A Fundação Champalimaud tem um robô experimental, o Wingy, que utiliza o Chat GPT e que espera vir a ser um dia capaz de acolher os doentes no seu Centro Clínico. Mas irá o Wingy substituir a equipa de acolhimento?, perguntou Pedro Garcia da Silva, neurocientista e Coordenador Científico do Champalimaud Research, durante a sua intervenção no Congresso Champalimaud de Enfermagem Oncológica, que decorreu na Fundação a 19 de Maio.
E mais: serão os enfermeiros um dia substituídos pela inteligência artificial (IA)? “Duvido que os enfermeiros sejam substituídos”, respondeu sem hesitação Garcia da Silva, apesar de se considerar “um optimista tecnológico”. E também não esqueceu os riscos da IA, sendo o mais importante para ele, na área da saúde, as desigualdades que irão ser geradas nos cuidados médicos enquanto a utilização da IA não se democratizar. “Não podemos só fazer catering aos ricos”, considerou Garcia da Silva.
Na realidade, serão precisos cada vez mais enfermeiros a utilizar interactivamente a inteligência artificial nas suas tarefas quotidianas, afirmou pelo seu lado Joe Paton, neurocientista e co-director do Champalimaud Research, na sua palestra. Paton disse ainda que a inteligência artificial está muito longe de se poder comparar com a inteligência humana. “A IA é uma ferramenta para uso de mentes naturais”, afirmou. E passou a explicar as diferenças abissais entre os dois tipos de inteligência. É que, embora os neurónios sejam binários (disparam ou não disparam impulsos), tal como os transístores da microelectrónica, o cérebro não funciona de todo como um computador.
Para simular um neurónio, explicou o cientista, são precisos quatro milhões de transístores. E embora uma CPU (unidade central de computador) possa hoje conter milhares de milhões de transístores, o cérebro humano contém cerca de 85 mil milhões de neurónios, já para não falar no número de ligações (sinapses) entre eles.
Paton disse ainda que, enquanto a inteligência natural “é fruto da evolução, está encarnada num corpo, é distribuída, hierárquica e orientada para a acção e o movimento” (ou seja, proativa, intencional), a IA é reactiva: não faz nada sem uma acção exterior. “Estamos longe do cérebro humano, na engenharia, em termos da complexidade biológica, molecular e celular”, acrescentou.
“O meu segundo argumento é mais filosófico”, prosseguiu, dando como exemplo, desta vez, a comparação entre o sistema visual e uma máquina fotográfica. “O cérebro não reproduz, tenta decidir como reagir. A retina não é como um sensor de máquina fotográfica”, afirmou. E se é verdade que o desempenho dos algoritmos de visão artificial pode tornar-se muito elevado com treino suficiente, e que estes podem ser muito úteis, argumentou, “não são muito inteligentes”.
Por essas razões – e também devido aos riscos éticos, legais, de falta de regulação, etc., que a IA pode apresentar, será sempre preciso “manter pessoas no loop”, concluiu Paton. “A colaboração entre médicos, enfermeiros e tecnologias de IA pode fazer diminuir os erros humanos e o tempo necessário para cumprir tarefas”, nomeadamente burocráticas. No futuro, acredita Paton, a IA vai entrar na clínica através dessa colaboração, que será interactiva e onde a IA poderá mesmo vir a oferecer assistência, companhia e terapêuticas digitais aos doentes.
De destacar também, a palestra de Maria João Cardoso, cirurgiã da Unidade de Mama da Fundação, que apresentou o projecto Cinderela, que dirige – e que também recorre à IA. O projecto destina-se a optimizar, de forma personalizada, a previsão dos resultados das cirurgias reconstrutivas em mulheres com cancro da mama, de forma aumentar a satisfação das doentes com os resultados em termos de imagem corporal (https://fchampalimaud.org/pt-pt/news/projecto-cinderella-o-direito-de-o…). A médica realçou, em particular, a importância do papel que os enfermeiros desempenham neste projecto, enquanto linha da frente do contacto com as doentes.
Também se falou em inteligência emocional durante o congresso. De destacar, a intervenção de Maggie João, que faz coaching em gestão do stress e que realçou a importância da inteligência emocional dos enfermeiros na gestão do seu próprio stress e o dos doentes e deu algumas pistas para a aplicar. Ainda de salientar, a palestra de Cátia Lampreia, enfermeira da Fundação Champalimaud, que apresentou uma revisão da literatura, publicada no início de 2023 na revista espanhola Enfermagem Clínica (com avaliação pelos pares). O estudo, da qual Lampreia é primeira autora, concluiu que “a inteligência emocional é uma competência essencial dos enfermeiros de cuidados críticos, com repercussões a nível profissional, pessoal e organizacional”. A enfermeira salientou que, de um modo geral, as pessoas que recorrem às emoções são mais eficazes na sua profissão.
Emilia Rito (Enfermeira Responsável Unidade Multidisciplinar) recordou o programa curricular da EONS (European Oncology Nursing Society) e Nuno Pereira (Secretário MR na Ordem dos Enfermeiros) falou da enfermagem em Portugal, mostrando o longo caminho percorrido. Novas terapêuticas de tratamento da depressão tais como estimulação magnética transcraniana (TMS) foram o foco das palestras de Patrícia Pereira, enfermeira especialista em saúde mental, e do psiquiatria e investigador Albino Oliveira-Maia, director da Unidade de Psiquiatria do Centro Clínico Champalimaud (CCC). Fernanda Relveiro, enfermeira responsável do Hospital de Dia do CCC, perguntou se estava encontrada a solução para o tratamento da neuropatia periférica, um sintoma incapacitante com impacto negativo na qualidade de vida dos doentes. O enfermeiro especialista Pedro Queiroz falou dos desafios inerentes à cirurgia pancreática, reconhecendo que a formação e a entre-ajuda entre membros da equipa multidisciplinar de patologia são fundamentais para a prevenção de complicações e a prestação dos melhores cuidados de saúde possíveis.
Francisco George, ex-Director-Geral da Saúde, encerrou o dia falando dos diferentes cenários de guerra dos últimos séculos e do papel essencial dos profissionais de saúde neste contexto.
Por Ana Gerschenfeld, Health & Science Writer da Fundação Champalimaud.