22 Maio 2021

À procura das raízes biológicas da obesidade

Em muitas instituições no mundo, há especialistas à procura dos mecanismos biológicos subjacentes à obesidade, o que poderá abrir o caminho ao desenvolvimento de novos e mais eficazes tratamentos contra esta doença. Estes esforços são cruciais porque a obesidade, que tem atingido proporções epidémicas a nível global, é um dos maiores fatores de risco para o cancro e muitas outras doenças humanas.

À procura das raízes biológicas da obesidade

O Centro Champalimaud, em Lisboa, é uma instituição científica especializada nas neurociências do comportamento e no estudo das interacções complexas dentro dos sistemas biológicos. Ao mesmo tempo, é uma instituição médica e tecnológica que atua no diagnóstico e  tratamentos clínicos especializados nas áreas do cancro e da saúde mental. Em linha com estas características, algumas das suas equipas científicas procuram os mecanismos biológicos subjacentes à obesidade, enquanto na clínica, os profissionais de saúde fornecem apoio multidisciplinar continuado aos doentes com cancro que, após a remissão, vêem aumentar o seu risco de obesidade, que por sua vez está associada ao cancro.

Dos determinantes biológicos do consumo alimentar excessivo aos efeitos da cirurgia bariátrica; do papel das bactérias intestinais nos nossos comportamentos alimentares às “conversas” subconscientes que decorrem entre os sistemas digestivo, nervoso e imunitário e que podem dar origem à obesidade; do acompanhamento psicológico ao apoio nutricional fornecido na clínica aos doentes para lutar contra a obesidade, uma diversidade de abordagens – tanto científicas como clínicas – está ser explorada. Uma diversidade que reflete a complexidade desta doença, bem como a dificuldade, por um lado, em desbravar os seus mecanismos de base e, por outro, em conseguir tratá-la e preveni-la. 

O prazer de comer e o excesso de peso

Em 2018, o psiquiatra e neurocientista Albino Oliveira-Maia, que dirige a Unidade de Neuropsiquiatria na Champalimaud Research e no Centro Clínico Champalimaud, publicou na revista Scientific Reports, com a sua equipa e colaboradores, um estudo sobre pessoas com obesidade. Estes cientistas mostraram que a “fome hedónica”, uma medida psicológica da motivação de comer por prazer, explica menos de 10% da variabilidade do IMC (índice de massa corporal, uma medida da relação entre peso e altura). Porém, quando compararam pessoas com obesidade e pessoas não-obesas, observaram que existiam diferenças significativas e robustas em termos de fome hedónica entre esses dois grupos de pessoas. “Embora a recompensa alimentar desempenhe claramente um papel na obesidade, não conta a história toda”, disse Albino Oliveira-Maia na altura.

“O prazer de ingerir alimentos é natural e saudável, mas torna-se extremo na obesidade”, acrescentou, pelo seu lado, a nutricionista clínica Gabriela Ribeiro, primeira autora do estudo, que está a concluir o seu doutoramento no laboratório de Albino Oliveira-Maia. “Obviamente, para desenvolver obesidade, é preciso comer exageradamente – e naturalmente, o prazer de comer contribui para este excesso. Mas o nosso estudo sugere que outros fatores devem estar envolvidos nesta associação.”

Albino Oliveira-Maia deu exemplos de outros potenciais fatores: “O consumo excessivo de alimentos altamente calóricos e a inatividade física são importantes determinantes da obesidade. Mas estão por sua vez sob a influência de um amplo conjunto de fatores biológicos, genéticos e psicológicos, bem como de determinantes ambientais, sociais e culturais. O nosso estudo sugere que a variabilidade do IMC só pode ser explicada em termos de múltiplos fatores, muitos dos quais ainda não são claros.”

Num outro estudo, publicado este ano no American Journal of Clinical Nutrition e igualmente liderado por Albino Oliveira-Maia e com Gabriela Ribeiro como primeira autora, a dupla analisou as associações entre a fome hedónica, entre outras medidas, e a perda de peso a seguir à cirurgia bariátrica, que é actualmente o tratamento de longo prazo mais eficaz para a obesidade grave. Neste estudo, mostraram, pela primeira vez, que quanto maior a fome hedónica, menor a perda de peso, corroborando assim a existência de uma associação entre esta medida da recompensa alimentar e a obesidade. No entanto, também observaram associações diferentes com outras medidas associadas à recompensa alimentar. A mais importante foi que os doentes que tinham uma percepção aumentada da intensidade do sabor doce antes da cirurgia bariátrica perderam mais peso, e não menos, após a cirurgia. A corroborar esta associação, os doentes que apresentaram maiores reduções da percepção da intensidade do sabor doce após a cirurgia foram os que mais peso perderam.

“Em conjunto, estes dois estudos mostram que o comportamento alimentar relacionado com a recompensa se encontra alterado na obesidade, o que pode comprometer, por exemplo, a adesão às intervenções comportamentais. Isto abre novas perspectivas para a compreensão dos mecanismos subjacentes que contribuem para a ocorrência de obesidade”, diz Gabriela Ribeiro.

Quando o paladar fica fora da equação

Entretanto, em 2020, um estudo liderado por Albino Oliveira-Maia e o neurocientista Rui Costa (que, nessa altura, dirigia laboratórios na Champalimaud Research e na Universidade de Columbia, em Nova Iorque), foi publicado na revista Neuron, anunciando a descoberta de um eixo digestivo-cerebral no ratinho, que é activado após a ingestão de comida e controla a aprendizagem de comportamentos de procura de alimentos que não envolvem os sensores gustativos da boca. 

Através do nervo vago (um nervo longo que liga o cérebro a muitos órgãos internos), estes dois sistemas comunicam, controlando os comportamentos de procura de alimentos independentemente da nossa percepção do sabor da comida!

Para o demonstrar, a equipa desenvolveu uma tarefa na qual os animais, ao carregarem em alavancas, recebiam uma injeção direta de alimentos no estômago. “Era importante fazê-lo dessa forma para eliminar aspetos orosensoriais e focarmo-nos exclusivamente nos seus efeitos pós-ingestivos”, explicou Ana Fernandes, primeira autora do estudo, que está a fazer o pós-doutoramento no laboratório de Albino Oliveira-Maia. 

Segundo este estudo, na extremidade digestiva deste eixo está o fígado, que poderá funcionar como um sensor metabólico global do valor nutricional da comida a ser consumida. Na outra ponta, do lado do sistema nervoso, este diálogo envolve neurónios produtores de dopamina, componentes bem conhecidos do chamado circuito da recompensa do cérebro. “Este estudo mostrou que esses neurónios também são ativados quando os alimentos chegam ao estômago e ao intestino”, disse Rui Costa. E não apenas quando entra em contacto com as nossas papilas gustativas. 

Por outras palavras, isto sugere que o cérebro humano poderá aprender a  “sentir-se recompensado” pelo consumo alimentar através de um processo subconsciente que nada tem a ver com o facto de gostarmos ou não do sabor da comida. A nossa biologia é extremamente poderosa.

Bactérias intestinais aos comandos  

No seu laboratório de Comportamento e Metabolismo, as pesquisas do neurocientista Carlos Ribeiro sobre o microbioma – a comunidade de bactérias que reside no intestino dos animais, incluindo os seres humanos – também está relacionado com a obesidade. É incontestável que os nutrientes e o microbioma têm um impacto na saúde, e doenças como a obesidade têm sido associadas à composição da dieta e do microbioma.

Acontece que, em 2017, Carlos Ribeiro e colegas já tinham descoberto um outro “diálogo” entre o cérebro e o intestino, que regia as preferências alimentares das moscas-da-fruta. Essencialmente, estes cientistas mostraram que as bactérias intestinais “falam” com o cérebro da mosca-da-fruta e controlam as suas escolhas alimentares. Os autores, que publicaram o seu estudo na PLoS Biology, identificaram ainda duas espécies de bactérias que têm um impacto radical nas decisões alimentares dos animais. Estas bactérias intestinais “parecem induzir uma alteração metabólica que age sobre o cérebro e o corpo”, explicou Zita Santos, co-autora do estudo.

Mais tarde, em 2020, o laboratório de Carlos Ribeiro publicou um outro estudo, na Nature Communications, que mostrava como as duas espécies bacterianas previamente identificadas falam entre si para mudar o que a mosca come. “A mosca e o seu microbioma menos complexo [do que o nosso] permitem-nos dissecar com precisão os mecanismos através dos quais a microbiota altera as escolhas alimentares do hospedeiro”, fez notar Sílvia Henriques, primeira autora deste estudo.

O que é que isto significa para os humanos? Que, possivelmente, a composição da população daqueles diminutos micróbios, que são indispensáveis para nossa digestão, também poderá ter a ver com o facto de ganharmos ou não peso em excesso.

Desregulação imunitária

Ainda na Champalimaud Research, o laboratório de Imunofisiologia, liderado por Henrique Veiga-Fernandes, está a explorar uma via totalmente diferente, que envolve a imunidade intestinal e que também poderá permitir, um dia, desenvolver novos tratamentos contra a obesidade.  

“O intestino é o palco de um fascinante conflito biológico entre a necessidade de o corpo absorver elementos externos (nutrientes) e o risco de exposição a agentes patogénicos que está associado esse mesmo processo ”, explica Roksana Pirzgalska, pós-doutorada no laboratório de Henrique Veiga-Fernandes. “A mucosa intestinal (ou seja, a membrana de tecido em contato com os alimentos ingeridos) é a atriz principal nesse conflito, com as células da mucosa a terem que coordenar a absorção de nutrientes com a proteção imunológica. Daí não ser surpreendente a desregulação da mucosa estar associada tanto a doenças inflamatórias como metabólicas ” tais como a obesidade. 

Ao nível da mucosa intestinal, existem células epiteliais (que forram a parede interna do intestino) e células imunitárias. Em 2017, Henrique Veiga-Fernandes e a sua equipa (da qual Roksana Pirzgalska ainda não fazia parte) descobriu que neurónios situados na mucosa conseguem imediatamente detectar uma infecção, produzindo rapidamente uma substância que funciona como um “pico de adrenalina” para as células imunitárias. Sob o efeito deste sinal, as células imunitárias ficam rapidamente prontas a lutar contra a infecção e a reparar os estragos causados nos tecidos envolventes. Os seus resultados foram publicados na revista Nature.

Desde então, estes cientistas complicaram o “jogo”, levantando a hipótese de que as células epiteliais do intestino também respondem a sinais neuronais derivados do cérebro e que essa resposta é um elemento-chave da regulação da imunidade intestinal e da absorção dos nutrientes. A procura desse "circuito neuroepitelial cérebro-intestino” está apenas a começar.

“O nosso objectivo final é perceber a função deste hipotético circuito, e determinar em que medida esta informação pode ser aproveitada numa perspectiva clínica” diz Roksana Pirzgalska – e nomeadamente, para permitir o desenvolvimento de novos tratamentos da obesidade. “A nossa hipótese”, acrescenta a cientista, “está de acordo com a observação que pacientes com obesidade e diabetes de tipo 2 apresentam uma ampla gama de complicações a nível da função nervosa periférica e da imunidade intestinal”. Acreditamos que a identificação e a caracterização funcional desse circuito poderá abrir o caminho para novas abordagens clínicas no tratamento da obesidade, entre outras doenças.” 

Obesidade e cancro

No Centro Clínico Champalimaud, dedicado à doença oncológica, a nutricionista-dietista Marta Carriço é responsável por ajudar as pessoas que sobrevivem ao cancro a evitar e tratar a obesidade mantendo padrões saudáveis de regime alimentar e de estilo de vida. É sabido que o excesso de gordura corporal é um factor de risco para a reincidência do cancro e que, portanto, lidar com a obesidade é crucial para a sobrevivência livre de cancro a longo prazo. 

A obesidade é também um dos principais factores de risco de cancro que é possível alterar. É por isso que Marta Carriço também fornece apoio nutricional às pessoas que recorrem ao Centro Clínico Champalimaud para realizar a avaliação de risco e diagnóstico precoce de cancro.

“A obesidade em si provoca alterações metabólicas que parecem estar ligadas ao aparecimento e à progressão do cancro”, explicou Marta Carriço num webinar, em 2020, no qual se juntou a Albino Oliveira-Maia e a Gabriela Ribeiro para falar deste tema. “Os dados estatísticos mostram ser expectável que, em 2030, mais de 50% da população mundial sofra de obesidade. Portanto, alguns especialistas acreditam que, nessa altura, a obesidade venha a tornar-se o maior factor de risco para o cancro.”

Muitas pessoas que sobreviveram a um cancro sentem que é crucial modificar o seu estilo de vida para reduzir o risco de reincidência da doença – e a gestão da dieta e do peso são factores importantes nesse sentido. “Nós apostamos em padrões dietéticos do tipo dieta mediterrânica e sobretudo na personalização da nossa abordagem para cada doente conforme a sua história clínica, as suas crenças e as suas rotinas diárias”, acrescentou Marta Carriço. 

A informação relativa à associação entre dieta, composição corporal e cancro deve ser dada aos doentes e aqueles que o desejarem devem receber apoio durante todo o processo de mudança comportamental, dado que se trata de um processo complexo. “Temos de conhecer cada um dos doentes e trabalhar com eles”, salientou a especialista.

“Toda esta abordagem tem de ser multidisciplinar”, concluiu Marta Carriço, “(...), porque temos de ter em conta não só a saúde física dos doentes mas também a sua saúde mental”, um equilíbrio por vezes difícil de atingir, no cruzamento de uma multiplicidade de áreas de especialização. Sublinhando a natureza multidisciplinar destes esforços, Albino Oliveira-Maia e colegas da Unidade de Neuropsiquiatria estão a participar no FAITH, um consórcio europeu financiado por uma bolsa do programa de investigação e inovação Horizonte 2020 da União Europeia, que irá estudar preditores da depressão e da qualidade de vida nas pessoas que sobrevivem ao cancro, incluindo variáveis relacionadas com a nutrição.

A diversidade das abordagens científicas e clínicas desenvolvidas para combater a obesidade no Centro Champalimaud espelha a sua natureza multifactorial. Aspectos genéticos, psicológicos, comportamentais, imunológicos, sensoriais e outros entrelaçam-se para dar origem a esta doença. Os peritos precisam de os desentrelaçar um a um para conseguir um dia desenvolver tratamentos novos e eficazes para a obesidade.  

Por Ana Gerschenfeld, Health & Science Writer da Fundação Champalimaud.
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