22 Maio 2025

Recomendações para o uso clínico de substâncias psicadélicas apresentadas na Fundação Champalimaud

As recomendações visam contribuir para a regulamentação da utilização de substâncias com efeitos psicadélicos no tratamento de doenças do foro mental. Partiram de uma iniciativa da Fundação Champalimaud e da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental.

Recomendações para o uso clínico de substâncias psicadélicas apresentadas na Fundação Champalimaud

Foi uma feliz coincidência: o texto final das Recomendações do Grupo de Trabalho Multidisciplinar e Multiprofissional sobre o Uso Clínico de Substâncias Psicadélicas foi divulgado precisamente no dia em que o Sistema Nacional de Saúde português anunciou a decisão de comparticipar a 100% o tratamento da depressão resistente com uma substância chamada escetamina.

Quem o fez notar, durante a sessão de apresentação pública, foi Albino J. Oliveira-Maia, director da Unidade de Neuropsiquiatria da Fundação Champalimaud e um dos principais impulsores do documento agora finalizado.

A escetamina é um derivado da cetamina, uma outra substância psicadélica que é hoje principalmente utilizada como anestésico. De facto, a escetamina é, até à data, a única substância psicadélica a ter sido formalmente aprovada para tratar uma doença no âmbito da saúde mental pela Food and Drug Administration norte-americana e pela Agência Europeia do Medicamento. 

O documento agora apresentado visa estabelecer directrizes claras sobre a potencial utilização de outras substâncias psicadélicas tais como o LSD, a psilocibina (componente de cogumelos alucinógenos), o DMT (ingrediente da ayahuasca) ou o MDMA (ecstasy) para tratar não só a depressão grave mas também a perturbação de stresse pós-traumático, entre outras. 

Estudos e ensaios realizados com algumas destas substâncias têm fornecido resultados promissores. Actualmente, a psilocibina e o MDMA encontram-se em fase de ensaios clínicos avançados e o estudo dos eventuais benefícios terapêuticos do LSD e da ayahuasca numa fase bastante mais preliminar. Este tipo de substâncias também poderá ter potencial clínico no tratamento de perturbações adictivas, do comportamento alimentar e nos cuidados paliativos.

Todavia, todos os intervenientes na sessão (todos eles ligados à elaboração do documento) concordaram em dizer que ainda não existe suficiente evidência científica sobre a segurança e a eficácia da maioria dos tratamentos com substâncias psicadélicas.

Desafios éticos e médicos

A constituição do grupo de trabalho que elaborou as recomendações partiu de uma iniciativa da Fundação Champalimaud e da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e de Saúde Mental. Era ainda constituído por representantes do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, bem como das Ordens dos Médicos, dos Farmacêuticos e dos Psicólogos Portugueses. O documento agora divulgado demorou dois anos a ser elaborado – o que não admira, dada a complexidade dos desafios éticos e médicos que a utilização com intuito clínico destas substâncias levanta. 

“A experiência psicadélica constitui uma alteração qualitativa do estado de consciência”, lê-se no documento. “É descrita pela presença de alterações em vários domínios, nomeadamente da sensação e da percepção do ambiente exterior, dos limites do eu ou do self, do conteúdo do pensamento (...)”. Em particular, as substâncias psicadélicas diminuem a capacidade de tomada de decisão dos doentes, durante e após o tratamento: “(...) as pessoas doentes tornam-se mais vulneráveis, podendo ser incapazes de proteger os seus próprios interesses, e potencialmente expondo-se a abusos (...)”.

Daí a importância de uma reflexão profunda sobre as especificidades do consentimento informado aquando da utilização de substâncias psicadélicas, cujos efeitos podem, para mais, prolongar-se no tempo, finda a administração do fármaco. O consentimento informado constitui portanto um dos principais aspectos das recomendações. “O consentimento informado representa um verdadeiro desafio devido à natureza dos medicamentos em causa e das doenças mentais”, fez notar Manuela Silva, Presidente do colégio de psiquiatria da Ordem dos Médicos.

Outro aspecto destacado pelos intervenientes na sessão pública foi o facto de que não se deve nunca confundir o uso médico destas substâncias com o seu uso para fins recreativos ou de auto-medicação. “As substâncias psicadélicas são medicamentos e como tais, estão sujeitas à legislação da União Europeia”, disse Hélder Mota Filipe, bastonário da Ordem dos Farmacêuticos. “Os medicamentos têm regras e o seu uso adequado deve ser protegido”. E acrescentou: “Cinquenta por cento deste tipo de substâncias vendidas em sites são falsificados; é preciso dar informação às pessoas sobre os riscos de usar estes canais”.

A realização de um acompanhamento psicoterapêutico, em paralelo com a administração de substâncias psicadélicas e eventualmente mais prolongado no tempo, também foi considerada fulcral, bem como a formação específica dos profissionais de saúde envolvidos. 

O documento foi já traduzido para inglês e está sob consideração  para publicação numa revista médica internacional.

Texto de Ana Gerschenfeld, Health&Science Writer da Fundação Champalimaud.
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