05 Agosto 2021

Recuar no tempo: competição celular no envelhecimento

Investigadores da Champalimaud Research passam em revista os últimos estudos relacionados com a competição ao nível celular, colocando em destaque as variadas implicações que esta tem no processo de envelhecimento.

Recuar no tempo: competição celular no envelhecimento

O tempo passa, não espera por ninguém e até voa, ou assim é costume dizer. Para os organismos vivos, o envelhecimento é o resultado natural e inevitável dessa passagem do tempo. Mas ao longo dos anos, temos lutado contra o Tempo e aumentado a expectativa de vida humana por meio de melhores cuidados médicos, hábitos de higiene, dieta e exercício. Acresce a isto, o facto da idade máxima que uma pessoa poderá agora atingir ser de cerca de 121 anos (atenção que esta é a expectativa de vida máxima - poucos chegarão a essa marca, mas a maioria de nós morrerá a tentar!).

Mas a ciência médica não se preocupa apenas com o envelhecimento em termos de expectativa de vida. Na verdade, há outro problema associado à desaceleração do processo de envelhecimento: à medida que as pessoas vivem mais, sofrem de mais problemas de saúde relacionados com a idade, bem como com o 'desgaste' geral do corpo, causado simplesmente pelo 'uso'. Há 100 anos, poucas pessoas se preocupavam com dores nas articulações, que habitualmente começam por volta dos 40 anos, mas agora os seus 'maus' joelhos terão de os manter em movimento durante toda a segunda metade das suas vidas, ou mais. Além disso, o envelhecimento no corpo humano não pode ser visto como um conceito único, pois certas partes do corpo, tecidos, órgãos e até células mostram sinais de envelhecimento em ritmos e extensões diferentes e com resultados também eles totalmente diferentes.

Vantagem competitiva

À medida que a expectativa de vida aumenta, bem como os problemas de saúde relacionados com o avançar da  idade, os cientistas do laboratório Fitness Celular, da Champalimaud Research, investigam para descobrir o papel que o mecanismo biológico designado por “competição celular” desempenha em processos como o envelhecimento, o desenvolvimento, a regeneração de tecidos e o cancro.

A Mariana Marques-Reis e o Eduardo Moreno, do referido Laboratório, realizaram um artigo de revisão na sua área de especialização, recentemente publicado na ‘Developmental Biology’. Esta revisão sobre o tema 'O Papel da competição celular no envelhecimento' abrange toda a literatura relevante sobre como a 'competição celular' pode afetar o envelhecimento e como podem existir opções para 'enganar' os nossos corpos, ao nível celular, que potencialmente resultarão na desaceleração, interrupção ou mesmo reversão do processo de envelhecimento. Neste momento, a maior parte da investigação, sobre a competição celular, é baseada em modelos animais como as moscas-da-fruta, peixes-zebra e ratinhos, mas os autores não encontram nenhuma razão para que os princípios fundamentais deste campo não possam ser aplicados no futuro, com sucesso, em humanos, havendo mesmo evidências iniciais que o suportam.

A primeira pergunta que surge naturalmente é: o que significa então ‘competição celular’? A competição celular é um processo biológico através do qual os nossos corpos eliminam as células menos saudáveis ​​do tecido. Este pode ser considerado como a forma do seu corpo realizar um controlo de qualidade das suas próprias células: à medida que as células más - perdedoras - são eliminadas, as células vencedoras - mais saudáveis - ​​podem substituí-las (e sim, células vencedoras e perdedoras são mesmo os seus nomes científicos!). Há 50 anos, a competição celular foi observada e estudada numa variedade de contextos, mas foi apenas na última década que grandes avanços foram alcançados neste campo - e de acordo com os especialistas, ainda estamos a um nível muito superficial.

Aplicações na vida real, da cabeça aos pés

À medida que envelhecemos, mais células danificadas começam a aparecer, mas se o corpo estiver a funcionar de forma ideal, as células mais saudáveis ​​continuarão a eliminar as menos saudáveis. No entanto, há muitos motivos pelos quais este processo por vezes falha.

Dando um exemplo especificamente relacionado com o envelhecimento, as nossas células sucumbem a algo chamado ‘senescência’. É quando as células não são exatamente inadequadas - na verdade, muitas vezes são capazes de desempenhar a sua função normalmente - mas não estão operacionais por variados motivos, e isso acontece cada vez mais com a idade. Nesta situação, em que as células vencedoras naturalmente eliminam as perdedoras, não irão conseguir identificar as células ‘adormecidas’ e senescentes. E isto pode ser perigoso, uma vez que essas células libertam toxinas à medida que se deterioram e criam um ‘ambiente celular desfavorável’.

As boas notícias são que os investigadores descobriram como fazer uma "fitness fingerprint" artificial dessas células, fazendo-as parecer células perdedoras, permitindo assim que sejam eliminadas pelas defesas naturais do corpo e substituídas por células saudáveis. Esse mesmo processo, de marcação de células impróprias que escaparam ao sistema de segurança natural, é uma das principais armas que os cientistas a trabalhar no laboratório Fitness Celular têm ao seu dispor e pode ser usado para tratar doentes com problemas cardíacos e o envelhecimento da pele.

Quando perder é ganhar e ganhar é perder

Em distúrbios neurológicos, como a doença de Alzheimer, a competição celular pode desempenhar um papel que vem colocar em causa um dogma há muito aceite: que perder neurónios, genericamente, nunca é uma boa ideia. Eduardo Moreno explicou o conceito recorrendo a uma metáfora simples: “as vias neuronais são como uma conversa entre muitas pessoas, em que cada pessoa passa informações à próxima. Se uma pessoa está a transmitir uma informação errada, pode muito rapidamente afetar centenas de outras. Nesta circunstância, alterar a mensagem que está a ser enviada, ou bloqueá-la de alguma forma, pode não ser possível, então a simples remoção da pessoa que está a dar a informação errada pode ser o caminho mais fácil.” Neste trabalho de revisão, o investigador formulou: ‘se houver uma seleção dos neurónios mais adequados e a eliminação das suas contrapartes subótimas, está provado que melhora as habilidades motoras e a memória. Portanto, a eliminação de neurónios é apresentada como podendo ser benéfica nos estágios iniciais da doença.’

Mas calma - antes de se deitar a mão àquela cerveja que mata as células do cérebro e de ter de se lidar com as calorias extra que vêm associadas, há que considerar o papel que a dieta tem no processo de envelhecimento. Neste momento é já amplamente aceite que uma dieta restrita e com controlo de calorias pode aumentar a expectativa de vida: ratos, ratinhos, vermes, aranhas, peixes e moscas vivem mais tempo com dietas restritas, não sendo por isso de estranhar que o mesmo seja verdade para os seres humanos. A razão para isto é bastante simples: se um organismo não tiver muito combustível, ele concentrar-se-á apenas na sua sobrevivência, ao invés de em processos que consomem muita energia, como é o caso da reprodução. Acontece que, se um organismo dirigir toda a sua energia disponível, simplesmente para se manter, poderá sobreviver por muito mais tempo.

Mas em que é que isto está relacionado com a competição celular e o envelhecimento? Da presente revisão: ‘[A restrição dietética] traduz-se numa melhoria do estado geral de fitness do epitélio. [...] Ao aumentar o estado de fitness do epitélio intestinal, a competição celular é bloqueada, a integridade intestinal é mantida e o tempo de vida prolongado.'

Para melhor entender esta afirmação é importante saber que os tecidos epiteliais estão espalhados por todo o corpo - nos intestinos, rins, aparelho respiratório e reprodutivo e muito mais - portanto, qualquer coisa que afete esse tecido não é de desprezar. O excerto acima sugere que uma dieta restrita melhora a aptidão das células neste tecido por meio da competição celular, e isso pode resultar num aumento significativo na longevidade: 'A competição, seja pela manutenção da integridade do tecido ou pela promoção da eliminação das células perdedoras, acabará por levar a um aumento da expectativa de vida.'

A competição nem sempre é saudável

O cancro é frequentemente visto como a última fronteira na luta por uma vida mais longa porque, se todos os outros fatores - dietéticos, estilo de vida, genéticos e ambientais - forem iguais, o cancro é algo que não pode ser totalmente evitado. As hipóteses de um indivíduo desenvolver um cancro aumentam a cada ano, o que significa que o envelhecimento da população inevitavelmente implicará mais cuidados oncológicos. O papel da competição celular no combate ao cancro é muito interessante, pois é bastante diferente do que desempenha nas situações mencionadas anteriormente.

Até agora, vimos como a competição celular pode ser otimizada e incentivada para ajudar as células saudáveis ​​a prosperar. No entanto, as células cancerosas operam "enganando" as células circundantes para que estas as identifiquem como "super-vencedoras". Isto significa que, em vez de lutar contra as células cancerosas, o próprio corpo eliminará as células saudáveis ​​em favor daquelas. O aumento da competição celular apenas aceleraria a progressão do cancro, por isso os investigadores estão a concentrar os seus esforços em fazer exatamente o oposto - reduzir a competitividade das células em torno dos tumores para minimizar e até mesmo reverter a proliferação das células cancerosas. Os cientistas estão ainda nos estágios iniciais do bloqueio da competição celular mediante o uso de anticorpos, mas as descobertas preliminares parecem ser muito promissoras.

Lentamente a caminho de uma desaceleração

A conclusão final desta revisão é que as aplicações da competição celular ainda estão numa fase exploratória, mas as perspectivas são muito promissoras, especialmente na área do envelhecimento. Para ser absolutamente claros, esta linha de investigação não está à procura de um cenário ‘Benjamin Button’; não haverá uma pílula ou vacina que possa reverter o envelhecimento (ainda!). Em vez disso, este empolgante campo de investigação concentra-se em funções específicas que, em conjunto com outros tratamentos e processos, poderão atenuar os efeitos e sinais do envelhecimento: ‘É tentador especular que, se este mecanismo de controlo de qualidade funcionar de forma eficiente ao longo da vida, possa conduzir a um envelhecimento mais saudável e vida mais longa’, propõe a revisão, mas, como os autores concluem, ‘o tempo o dirá’.

Para ler o artigo científico original completo aceda aqui

Por John Lee, content developer da Fundação Champalimaud.
Recuar no tempo: competição celular no envelhecimento
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