Deixo toda a gente fazer o que quer fazer porque eu também quero fazer o que quero fazer. E, de vez em quando, falamos sobre o que cada um está a fazer.”
Livingstone acredita que a organização modular dos face patches se aplica a outras partes do cérebro: “Penso que [esta investigação] nos diz algo sobre a forma como o cérebro se auto-organiza com regras universais simples”, salientou durante a entrevista.

Os contributos dos laureados abriram caminho para um estudo mais aprofundado dos princípios gerais da organização neural do cérebro.

Trabalhando de forma independente, “Livingstone e Kanwisher utilizaram estas descobertas para obter novas pistas sobre o velho debate do nature/nurture”, escreve a Fundação Champalimaud (FC) no comunicado que anuncia o Prémio, “explorando se o reconhecimento facial é uma caraterística inata do cérebro dos primatas ou se é aprendido, presumivelmente através da exposição durante a infância ao rosto do seu cuidador.”

A equipa de Tsao está agora a explorar a forma como o cérebro consegue perceber outros objectos de forma semelhante e, em última análise, criar cenas visuais inteiras. Quanto a Freiwald, começou a tentar desvendar os complexos circuitos cerebrais subjacentes às interações sociais.

Durante a entrevista em Lisboa, Freiwald referiu ainda que está particularmente interessado em doenças como o autismo, uma perturbação que dificulta o reconhecimento de expressões faciais e outros sinais sociais. Freiwald acredita que a compreensão do processamento facial pelo cérebro pode ter implicações para aliviar os sintomas das pessoas com autismo.

O trabalho colectivo dos laureados “abre uma janela sobre os mecanismos cerebrais cruciais para o desenvolvimento humano e as interações sociais”, resume o comunicado da FC.

A cerimónia de entrega do Prémio teve lugar no anfiteatro exterior da Fundação ao fim da tarde de 11 de setembro, contando com a presença de ilustres convidados e de representantes do Estado, incluindo o Presidente da República, que presidiu à cerimónia. Na ocasião, o Presidente da República atribuiu uma distinção – que descreveu como sendo “um testemunho de gratidão no domínio científico em nome de Portugal” – ao presidente do Júri do Prémio, Alfred Sommer, ilustre oftalmologista e epidemiologista, e director emérito da Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health.

Texto de Ana Gerschenfeld, Health & Science Writer da Fundação Champalimaud.
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