Compreender a depressão resistente a tratamento
A depressão resistente a tratamento (DRT) é uma forma particularmente desafiante de transtorno depressivo major. Como explica Albino Oliveira-Maia, Diretor da Unidade de Neuropsiquiatria da Fundação Champalimaud e coordenador nacional do estudo em Portugal, “a DRT é definida como a persistência de sintomas depressivos apesar da prescrição adequada (dose/duração) de pelo menos dois medicamentos antidepressivos diferentes”. Apesar das repetidas tentativas terapêuticas, os sintomas depressivos destes doentes permanecem.
Historicamente, a DRT sempre representou um desafio significativo. Um estudo do Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH) revelou que, embora um terço dos doentes com depressão tenha encontrado remissão com o tratamento inicial, os tratamentos subsequentes tiveram retornos decrescentes, com apenas 10-15% a atingir a remissão na terceira tentativa de tratamento. Esta dura realidade amplifica a necessidade de estratégias de intervenção mais eficazes.
Escetamina: a procura de tratamento para a DRT
A farmacêutica Janssen desenvolveu um spray nasal (SN) de escetamina, uma formulação que demonstrou eficácia superior em vários ensaios clínicos, comparativamente com placebos. Também obteve aprovações da FDA, nos EUA, e da EMA, na Europa. Mas haveria mesmo a necessidade de outro medicamento, no já sobrelotado mercado de antidepressivos, e de um novo estudo sobre a escetamina-SN?
Como afirma Oliveira-Maia: “Embora existam muitos tratamentos disponíveis para a depressão, há uma escassez de opções de medicamentos adaptados para a DRT. Além disso, para orientar os médicos e os doentes na sua tomada de decisões, e para serem adotadas pelas companhias de seguros de saúde e pelos governos, os fabricantes de medicamentos precisam de demonstrar uma vantagem inequívoca sobre as modalidades de tratamento existentes, sublinhando assim a relevância deste estudo”.
Frente a frente: Escetamina-SN versus Quetiapina-LP
O estudo comparou a escetamina-SN com a quetiapina-LP oral, um antipsicótico atípico originalmente autorizado para o tratamento de doenças como a esquizofrenia, mas cada vez mais utilizado, e com a aprovação de agências reguladoras, como tratamento adjuvante para episódios de depressão de difícil tratamento. Oliveira-Maia avança: “A quetiapina é atualmente um dos poucos medicamentos alternativos complementares, aprovados para doentes com quadro clínico depressivo major e resposta inadequada ao tratamento antidepressivo contínuo”.
Desenhado para replicar as condições do mundo real, o estudo foi aberto, o que significa que tanto os profissionais de saúde quanto os doentes estavam cientes dos medicamentos em uso. Além disso, dados os potenciais efeitos dissociativos agudos associados à utilização da escetamina-SN, uma abordagem cega era impraticável. É importante realçar, no entanto, que as avaliações de eficácia foram realizadas, no local, por avaliadores independentes que desconheciam as distribuições dos grupos de ensaio. O estudo internacional multicêntrico examinou mais de 800 doentes, tendo um número superior a 600 preenchido os rigorosos critérios de elegibilidade para DRT que foram posteriormente incluídos no estudo.
Os participantes do estudo foram divididos em dois grupos: um grupo auto administrou a quetiapina-LP em casa, enquanto o outro recebeu a escetamina-SN em ambiente hospitalar supervisionado. Simultaneamente, ambos os grupos continuaram com o seu mais recente plano de tratamento antidepressivo, com medicamentos antidepressivos convencionais: ou um inibidor seletivo da recaptação de serotonina (ISRS, por exemplo fluoxetina) ou um inibidor seletivo da recaptação de serotonina e norepinefrina (SNRI, por exemplo venlafaxina). “O estudo durou 32 semanas, um período superior ao dos ensaios típicos”, afirma Oliveira-Maia. “Isso permitiu-nos avaliar os resultados do tratamento a curto e longo prazo. Durante todo esse tempo, monitorizámos de perto as respostas dos participantes, os efeitos colaterais e a eficácia geral dos medicamentos”.
Oliveira-Maia desenvolve: “O nosso objetivo era verificar se os doentes que tomavam a escetamina-SN tinham maior probabilidade de alcançar a remissão – correspondendo essencialmente à eliminação dos sintomas – às oito semanas, em comparação com aqueles que tomavam a quetiapina-LP. Entre aqueles que alcançaram esta remissão aos dois meses, procurámos determinar os efeitos da continuação do tratamento na prevenção de uma recaída, em ambos os grupos, até à conclusão do ensaio às 32 semanas.
O que as descobertas revelam
Os resultados? Após as oito semanas, ambos os grupos ultrapassaram a taxa de remissão de 10-15% observada no estudo do NIMH, conforme publicado no New England Journal of Medicine. Notavelmente, 27,1% dos doentes que tomaram a escetamina-SN alcançaram a remissão, em comparação com 17,6% do grupo que tomou a quetiapina XR, com ambos a continuar a sua medicação com antidepressivos convencionais (SSRI ou SNRI). Os dados de longo prazo foram ainda mais reveladores. A proporção de doentes que alcançaram a remissão na semana oito e a mantiveram sem recaída até a semana 32 foi de 21,7% para o grupo da escetamina-SN e de 14,1% para o grupo da quetiapina-LP.
Mais notável para os autores foi o aumento acentuado nas taxas de remissão após o período inicial das oito semanas. Como observou Oliveira-Maia: “Se este ensaio tivesse sido concluído às oito semanas, os resultados seriam bastante interessantes, mas não incríveis. No entanto, os dados às 32 semanas contam uma história diferente”. Nesse momento, quase metade dos doentes que seguiram com o tratamento com a escetamina-SN – incluindo aqueles que não estavam em remissão na semana oito – alcançaram a remissão. Em contraste, apenas um terço daqueles que continuaram com a quetiapina-LP atingiram este estado.
Além da eficácia terapêutica, os parâmetros de segurança foram avaliados criteriosamente. Ambas as opções de tratamento registaram taxas muito baixas de eventos adversos graves, como mortalidade ou ideação suicida. Porém, ao examinar os efeitos colaterais menos graves, o grupo de doentes que administrou a escetamina-SN apresentou uma maior frequência de manifestações quando comparada com o grupo da quetiapina-LP. “Isso era algo já antecipado, dadas as propriedades dissociativas da escetamina”, diz Oliveira-Maia. “Curiosamente, a taxa de doentes que pararam o tratamento devido aos efeitos colaterais foi na verdade menor para a escetamina-SN do que para a quetiapina-LP, o que sugere que, embora, no papel, a escetamina-SN possa ter mais efeitos adversos, aqueles causados pela quetiapina foram menos toleráveis”.
Para onde vamos: implicações clínicas e políticas
As descobertas são promissoras, especialmente para aqueles que lutam contra a DRT. “O verdadeiro desafio agora passa da investigação para a política. O impacto da escetamina-SN só pode ser concretizado se os doentes tiverem acesso imediato à mesma”. Atualmente, em Portugal e muitos outros países, há acesso limitado a tratamentos para a DRT aprovados e baseados em evidências, incluindo a escetamina, a terapia eletroconvulsiva ou a estimulação magnética transcraniana (EMT). “São necessárias pesquisas contínuas e um persistente trabalho de defesa das mesmas para assegurar que os tratamentos chegam aos doentes que deles precisam”.
Olhando para o que se segue, Oliveira-Maia mostra-se otimista. “Os nossos esforços de investigação futuros visam identificar marcadores preditivos para a capacidade de resposta ao tratamento. Além disso, queremos investigar formas de melhorar e manter as taxas de remissão, incluindo o papel potencial da psicoterapia. A EMT também está no topo da nossa lista para exploração futura. Contudo, o progresso científico deve ser acompanhado de medidas políticas pró-ativas e de ações governamentais concretas. Em última análise, o nosso objetivo é construir um cenário de cuidados de saúde onde os doentes não sejam relegados a tratamentos de qualidade inferior, e não baseados em evidências, devido à falta de acesso a opções mais eficazes”.
Artigo original
Texto de Hedi Young, Editor & Science Writer da Equipa de Comunicação, Eventos & Outreach da Fundação Champalimaud.
Traduzido por Teresa Fernandes, Co-coordenadora da Equipa de Comunicação, Eventos e Outreach da Fundação Champalimaud.