29 Setembro 2022

Quando a questão é como reparar a “janela do olho”

As doenças da córnea são uma das principais causas de cegueira no mundo. Mas a reparação da córnea, a camada mais superficial do olho, que é normalmente transparente, pode causar complicações que, por sua vez, dêem origem a doenças graves como o glaucoma. O trabalho dos laureados do Prémio António Champalimaud de Visão 2022 melhorou radicalmente a nossa compreensão da biologia da córnea e mudou o tratamento das doenças que a afetam, poupando à cegueira e potenciando a recuperação da visão em milhões de pessoas.

Prémio António Champalimaud de Visão: Quando a questão é como reparar a “janela do olho”

A 15 de Setembro de 2022, o Prémio António Champalimaud de Visão foi atribuído a dois médicos-cientistas, ambos oftalmologistas, pelo seu trabalho pioneiro na compreensão e no tratamento das doenças da córnea. Gerrit Melles, do Instituto de Inovação em Cirurgia Ocular dos Países Baixos, e Claes Dohlman, do Hospital Eye & Ear do Massachusetts e da Universidade de Harvard, partilharam o prestigioso prémio de um milhão de euros – um deles pelo desenvolvimento de cirurgias inovadoras de transplante de córnea e o outro pelo seu contributo à investigação da córnea e o desenvolvimento de uma córnea artificial, a “Boston K-Pro”.

À cornea é frequentemente atribuída a conhecida metáfora de “janela do olho”: são a transparência, lisura e curvatura desta milimétrica, delicada e praticamente invisível camada, situada à superfície da esfera ocular, que estão na base de grande parte do poder de foco do olho. São essas qualidades da córnea que nos permitem ter uma percepção clara e não distorcida do mundo exterior, semelhante àquela que fornece um vidro de alta qualidade colocado numa janela.

Sendo a córnea a camada ocular exterior, a maior parte dos danos sofridos pelos olhos afectam-na. E quando doenças ou alterações – tal como o queratocone ou a distrofia de Fuchs – opacificam esta estrutura, tornam-na irregular ou mudam a sua forma, seguem-se deficiências visuais e mesmo cegueira. Hoje, novas técnicas cirúrgicas e até uma prótese estão a conseguir tornar a reparação da córnea muito mais segura e eficaz do que há umas décadas atrás.

O tratamento convencional das opacidades da córnea é o transplante de córnea, que é praticado desde há mais de um século. O seu nome técnico é “queratoplastia penetrante” (ou seja, que envolve toda a espessura da córnea). Para a realizar, o cirurgião oftalmologista corta e retira a parte central da córnea do doente e substitui-a por um “botão” de córnea completa vinda de um dador.

A córnea possui essencialmente cinco camadas, que são portanto transplantadas todas juntas durante a cirurgia convencional. Isso pode causar complicações bem conhecidas, tal como astigmatismo devido às suturas ou à rejeição da córnea do dador pelo doente. Para tratar a inflamação resultante destes transplantes clássicos, são frequentemente administrados corticosteróides, que podem por sua vez provocar glaucoma, uma doença potencialmente grave do olho.

Mas as técnicas de Melles apenas removem a camada afectada da córnea do doente. “O que fazemos é transplantar selectivamente a camada da córnea que está efectivamente danificada, sem mexer nas outras”, disse-nos Melles durante uma entrevista em Lisboa.

Uma abordagem estratificada

Por que é que este médico-cientista começou a interessar-se pela questão? “Durante a minha formação de cirurgião da córnea, vi muitos doentes com problemas após transplantes de córnea: um desses problemas era o astigmatismo, causado pelo facto de a nova córnea não ser perfeitamente esférica devido às suturas”, disse Melles.

Martine Jager, oftalmologista neerlandesa e cirurgiã da córnea da Universidade de Leiden, que este ano nomeou Melles para o Prémio António Champalimaud de Visão, esteve na Fundação para assistir à cerimónia de entrega do Prémio. E disse-nos: “Melles pensou para consigo próprio, ‘que estranho, ninguém corta a perna às pessoas só por causa de um problema num osso! Então por que não havíamos de substituir apenas a camada de córnea doente? E foi exactamente isso que fez.”

Há mais de duas décadas, tal como muitos outros especialistas, Melles começou a pensar que talvez fosse o próprio conceito da cirurgia clássica da córnea que estava totalmente errado – e a precisar de ser radicalmente melhorado. “Quando substituímos certas camadas que não estão realmente danificadas, vamos ser confrontados com as complicações decorrentes da sua remoção, mas sem qualquer benefício”, raciocinou. “Mas se, por exemplo, apenas o endotélio [a camada mais profunda da córnea] estiver danificado, e nós o removermos e colocarmos um novo endotélio, as restantes camadas já não vão dar complicações.” 

“Eu examinei o terceiro doente que o próprio Melles operou", diz Jager. “Mas não consegui encontrar suturas… Passavam então seis meses da cirurgia, e o doente tinha uma visão de 80%. Nunca tínhamos visto nada assim! Depois percebi que Melles só podia ter utilizado a nova técnica de que andava a falar. E tinha. Foi brilhante!” 

Hoje em dia, as técnicas de “queratoplastia lamelar” (conhecidas por acrónimos como DMEK, DSEK, DSAEK, DALK em função da técnica utilizada e da camada de córnea transplantada) são utilizadas em todo o mundo. Em países como os Estados Unidos e a Alemanha, o número de queratoplastias lamelares ultrapassou o número de queratoplastias penetrantes. 

Apesar do sucesso e da crescente simplicidade das suas técnicas e equipamentos, Melles mostra-se prudente quanto à possibilidade de tornar o transplante lamelar de córnea tão omnipresente como a cirurgia das cataratas, que consiste em substituir a lente do olho por uma lente sintética, e que precisa de muitos menos cuidados adicionais.

“O problema com o tecido de dador”, explica, “é que a maior parte do tempo os doentes precisam de cuidados médicos de longo prazo – por causa dos riscos de rejeição, nomeadamente. Mas o que acontece às pessoas que voltam para a terra remota onde vivem e nunca mais têm cuidados médicos ao seu alcance? Submeter uma pessoa com 10% de visão à cirurgia, para ela acabar por ter este tipo de problemas, ficando com a visão ainda mais diminuída, não representaria qualquer benefício para essa pessoa. Sem esquecer que também há imensa gente sem acesso nenhum, à partida, a cuidados de saúde.”

Melles manteve-se firme quando foi criticado pelas suas técnicas inéditas. “Quando lhe dificultaram a vida onde trabalhava, abriu a sua própria clínica. Quando lhe dificultaram a vida no biobanco (as instalações onde os tecidos de dadores humanos são recebidos, armazenados e preparados para transplante), desenvolveu o seu próprio biobanco”, diz Jager. “E a seguir, começou a ensinar o mundo a fazer essas cirurgias. Hoje, todos esses médicos só substituem uma camada. Por ter influenciado a vida de tanta gente, acho que Merrit Gelles é absolutamente a pessoa mais indicada para receber o Prémio Champalimaud de Visão.”

Janela artificial

Claes Dohlman, frequentemente considerado como o pai da ciência moderna da córnea, foi o outro laureado do prémio António Champalimaud de Visão 2022. Este especialista da córnea, nascido na Suécia, fez 100 anos quatro dias antes de receber o Prémio em Lisboa. Mas, por incrível que pareça, ainda tem uma vida profissional activa, contribuindo para a escrita dos artigos científicos do seu laboratório, que fundou há mais de 60 anos, e participando no trabalho da sua equipa.  

Dohlman tem especial orgulho em ser reconhecido pela invenção de uma prótese de córnea, a Boston K-Pro. “É uma janela artificial – uma solução óbvia quando se trata de substituir uma córnea opacificada”, declara. “Mas não é tão simples quanto isso, porque o procedimento tem de ser seguro, acessível em termos monetários, eficaz e fácil de realizar para o cirurgião. O problema é que ainda é muito caro.”

Dohlman conseguiu desenvolver a sua córnea artificial quando muitos outros falharam. Qual foi o segredo do seu sucesso? “Apenas o facto de ter perseverado no esforço de criar uma córnea artificial”, disse-nos. “Muitas pessoas tentaram fazê-lo, gente muito inteligente, cirurgiões, mas não tiveram a paciência. Não continuaram a esforçar-se década após década após década. Desistiram demasiado cedo.” 

A Boston K-Pro entra em campo quando o transplante de córnea não funciona – mais precisamente, quando o doente tem os olhos demasiado danificados. “A procura incessante de uma córnea artificial [por Claes Dohlman], em especial para os doentes cujos olhos estão demasiado danificados para poderem beneficiar de um transplante (...) de córnea, levou-o a desenvolver a Boston K-Pro, hoje utilizada no mundo inteiro”, lê-se num comunicado da Fundação Champalimaud. A prótese de Dohlman é hoje a mais utilizada no mundo, tendo devolvido a visão a mais de 15 mil doentes nos Estados Unidos e mais outros 52 países. 

O que significa “danificada”? “É uma questão de nível de inflamação”, diz Dohlman. “Quando há muito pouca inflamação, pode-se recorrer ao transplante de tecido humano através de uma queratoplastia penetrante ou da abordagem camada a camada de Gerrit Melles. Mas se existir um estado claramente inflamatório – vermelhidão ocular, dor, etc. – então é pouco provável que um transplante resulte.”

No mundo ocidental, metade das opacidades da córnea não decorrem de doenças da córnea, mas sim de edemas (acumulação de líquidos) – o que significa que o nível de inflamação é muito baixo. “Portanto, é provável que o mundo ocidental siga o caminho traçado por Melles e continue a substituir córneas com tecido de dadores, camada a camada”, diz ainda Dohlman. Mas no mundo em desenvolvimento, “onde vive, e tenta ganhar a vida, 90% das pessoas que cegaram devido a opacidades córneas”, o grau de inflamação da córnea, devida a infecções oculares e outras lesões dos olhos, é muito mais alto. “Quando existe muita inflamação, isso faz pender a balança a favor de uma córnea artificial como a Boston K-Pro”, acrescenta.

Uma das maiores complicações da K-Pro, porém, é o chamado glaucoma secundário em doentes com doença grave da córnea que recebem uma prótese. “Os pormenores desta complicação eram desconhecidos por nós e por todos. Mas estudámos o glaucoma e isso foi o mais importante. E estamos a vencê-lo”, diz Dohlman. 

O que descobriram foi que, quando o olho sofre uma queimadura química, por exemplo, certas células da córnea libertam proteínas inflamatórias específicas (citoquinas), colectivamente chamadas factores de necrose tumoral alfa ou FNT-alfa, que alastram muito rapidamente a todo o olho por infiltração. E que este processo afecta células associadas ao glaucoma. 

“[Também] sabemos agora que os anticorpos dirigidos contra os FNT-alfa são fenomenalmente eficazes na inibição dos efeitos nefastos dos FNT-alfa. E submetemos um artigo [sobre os nossos resultados] à revista Ophthalmology Science”, salienta. Estes resultados podem significar, segundo Dolhman, que o glaucoma secundário associado à Boston K-Pro poderá ser prevenido por um cocktail de inibidores dos FNT-alfa, entre outros compostos. “Vai funcionar, eu sei que vai. Daqui por uns dez anos.”   

De volta a casa depois da cerimónia, os festejos dos laureados continuaram em Roterdão e Boston, respectivamente. Melles, que é também compositor de música clássica e fundador da Melles Classical Music Foundation, celebrou o Prémio com um concerto. Dohlman juntou no Harvard Faculty Club mais de 60 colegas e ex-colegas – e a seguir, festejou o Prémio e o seu centésimo aniversário com os seus quase 40 filhos, netos e bisnetos. 

Por Ana Gerschenfeld, Health&Science writer da Fundação Champalimaud.
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