O doente sofre de mieloma múltiplo, um dos cancros hematológicos (do sangue) mais frequentes a nível mundial.
Nos doentes com menos de 70 anos, o tratamento de primeira linha para este cancro inclui a colheita de células dos próprios doentes, ditas “progenitoras hematopoiéticas”, a realização de quimioterapia intensiva e, finalmente, a reinfusão das células previamente colhidas. Estas células progenitoras hematopoiéticas são capazes de dar origem a todos os tipos de células sanguíneas normalmente produzidas pela medula óssea.
Porquê é que isso é necessário no mieloma múltiplo? Porque a quimioterapia intensiva referida vai destruir irreversivelmente a medula óssea. E só a reinfusão no mesmo doente (auto-transplante) das células progenitoras hematopoiéticas previamente colhidas e preservadas conseguirá regenerar essa medula.
A colheita destas células é hoje feita no sangue periférico e não directamente na medula óssea. “Classicamente, o transplante de medula óssea consistia em colher as células directamente na medula óssea, mas hoje em dia já não é assim” explica Paulo Lúcio, director da Unidade de Hemato-oncologia. “Aquilo que nós chamamos transplante de medula óssea é, em rigor, um transplante de células progenitoras hematopoiéticas,, colhidas no sangue periférico, que vão repovoar a medula óssea.”
“A quimioterapia efectuada entre a colheita e a reinfusão das células, chamada "intensificação", tem como objectivo erradicar a maioria das células cancerosas que ainda subsistem após uma quimioterapia inicial pre-transplante, chamada "indução", explica ainda Paulo Lúcio.
“A colheita de células progenitoras hematopoiéticas deste doente foi feita há cerca de um mês”, prossegue. “As células foram crio-preservadas a 196 graus negativos. E após a quimioterapia intensiva, realizada no dia 12 de Novembro numa única sessão – e que destruiu a sua medula óssea – o doente recebeu, logo no dia seguinte, o transplante das suas próprias células progenitoras hematopoiéticas.
O doente foi hospitalizado num quarto do Centro Clínico Champalimaud equipado para receber doentes imunossuprimidos, muito sensíveis às infecções. “O doente recuperou bem e teve alta hospitalar 13 dias após o transplante”, acrescenta Paulo Lúcio.
A capacidade de colher e infundir células hematopoiéticas em doentes abre a via a futuras terapias celulares contra o cancro – em particular utilizando as chamadas células CAR-T. Estas células são produzidas através da recolha de células T do doente e da sua manipulação em laboratório, de modo a fazer com que apresentem, à sua superfície, proteínas que reconhecem as células cancerosas e as destroem.
Nos últimos anos, várias terapias com células CAR-T foram aprovadas pela Food and Drug Administration (FDA) e pela EMA (European Medicine Agency). Todas elas se destinam ao tratamento de cancros do sangue, incluindo linfomas, algumas formas de leucemia e mieloma múltiplo.
“Uma das grandes vantagens de nós começarmos a transplantar células” diz Paulo Lúcio, “é que nos dá o domínio de um procedimento que será necessário para realizar terapias como os transplantes de células CAR-T no futuro”.
Texto de Ana Gerschenfeld, Health & Science Writer da Fundação Champalimaud.