Tudo começou de forma muito banal. Recebi um email da minha coordenadora a perguntar-me se estaria disponível para preparar uma peça para a campanha Be Open about Animal Research Day – Get on #BOARD21 (em tradução livre para português, “Dia do diálogo aberto sobre a experimentação animal”).
Não pensei duas vezes. Sou comunicadora de ciência e defronto-me com frequência com esta pergunta quando tenho de escrever acerca de resultados científicos. Por isso, respondi-lhe imediatamente “Estou disponível”. Foi depois de ter clicado em “Enviar” que comecei a pensar sobre o que iria de facto escrever. Deve ter sido engraçado ver, nesse momento, a sequência das minhas expressões faciais, que passaram do entusiasmo para a dúvida e finalmente para o que apenas posso descrever como “um certo medo”.
A experimentação animal é um tema delicado, não só para os indecisos e os que são liminarmente contra, mas também para os próprios cientistas. Fiz então uma pesquisa online, falei com pessoas, comecei a escrever um esboço de texto, seguido de outro. E a dada altura, apercebi-me que talvez a melhor forma de abordar este trabalho fosse arriscando algo que nunca faço – escrever na primeira pessoa.
Fiz investigação científica antes de me tornar comunicadora de ciência e, como tal, sei o que é fazer experimentação animal. De facto, uma das razões que me levaram a abandonar a investigação foi a experimentação animal. Depois de ver o alto nível de perícia, a imensa destreza e o extremo cuidado que os cientistas à minha volta tinham com os animais, percebi que nunca iria conseguir ter as competências técnicas necessárias para fazer experimentação animal.
Embora tenha deixado o laboratório, não fui para muito longe. Nos últimos dez anos, trabalho no Grupo de Comunicação, Eventos e Outreach do Centro Champalimaud (Champalimaud Centre for the Unknown, ou CCU). Neste centro coabitam um programa de investigação – o Champalimaud Research (CR), dedicado à Neurociência (a minha área científica), ao Cancro e à Fisiologia – e o Centro Clínico, uma clínica dedicada ao diagnóstico e tratamento do cancro.
Ao longo dos anos, a minha admiração pela habilidade e o cuidado dos cientistas com os animais não parou de aumentar. Por exemplo, conseguem imaginar fazer uma neurocirurgia em moscas-da-fruta, cujo cérebro tem aproximadamente o tamanho de uma semente de papoila…? Mas quando se trata de comunicar o trabalho fascinante que é feito no CR, são muitas as vezes em que me defronto com os mesmos desafios que tinha tido no meu trabalho enquanto investigadora.
Até a minha família, que sempre me apoiou imenso na escolha inicial da minha carreira de neurocientista, admitiu por vezes sentir-se incomodada pelo facto de eu estar a fazer experiências com animais. Naquela altura, essa atitude fazia-me confusão, porque me parecia contraditória. Mas sei hoje que talvez devêssemos ter tido outras conversas antes de eu lhes falar do meu trabalho.
Ainda há muito por descobrir
Uma das objecções habituais à experimentação animal é que esta é desnecessária. Sabemos tanto sobre como as coisas funcionam; basta olhar para as notáveis tecnologias à nossa volta. Não deveríamos ser capazes de utilizar essa massa de conhecimento para encontrar outras maneiras de abordar as questões científicas?
Penso que esta pergunta deriva de um mal entendido muito comum, provavelmente perpetuado pelos comunicadores de ciência como eu, que frequentemente difundem as novas descobertas científicas num estilo grandioso e atraente. “Cientistas descobrem X” é o título do costume (substituam X por “como as células saudáveis contribuem para o crescimento tumoral” ou “como o cérebro mede o tempo”, etc.). Ao mesmo tempo, a miríade de perguntas que cada descoberta coloca é apenas mencionada de passagem – quando não é totalmente ignorada. Não admira portanto que as pessoas tenham uma ideia errada da quantidade de coisas que nós (entenda-se, a humanidade) realmente sabemos e de quantas são as coisas que ainda estão por descobrir.
Por exemplo, considerem uma pergunta biomédica bastante habitual: “Quais são os mecanismos que tornam as células cancerosas capazes de fugir ao sistema imunitário?” Um modelo computacional susceptível de fornecer uma resposta realista a esta pergunta exigiria uma base de dados extremamente detalhada de como o cancro e o sistema imunitário funcionam. O nível de pormenor teria de ser incrivelmente extenso, especificando a identidade de todas as células e moléculas que compõem os diversos sistemas e a forma como interagem em condições fisiológicas normais.
Infelizmente, essa base de dados ainda não existe. Os cientistas trabalham arduamente para a construir, acrescentando as peças de informação uma a uma. Talvez um dia, idealmente quando tivermos percebido tudo, sejamos capazes de responder a perguntas deste tipo sem recurso à experimentação animal, mas ainda não chegámos lá.
Os métodos alternativos estão a aumentar
Contudo, sempre que possível, os cientistas implementam métodos de investigação alternativos que não implicam a utilização de animais nas experiências. Isto acontece nos casos em que uma questão muito específica pode ser resolvida, por exemplo, utilizando culturas celulares ou modelos informáticos.
Quando olhamos atentamente, depressa percebemos que o campo dos métodos alternativos está a explodir. Um exemplo são os modelos “multi-órgãos-em-chip” (multi-organ-on-chip models). Com esta abordagem, os cientistas estão a recriar complexas dinâmicas fisiológicas num pratinho de laboratório. A longo prazo, esta tecnologia até poderá permitir criar “chips personalizados” para cada doente, que poderão ser usados para testar a compatibilidade de diversos fármacos.
Outro exemplo muito promissor são os organóides humanos. Estas culturas tridimensionais, derivadas de células humanas, reconstituem a arquitectura e a fisiologia dos órgãos humanos. O que, por sua vez, permite que os cientistas estudem vários processos fundamentais na área da saúde e da doença. Esta abordagem já está a ser hoje utilizada e tem ajudado, por exemplo, a perceber melhor as patologias causadas pelo vírus Zika – e ainda na compreensão do funcionamento da barreira hemato-encefálica.
As nossas semelhanças são importantes, mas também as nossas diferenças
Uma dúvida que muitas pessoas têm acerca da experimentação animal é a de saber se o que aprendemos sobre os ratinhos, os peixes-zebra ou as moscas-da-fruta pode realmente fornecer-nos informações significativas sobre a fisiologia humana. Não seremos demasiado diferentes daqueles animais?
Bom. Primeiro, essa separação é errada. Os humanos são uma espécie animal e portanto partilham inúmeras características com o resto dos animais. Inúmeros princípios fundamentais de funcionamento do nosso corpo e da nossa mente, desde a replicação do ADN até à tomada de decisões, apresentam paralelos em muitas espécies. E há disso muitos exemplos. Considerando apenas o trabalho feito no CCU, posso citar dois. Num estudo, foi demonstrado que um mecanismo inicialmente identificado na mosca-da-fruta, com implicações no cancro e no envelhecimento, também existe nos seres humanos. O outro exemplo é um estudo em ratinhos e humanos que mostrou que estas duas espécies utilizam uma abordagem semelhante na resolução de problemas quando confrontados com um puzzle desafiante.
Por outro lado, é inegável que os animais e os humanos são diferentes. Mas quem diz que ser diferente é mau? Por exemplo, o facto de se perceber por que um fármaco que era eficaz no ratinho acabou por chumbar nos ensaios clínicos pode fornecer pistas importantes sobre os mecanismos de base das doenças humanas. E imaginem ainda o que significaria conseguirmos descobrir como é que alguns animais fazem para auto-regenerar os seus órgãos, ou por que outros animais não desenvolvem cancro. As nossas diferenças podem ser a chave para resolver grandes problemas.
As perguntas “básicas” podem dar origem a valiosos benefícios
Devo confessar que tenho estado a fazer um um pouco de batota. Justificar a experimentação animal é muito fácil quando estamos a falar de necessidades clínicas. Mas na realidade, muitos projectos científicos que envolvem experiências em animais não têm aplicações médicas diretas.
Devemos usar animais na investigação feita por simples curiosidade?
Imagino que esta pergunta, dada a sua carga emocional, suscita um instintivo “nem pensar” por parte de muitas pessoas. Afinal de contas, não é só o bem-estar dos animais que está aqui em causa, mas também os recursos financeiros e humanos, que poderiam ser aproveitados para promover diretamente os avanços na medicina.
Esta objecção muito comum reflecte a sub-comunicação de mais um aspecto-chave da ciência: a necessidade de fazer investigação fundamental. Ao contrário da investigação clínica ou translacional, a investigação fundamental explora os mecanismos de base subjacentes a diversos fenómenos biológicos sem objetivos de aplicação prática pré-definida.
Apesar de poder parecer indulgente, é de facto necessário assegurar que o conhecimento progride. E é precisamente a nossa falta de conhecimento que nos impede de prever o impacto a longo prazo de uma dada descoberta científica. Há imensos exemplos de projectos de investigação fundamental que começaram por estudar questões aparentemente sem consequências práticas mas que acabaram por dar origem a aplicações que salvam vidas.
Por exemplo, o papel do neurotransmissor dopamina no cérebro foi descoberto no âmbito de um projecto de investigação fundamental feito no coelho. Mas as implicações clínicas rapidamente se tornaram óbvias quando se percebeu que a disfunção da dopamina está na base dos sintomas das doenças de Parkinson e de Huntington. E, mais tarde, isso levou ao desenvolvimento do fármaco l-DOPA.
A experimentação animal é extremamente regulada para garantir o tratamento dos animais com humanidade
Portanto, dado que a espécie humana ainda não chegou ao ponto de poder prescindir da experimentação animal sem pagar um custo elevado, qual é a abordagem certa? Pode a experimentação animal ser feita com humanidade?
Para ter uma ideia de como as coisas funcionam, perguntei a cientistas do CR (onde os modelos animais incluem as moscas-da-fruta, os peixes-zebra e os ratinhos) quais eram os procedimentos atuais em matéria de experimentação animal.
Durante estas conversas, aprendi muito sobre o lado oficial da experimentação em animais. Para além de garantir que os animais não sofrem dor física nem desconforto, é feito um grande esforço para que os animais de laboratório vivam bem. Por exemplo, para satisfazer as necessidades sociais dos ratos, estes são preferencialmente alojados com outros ratos. As suas gaiolas contêm objectos de “enriquecimento” cognitivo, tais como tubos de plástico dentro dos quais os animais podem circular, bem como materiais para construir os seus ninhos. E os experimentadores passam regularmente tempo com os animais e até brincam com os ratos particularmente sociáveis, para eles não ficarem ansiosos. Tanto o peso, como o comportamento dos animais é controlado de perto, de forma a detectar qualquer sinal de declínio da sua saúde e bem-estar – e se qualquer problema for detectado, é rapidamente tratado pelo veterinário da equipa.
E há mais: para além de cuidar dos animais, os cientistas aplicam a regra dos “3R” que regem a humanidade do tratamento dos animais de laboratório: em inglês, ”3R” significa Replacement, Reduction and Refinement. Estes princípios ditam que os cientistas devem aspirar a: (1) encontrar alternativas à experimentação animal sempre que possível; (2) reduzir ao mínimo o número de animais utilizados; e (3) procurar sempre encontrar maneiras de aumentar a qualidade de vida dos animais de laboratório.
O que é importante é que, no centro de tudo isto, há um regulamento oficial. Todas as experiências realizadas no CCU requerem avaliação e aprovação prévias da Comissão de Bem-estar animal da Fundação Champalimaud e da Direção-Geral da Alimentação e Veterinária (DGAV). Cada projecto é analisado em grande pormenor, avaliando se os 3R estão a ser corretamente aplicados, se existe uma necessidade efetiva de experimentação animal, quantos animais deveriam ser utilizados e como o bem-estar dos animais irá ser assegurado durante todo o projecto.
O decorrer do projecto é ainda acompanhado por uma equipa especializada que monitoriza constantemente os animais, garantindo que todo o manuseamento e os procedimentos utilizados são realizados com técnicas adequadas e humanas que seguem as diretivas europeias, nacionais e institucionais.
Por último, todos os envolvidos no cuidado e na utilização dos animais para fins científicos recebem treino e formação em conformidade com o Quadro Europeu Comum de Educação e Formação. Este treino inclui sessões teóricas e práticas, no fim das quais uma avaliação formal é realizada pelo regulador nacional oficial. E só aqueles que passam o teste com sucesso adquirem a acreditação da DGAV para desenvolver experiências em animais.
É um processo
Agora, um pouco de perspetiva histórica. Por incrível que pareça, os 3R para o tratamento dos animais com humanidade foram formulados nos anos 1950, pouco depois da Segunda Guerra Mundial. Isto significa que, em menos de 100 anos, a nossa sociedade evoluiu ao ponto de criar regras especiais para a experimentação animal, e tem-se desde então esforçado constantemente para melhorar.
E à medida que a prática do tratamento humano dos animais de laboratório vai melhorando, a comunicação também. A abertura e a transparência em relação à experimentação animal são agora promovidas por organizações tais como a Associação Europeia de Experimentação Animal (EARA), que trabalham incansavelmente para promover a discussão aberta sobre o tema. Um outro grande exemplo vem da Comissão Europeia, que recentemente publicou online uma base de dados pública que fornece dados numéricos sobre a experimentação animal na UE.
Falemos no assunto
Estas minhas divagações põem em evidência alguns dos itens da longa lista de temas insuficientemente expostos ou discutidos que, apesar de não estarem diretamente relacionados com a experimentação animal, são essenciais para perceber a necessidade deste tipo de experiências. Não é possível recrutar apoio para a realização de investigação em animais se não fizermos o esforço de comunicar como a ciência funciona e o tipo de desafios com que se defronta.
Posso imaginar várias razões para estes tópicos serem habitualmente postos de lado. Primeiro, vivemos numa sociedade onde se espera que tudo aconteça depressa, com absoluta certeza e grande sucesso. Mas as regras da ciência não são essas. A ciência é, por definição, “a procura do desconhecido” e portanto nenhuma daquelas expectativas está garantida. Só que em vez de colocarmos esta questão em destaque, criámos uma fachada, onde o caminho entre a hipótese e os resultados se faz em linha reta, algo que, na realidade, muito raramente acontece.
É de facto notável que, confrontados pela incerteza científica por um lado e pela imensidão do desafio por outro, os cientistas não fiquem paralisados. Pelo contrário, isso incita-os a avançar. O meu objetivo pessoal é encontrar uma maneira de partilhar esse entusiasmo com o público, na esperança de que as pessoas se juntem a esta viagem, sem hesitação.
Para começar a agir nesse sentido, nós, no CCU, lançámos recentemente uma coleção online de histórias da ciência, acompanhadas de ilustrações com animação, sob o título Inside the Unknown. Cada peça conta a história de um projeto de investigação científica. Mas em vez de acabarmos a história pondo-lhe um ponto final, o último elemento da história fala sempre do “estado atual” do projecto. Desta forma, tentamos comunicar o facto de a ciência estar sempre em movimento e que cada resposta levanta uma nova pergunta. Tencionamos continuar a avançar com esta e outras iniciativas, que esperamos ajudem a promover um novo tipo de diálogo entre a ciência e a sociedade.
Por Liad Hollender, Editora e Science Writer da Equipa de Comunicação, Eventos & Outreach do Centro Champalimaud.