Para que o nosso corpo consiga transformar eficientemente em gordura o excesso de hidratos de carbonos que ingerimos, no processo de “lipogénese”, são precisas duas coisas. Primeiro, os linfócitos de tipo T-gama-delta do sistema imunitário, que estão presentes em grande quantidade no tecido adiposo (vulgo gordura), têm de produzir uma substância “gatilho” da lipogénese, chamada IL-17.
Segundo, tem de haver uma regulação temporal muito fina dessa produção, governada pelos “relógios” moleculares internos daquelas células imunitárias, de forma a fazer coincidir a produção de IL-17 com os períodos de maior abundância de hidratos de carbono a transformar.
Estas são as conclusões de um estudo publicado hoje (30 de Outubro) na revista Nature, por uma equipa internacional na qual se incluem dois cientistas da Fundação Champalimaud.
“O que este trabalho vem demonstrar é que há uma grande parte do nosso metabolismo que é regulado por células do sistema imunitário”, diz Henrique Veiga-Fernandes, Investigador Principal do Laboratório de Imunofisiologia na Fundação Champalimaud – e um dos co-autores seniores do novo estudo.
“Concretamente”, acrescenta o investigador, “mostrámos que há um tipo de linfócitos que produz uma substância chamada IL-17, que permite às células do tecido adiposo, os adipócitos, transformarem em gordura e armazenar o excesso de hidratos de carbono que ingerimos na nossa dieta. De outra maneira, esses excessos causariam desequilíbrios no sangue”, com consequências nefastas para a nossa saúde.
“Trata-se de um mecanismo que, ao longo da evolução, foi essencial para os mamíferos conseguirem fazer reservas de energia em previsão de períodos de escassez de alimentos”, enfatiza Veiga-Fernandes.
Mas todos sabemos que, actualmente, a acumulação de gordura no corpo é um dos maiores problemas de saúde nos países mais desenvolvidos, porque a maior parte da população nunca tem défice de calorias e ingere hidratos de carbono em excesso, armazenando gordura indesejada. Aliás, o processo de lipogénese fica alterado em várias doenças graves da “vida moderna”, tais como o cancro, a síndrome metabólica e a obesidade.
Veiga-Fernandes sugere que os resultados obtidos podem, no futuro, ser utilizados para combater os efeitos prejudiciais do excesso de gordura no tecido adiposo, abrindo caminho para o desenvolvimento de novos fármacos que inibam a lipogénese.
Foi Lydia Lynch, Investigadora Principal na Universidade de Princeton e também co-autora sénior, que convidou os dois investigadores da Fundação Champalimaud – Veiga-Fernandes e Miguel Rendas, este último co-segundo autor do estudo – para esta colaboração. “[Os outros co-autores] exploraram os processos pelos quais os linfocitos gama-delta controlam a lipogénese e nos desvendámos a regulação circadiana dessas mesmas células e da IL17”, resume Veiga-Fernandes.
Mais precisamente, o contributo português para o novo trabalho foi a identificação de como os linfócitos T-gama-delta produzem IL-17 seguindo ritmos biológicos muito precisos. “Estudámos o ritmo circadiano (dia/noite), a ‘alteração da hora’ dos linfócitos T-gama-delta e a consequente desregulação da expressão da IL-17.”
“É como se estas células tivessem um relógio dentro de si que lhes permite produzir IL-17 em momentos muito definidos durante o dia [ou da noite, no caso dos ratinhos, porque são animais noctívagos], de forma que a produção de gordura pelo tecido adiposo corresponda às alturas em que há uma maior disponibilidade de hidratos de carbono” vindo dos alimentos, explica ainda Veiga-Fernandes.
Estes timings são tanto mais importantes quanto a IL-17 é uma substância que promove a inflamação. Ora, se a IL-17 fosse produzida em permanência, poderia dar origem a doenças inflamatórias perniciosas.
Sistema imunitário multi-tasking
A primeira lição a retirar deste trabalho, diz Veiga-Fernandes, é que o sistema imunitário, que normalmente associamos à resposta contra as infecções e ao combate contra o cancro, é também muito importante na regulação de um aspecto fundamental da nossa vida: o nosso metabolismo. “E a segunda, muito importante, é que este processo é regulado de forma muito fina, é uma espécie de relógio suíço”. Cabe aqui dizer que a produção de IL-17 não é induzida pela alimentação, mas que coincide, possivelmente como fruto da evolução, com os períodos em que estamos mais activos.
Esse relógio suíço é susceptível de ficar desacertado? “O que o nosso artigo também demonstra é que um dos factores mais importantes na regulação deste relógio é a exposição à luz – ou, melhor dizendo, o ciclo de luz e escuridão, ou ciclo circadiano”, responde Veiga-Fernandes. Um processo muito provavelmente mediado pelo centro principal de detecção da luz, situado no cérebro.
“Apesar de neste trabalho, não termos analisado em detalhe os factores que alteram a hora destes linfócitos, é muito provável que o relógio do metabolismo seja influenciado por mudanças de fusos horários ou de padrões de sono”, explica o investigador. Isso acontece em pessoas que trabalham por turnos, ou que estão em constante jetlag porque viajam frequentemente por razões profissionais. Também poderá acontecer em pessoas com doenças do foro psiquiátrico ou que têm insónias e comem e dormem fora de horas. “O ritmo biológico, apesar de intrínseco, não é imutável”, diz Veiga-Fernandes. “Adapta o nosso organismo a alterações do ambiente e modo de vida”, acrescenta.
Normalmente, quando mudamos de fuso horário esporadicamente, o relógio do sistema imunitário adapta-se. Mas o facto de estar constantemente a alterá-lo faz com que a produção de IL-17 se torne assíncrona e possa conduzir a doenças cardiovasculares, diabetes, fígado gordo, cancro, etc.
“O que acontece, muito frequentemente, com os estilos de vida modernos, é que não precisamos de ir para as antípodas para avariar o relógio e não conseguir reacertá-lo”, salienta o investigador. “É o nosso comportamento que se encarrega disso.”
“É muito interessante”, conclui Veiga-Fernandes, “que a associação entre os nossos comportamentos, hábitos de risco e alterações do nosso sistema imunitário acabem por ter um impacto tão grande no nosso metabolismo e qualidade de vida. Porque estas alterações influenciam todas as células do nosso corpo, todos os órgãos, todos os tecidos. Enfim, definem em grande parte quem somos.”
Artigo original aqui.
Texto de Ana Gershenfeld, Health & Science Writer da Fundação Champalimaud.