21 Setembro 2023

Recuperar a visão numa região do mundo assolada pelo conflito

O Prémio António Champalimaud de Visão 2023 reconhece um Grupo Hospitalar de Oftalmologia que tem tratado a cegueira de centenas de milhares de pessoas, independentemente da etnia, religião ou meios económicos, nas suas instalações de longa data em Jerusalém Oriental, na Cisjordânia e na Faixa de Gaza.

Recuperar a visão numa região do mundo assolada pelo conflito

No meio de um território que é, há muito tempo, um foco de confrontos armados e de instabilidade humanitária, o St John of Jerusalem Eye Hospital Group (SJEHG) tem conseguido prestar cuidados oftalmológicos de alta qualidade a nível mundial, bem como dar formação oftalmológica a profissionais médicos locais. 

"Pelo seu empenho em prestar cuidados oftalmológicos essenciais numa região marcada pelo conflito", o Grupo foi agora reconhecido com o Prémio António Champalimaud de Visão 2023, no valor de um milhão de euros, anunciou a Fundação Champalimaud em comunicado.

O SJEHG é, de facto, o único hospital especializado em cuidados oftalmológicos na região, onde está presente há 140 anos: o primeiro hospital do grupo foi criado em Jerusalém pela British Order of St John em 1882, durante o reinado da Rainha Vitória. Actualmente, a Ordem é presidida pelo Rei Carlos III, com parte da conselho de administração do SJEHG sedeada em Londres – e o CEO, a direção e as operações localizadas no Médio Oriente. 

"Começámos com um hospital – o hospital-mãe – em Jerusalém, diz Ahmad Ma'ali, actual CEO do SJEHG, que esteve em Lisboa há duas semanas, com o seu colega David Dahdal, director de Fundos e Desenvolvimento do grupo, para receber o Prémio. 

A partir da década de 1990, a direção do hospital decidiu que, para que os doentes que viviam em contextos de instabilidade territorial pudessem chegar às instalações e receber cuidados oftalmológicos, os serviços não podiam permanecer centralizados – e assim nasceu o SJEHG. Actualmente, existe um hospital em Gaza que presta quase todos os serviços; um hospital na parte sul da Cisjordânia, em Hebron; um centro médico no norte da Cisjordânia, em Anabta; e serviços móveis de proximidade tanto em Gaza como na Cisjordânia. Existem também duas pequenas clínicas, uma na Cidade Velha de Jerusalém e outra fora do muro de separação de Jerusalém. 

"Quanto às clínicas móveis, todos os dias duas equipas de médicos e enfermeiros carregam a carrinha com equipamento e viajam para a Cisjordânia ou para Gaza, para zonas isoladas, campos de refugiados e também para campos de beduínos", explica Ma'ali. As unidades móveis prestam cuidados oftalmológicos primários, fazem o rastreio e o tratamento primário dos doentes e encaminham aqueles que necessitam de tratamento adicional para o hospital principal ou para um dos centros satélite na Cisjordânia.

O SJEHG é também o principal fornecedor de formação oftalmológica para médicos e enfermeiros da região. "Fui um dos enfermeiros que se formou no hospital em 1992 e depois fui para a Universidade de Greenwich, no Reino Unido, fazer uma formação complementar", salienta Ma'ali, que também obteve um mestrado em Gestão Hospitalar e um doutoramento em Enfermagem.

Hoje em dia, o hospital principal passou a oferecer um diploma de pós-graduação de um ano em enfermagem oftalmológica, "que é único em todo o Médio Oriente", afirma Ma'ali. “E temos estado em negociações e discussões com os nossos colegas israelitas para que enviem os seus enfermeiros a formar-se connosco, porque eles não têm uma especialização em enfermagem oftalmológica". 

Ma'ali foi o primeiro palestiniano a ser nomeado, em 2016, Director Executivo do grupo. "Penso que mudei a história do hospital em muitos aspectos por causa disso", afirma.

Actualmente, o grupo conta com mais de 270 funcionários: cerca de 50 médicos, 92 enfermeiros, 30 técnicos médicos e paramédicos, sendo o restante pessoal de apoio e administrativo. "Formamos os nossos próprios médicos. Formamos os nossos próprios enfermeiros e o recrutamento é normalmente efectuado dentro dos hospitais", salienta Ma'ali.

O SJEHG trata 145 mil doentes por ano, na sua maioria em regime ambulatório, uma vez que a hospitalização por razões médicas é raramente necessária: quando os doentes pernoitam no hospital, é normalmente devido a dificuldades na viagem de regresso a casa. "Mas graças aos centros e hospitais satélites", sublinha Ma'ali, "muito poucos doentes precisam hoje de viajar de Gaza para vir para o hospital de Jerusalém e de passar por todos checkpoints ao longo do caminho. Eu diria que 50% dos doentes que vemos em Jerusalém são israelitas, israelitas árabes, israelitas palestinianos de Jerusalém, e os outros 50% são da Cisjordânia". 

Cataratas, diabetes, doenças oculares hereditárias

Um estudo epidemiológico efectuado pelo SJEHG mostrou que a taxa de cegueira na Palestina é dez vezes superior à do Ocidente. Este facto deve-se a problemas de mobilidade, desemprego e taxas de pobreza, bem como a elevados níveis de doenças oculares genéticas.

Tal como em muitas outras partes carentes do mundo, a principal causa de cegueira evitável na Palestina são as cataratas, de acordo com dados do SJEHG de 2018. E, de facto, das 6.900 operações cirúrgicas realizadas todos os anos, 3.000 são para remover cataratas. 

A segunda causa principal de cegueira é a retinopatia diabética, que se tornou a principal causa de cegueira evitável no grupo etário activo. Isto deve-se ao facto de a diabetes ser muito prevalente na região.

A diabetes não diagnosticada é um problema relativamente exclusivo da Palestina, e talvez de todo o Médio Oriente. "Por vezes, as pessoas vêm ao hospital, examinamos o fundo dos seus olhos e perguntamos-lhes: Tem diabetes? E elas dizem que não. Mas nós conseguimos ver as alterações que já estão a acontecer na retina, o que significa que, sem o saberem, essas pessoas têm diabetes há pelo menos cinco anos." 

Segundo Ma'ali, esta situação resulta da falta de compreensão por parte da população, da falta de rastreio e de uma infraestrutura de saúde pública primária, e ainda da quase inexistência de sensibilização para a saúde. "Tratamos as sequelas porque ninguém está a tratar a diabetes. Lidamos com retinopatias diabéticas muitos agressivas, fazendo diariamente cirurgias à retina. E infelizmente, alguns dos casos chegam-nos demasiado tarde para os podermos ajudar". 

Mas o que é ainda mais singular nesta parte do mundo são as doenças oculares devidas à consanguinidade. Quarenta por cento dos casamentos ocorrem dentro da família, o que faz com que a probabilidade de as crianças nascerem com cataratas ou glaucoma congénitos seja maior do que em qualquer outra parte do mundo. As doenças oculares hereditárias, como a retinite pigmentosa e outras, também são muito frequentes.

Perante esta situação, o SJEHG também fornece educação para a saúde à população, reconhecendo que uma das causas ou factores que predispõem para essas doenças oculares é, no fundo, a falta de compreensão e de conhecimento na população. "Precisamos de educar as pessoas ao mesmo tempo que lhes prestamos cuidados primários e secundários", salienta Ma'ali.

Os Priorados de St John.

De onde vem o financiamento para este ambicioso projeto humanitário?

"O nosso orçamento operacional é de 15 a 16 milhões de dólares", responde David Mahat, que lida directamente com estas questões. Mahat começou a trabalhar no St. John Eye Hospital há cerca de 15 anos. "Eu era suposto ficar durante um certo período, para gerir um projecto financiado pela UE durante um ano, um ano e meio. Mas acabei por trabalhar no St John durante os últimos 15 anos. Encontrei lá a minha paixão".

E acrescenta: "No hospital, não se fala de religião, não se fala de política, fala-se de servir os doentes. Mesmo que as pessoas tenham uma afiliação, ela fica lá fora. Essa é a chave do sucesso. Temos de ser neutros, temos de ser apenas humanos. Quem tiver uma agenda política ou religiosa não conseguirá manter a sua presença nos nossos hospitais porque será rejeitado(a) por todos."

Mahat dá um exemplo que considera inspirador: "Criámos o nosso primeiro laboratório de genética ao serviço do povo palestiniano com um enorme apoio da Hadassah [uma organização médica que também é uma instituição caritativa israelita]. Começámos a encaminhar doentes para eles porque são líderes em genética e noutras disciplinas. Não falámos de política e até os especialistas judeus israelitas da Hadassah ficaram muito entusiasmados por apoiar doentes palestinianos. É assim que as pessoas conseguem unir-se para servir os seres humanos, independentemente de quem são. 

Quanto ao dinheiro do orçamento, diz Mahat, provém de diferentes fontes, sendo o financiamento principal o dos chamados "Priorados de St John", que existem vários países. 

Os Priorados são capítulos da Ordem. O maior está nos EUA e existem outros na Nova Zelândia, Austrália, Canadá e noutros locais. Cada um dos Priorados fornece serviços e equipamento médico nos seus próprios países, mas parte do seu compromisso é para com a causa principal da Ordem de St John – por outras palavras, para o SJEHG. 

O financiamento proveniente dos Priorados corresponde a cerca de 25% do orçamento anual do SJEHG. Outros 25% provêm de receitas relacionadas com os doentes (encaminhamentos de outras instituições, como o Ministério da Saúde palestiniano ou a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina, por exemplo, ou mesmo doentes que pagam parcialmente os serviços). Portanto, no total, o SJEHG tem de gerar cerca de 50% do seu orçamento anual a partir de outras fontes, tais como as doações.

Para o SJEHG, diz Mahat, o Prémio Champalimaud de Visão é "um prémio significativo, em termos monetários", e vai contribuir para expandir ainda mais a presença do grupo nas províncias do norte da Cisjordânia. Mas, conclui, é ainda mais significativo em termos da credibilidade do grupo e da sua projecção internacional.

Por Ana Gerschenfeld, Health & Science Writer da Fundação Champalimaud.
Cerimónia de Entrega do Prémio António Champalimaud de Visão 2023
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