01 Abril 2021

Prémio europeu de inovação para dispositivo que faz cirurgia “sem cirurgia” desenvolvido pela Fundação Champalimaud

Um pequeno e simples dispositivo permite tratar, sem incisões nem dor, divertículos do esófago, bolsas que se formam e que podem causar problemas graves. O dispositivo acaba de receber um importante prémio europeu de inovação.

Prémio europeu de inovação para dispositivo que faz cirurgia “sem cirurgia” desenvolvido pela Fundação Champalimaud

A ideia partiu de um gastrenterologista da Fundação Champalimaud, em Lisboa. Entre a ideia inicial e o objecto que agora a materializa foi preciso o trabalho de vários anos de toda uma equipa de cientistas, médicos e engenheiros em Portugal e na Bélgica. Os primeiros resultados de um estudo-piloto deste dispositivo não-cirúrgico que poderíamos qualificar de “corta e cola”, baptizado MAGUS na sigla em inglês (Septotomo Magnético Gastrointestinal Universal), foram anunciados em 2020. Estes resultados têm-se mostrado tão promissores que motivaram agora a atribuição do Prémio de Inovação 2021 da Sociedade Europeia de Endoscopia Digestiva (ESGE) na categoria de dispositivo do ano. 
  
“A ideia original foi minha e consiste em dois ímanes com um fio a ligá-los, que é o mecanismo de corte”, diz Ricardo Rio-Tinto, gastrenterologista da Unidade de Digestivo do Centro Clínico Champalimaud. “O primeiro protótipo foi feito aqui na Fundação Champalimaud e, em colaboração com a Faculdade de Engenharia da Universidade Livre de Bruxelas desenvolvemos a versão final do dispositivo, que já foi testado em modelos animais e está a ser agora alvo de um estudo de segurança e eficácia em doentes.”

Os doentes que participam no estudo piloto sofrem de divertículos do esófago – protusões da parede do esófago que formam “bolsas” e podem causar não só dificuldade em deglutir, mas também dor, refluxo e regurgitação de alimentos que se a associa a risco de aspiração e asfixia.  

“É a primeira vez que um dispositivo é concebido para fazer um procedimento após a sua colocação no tubo digestivo”, acrescenta Ricardo Rio-Tinto. Através de uma endoscopia, o dispositivo é implantado no sítio pretendido de forma a que os dois ímanes fiquem de um e de outro lado do septo do divertículo [ver imagem: o septo é a zona onde a parede do divertículo e a do esófago estão quase coladas uma à outra], com o fio de corte a envolver as duas paredes. Uma vez implantado, o MAGUS é activado e fica então a agir sobre o tecido preso no arame, sem fazer incisões ou provocar dor – e sem necessidade de internamento.”

MAGUS Device
Processo de "corte" do dispositivo MAGUS.

Pode parecer contraditório falar num “mecanismo de corte” em relação a um aparelho que não faz incisões. Mas não é: a chave reside no facto que o MAGUS faz na realidade um “corte por compressão”: vai encurtando progressivamente o fio que une os dois ímanes e cria assim um estrangulamento do septo que acabará, passados dias ou semanas, por necrosar este tecido. O efeito obtido, que tem por nome “marsupialização”, resolve o problema ao fazer desaparecer a divisória entre o divertículo e o esófago. O lúmen (cavidade) do divertículo e o lúmen do esófago ficam reunidos, impedindo que o divertículo retenha detritos e seja um obstáculo à progressão dos alimentos. Quanto ao aparelho em si, será eliminado naturalmente pelo tubo digestivo. 

Os cientistas já trataram cerca de 20 doentes no Hospital Erasme, na Bélgica, onde o ensaio clínico decorre. Metade destes doentes são portugueses. Os resultados têm sido “impressionantes” em termos da segurança mas também de eficácia do tratamento, com uma melhoria substancial  dos sintomas de todos os doentes já tratados, salienta Ricardo Rio-Tinto.

O objectivo nos próximos anos será adaptar e fazer aprovar o uso do MAGUS em situações mais frequentes, nomeadamente no tratamento de divertículos sintomáticos noutras localizações, no tratamento da síndrome de Candy-Cane (uma complicação rara da cirurgia gástrica), na resolução da obstrução do tubo digestivo em doentes oncológicos, e possivelmente no tratamento da obesidade, substituindo a cirurgia de by-pass gástrico, segundo Ricardo Rio-Tinto.

“Se este conceito de 'cirurgia com resultados diferidos' se desenvolver, um dia poderá mesmo ser possível prescrever um comprimido 'cirúrgico' que está programado para fazer de forma indolor e sem incisões uma determinada cirurgia. O impacto poderá ser enorme”, conclui Ricardo Rio-Tinto.
  

Por Ana Gerschenfeld, Health & Science Writer da Fundação Champalimaud.
Gastrenterologista Ricardo Rio-Tinto Gastrenterologista Ricardo Rio-Tinto
X-ray of MAGUS inserted in the digestive tract Raio-X do dispositivo MAGUS colocado no tubo digestivo
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