16 Fevereiro 2023

Quando investigadores e médicos colaboram, as consequências podem ser potencialmente decisivas

A investigação translacional tem por objectivo transformar os resultados da investigação fundamental em tratamentos, de forma a resolver problemas médicos. Quando é bem sucedida, pode rapidamente beneficiar directamente os doentes. Eis um caso ilustrativo.

Laura Fernández, Rita Fior, Bruna Costa

Cientistas e médicos da Fundação Champalimaud juntaram esforços para reduzir a toxicidade da chamada “quimioradiação neoadjuvante” – a combinação de quimioterapia e radioterapia – no tratamento do cancro rectal. A serem confirmados, os seus resultados – publicados há uns meses na revista científica Frontiers in Oncology, poderão, num futuro não muito distante, ajudar muitos doentes com cancro rectal, especialmente os mais idosos e frágeis.

A quimioradiação neoadjuvante é o “padrão de referência para o tratamento dos doentes com cancro rectal localizado avançado”, diz Laura Fernández, cirurgiã colorrectal da Unidade do Digestivo no Centro Clínico Champalimaud (CCC) e segunda autora do estudo. 

Uma das funções da quimioterapia é sensibilizar as células tumorais malígnas à radiação concomitante. Para isso, um composto com o nome de 5-FU é habitualmente utilizado. Após o tratamento com radioquimioterapia, o doente será submetido a cirurgia para extrair o tumor.

Mas acontece que, em alguns doentes, a resposta do tumor é na realidade completa, o que significa que após o tratamento, o tumor desaparece por completo. Ora, isso pode permitir poupar alguns desses doentes à cirurgia (e a todas as suas complicações), graças a um protocolo de vigilância muito estrito, conhecido como Watch and Wait (“monitorizar e esperar”, ou W&W).

O protocolo W&W tem vindo a ser cada vez mais utilizado em doentes seleccionados, permitindo evitar as graves complicações decorrentes da cirurgia rectal, bem como as colostomias (que implicam a utilização de um saco para recolher as fezes). É por isso que, nos últimos anos, “têm havido tentativas para aumentar a resposta dos tumores [à quimioradiação neoadjuvante], com o intuito de fazer com que um maior número de doentes possam evitar a cirurgia, em particular os doentes mais idosos e frágeis, para quem a cirurgia apresenta grandes riscos”, explica Laura Fernández. “Mas o problema é que todas essas tentativas também aumentam a toxicidade do tratamento, quer pelo aumento da dose de quimioterapia [incluindo a do 5-FU], quer pelo aumento da dose de radioterapia.”

O novo estudo sugere, pela primeira vez de forma experimental, que um outro composto – um medicamento de baixo custo chamado metformina, actualmente utilizado para o controlo da diabetes e quase desprovido de toxicidade – poderá ser um substituto do 5-FU igualmente eficaz, se não mais. 

Peixes-zebra com tumores humanos

A ideia de que a metformina seria capaz de sensibilizar os tumores à radiação não é nova. Mas “embora a metformina tenha sido reportada como sendo um radiosensibilizador em vários tipos de tumores sólidos, os resultados provêm maioritariamente de estudos epidemiológicos retrospectivos”, diz Bruna Costa, primeira autora do estudo. Bruna Costa trabalha na área de investigação da Fundação Champalimaud (Champalimaud Research), no Laboratório de Desenvolvimento do Cancro e Evasão do Sistema Imunitário Inato, dirigido por Rita Fior, bióloga e líder do estudo. “É a primeira vez que a metformina é testada directamente recorrendo a amostras de tumores rectais de doentes”, acrescenta Bruna Costa.

Há vários anos que o laboratório de Rita Fior está a desenvolver um teste que utiliza peixes-zebra como “avatares” de doentes com cancro – para determinar qual a melhor terapia para cada doente. Os investigadores criam os avatares injectando, nos embriões destes peixes, células tumorais malígnas vindas de doentes humanos, dando assim origem a “xenógrafos de peixe-zebra” (peixes-zebra com um transplante vindo de um dador de outra espécie). 

O laboratório desenvolveu um protocolo para avaliar, in vivo, a resposta à radioterapia nestes avatares, mostrando que era possível distinguir os tumores radiossensíveis dos radiorresistentes em apenas quatro dias! Isso poderia evitar submeter doentes cujas células não respondem à radioterapia a radiações desnecessárias. Mas também, comparar o efeito de radiossensibilização da metformina ao do 5-FU nos avatares de doentes com cancro rectal.

“Este protocolo, aliado ao acesso a amostras de doentes do CCC, era a combinação ideal para testar a hipótese [da metformina] no nosso modelo”, diz Bruna Costa.

Laura Fernández conhecia o trabalho com avatares de peixe-zebra e, por isso, propôs às suas colegas cientistas a sua ideia de testar os efeitos da metformina no cancro rectal. “O modelo do peixe-zebra permite-nos injectar células tumorais de doentes reais, administrar aos peixes a quimioradioterapia neoadjuvante [com 5-FU ou metformina como sensibilizador] e avaliar o efeito  correspondente. E obtemos a resposta em apenas uma semana!, salienta.

Os resultados foram muito positivos: “Os avatares de peixe-zebra permitiram confirmar que a metformina tem de facto um poderoso efeito radiossensibilizador in vivo, apesar de alguns tumores serem resistentes a todos os tratamentos”, diz Bruna Costa. “Além disso, descobrimos que, ao contrário do 5-FU, a metformina também é eficaz numa linha de células tumorais resistente à radiação. Especificamente, foi mais eficaz do que o 5-FU na redução da proliferação e do tamanho do tumor, e na activação da morte celular por apoptose”, acrescenta.

“O nosso trabalho confirma que a metformina constitui uma alternativa promissora e menos tóxica ao habitual 5-FU, o que poderá ter consequências decisivas para optimizar a regressão tumoral nos doentes idosos/frágeis”, escrevem os autores no seu artigo.
 

Artigo original: Frontiers in Oncology
Legenda da Imagem (da esquerda para a direita):

Laura Fernández, Cirurgia Digestiva e Colorretal, Unidade de Digestivo do Centro Clínico Champalimaud;
Rita Fior, Investigadora Principal, Laboratório de Desenvolvimento do Cancro e Evasão do Sistema Imunitário Inato;
Bruna Costa, Investigadora Pós-Doutorada, Laboratório de Desenvolvimento do Cancro e Evasão do Sistema Imunitário Inato.

Texto de Ana Gerschenfeld, Health & Science Writer da Fundação Champalimaud.
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