21 Junho 2023

Um grande problema da detecção do cancro da próstata é que se baseia puramente na percepção visual dos radiologistas

Na Fundação Champalimaud, estão a ser desenvolvidos modelos de inteligência artificial (IA) que deverão um dia ser capazes de detectar precocemente o cancro da próstata, em imagens de ressonância magnética (RM), sem estarem sujeitos à variabilidade da percepção visual humana. O que poderá representar uma ajuda inestimável para os radiologistas e urologistas, não só no caso deste cancro comum, mas também de outros.

Dr Nickolas Papanikolaou

Entrevista com Nikos Papanikolaou, investigador principal do Grupo de Imagiologia Clínica Computacional.

Em 2020, segundo dados oficiais, o cancro da próstata foi o segundo cancro mais frequente nos homens a nível mundial e o quinto em termos de mortalidade. Mas o diagnóstico do cancro da próstata baseia-se em medidas inespecíficas, como os níveis de PSA (antigénio específico da próstata) e o exame do toque rectal, seguido de uma biópsia, em que a avaliação da agressividade da doença se baseia numa pontuação qualitativa e altamente subjectiva (utilizando o PIRADS - Prostate Imaging-Reporting and Data System), que pode variar consoante o radiologista que realiza a avaliação. A medição da PSA e o exame rectal podem conduzir a um sobrediagnóstico e a um tratamento excessivo. 

Em termos de tratamento, as consequências podem ser, quer não tratar atempadamente os doentes que merecem ser tratados (doença agressiva) quer tratar desnecessarimente aqueles que não vão morrer de cancro da próstata (influenciando negativamente a sua qualidade de vida).

Com isso em mente, Nikos Papanikolaou e a sua equipa, no Grupo de Imagiologia Clínica Computacional da Fundação Champalimaud, estão a desenvolver algoritmos de inteligência artificial (IA) que esperam ser capazes de detectar o cancro da próstata, de avaliar as suas características biológicas e de prever os resultados das escolhas terapêuticas nos doentes, com base em imagens de ressonância magnética (RM).
 
A equipa, que é também um dos principais parceiros do consórcio ProCancer-I, financiado pela UE, que visa desenvolver este tipo de algoritmos para o cancro da próstata, publicou, em 2023, dois artigos sobre IA aplicada ao cancro da próstata, respectivamente nas revistas Cancers e Scientific Reports (para mais informações, ver https://www.mdpi.com/2072-6694/15/5/1467 e https://www.nature.com/articles/s41598-023-33339-0#Abs1). Na presente entrevista, Papanikolaou explica a investigação envolvida.

Fale-nos do seu trabalho.

Sou o director científico de um projecto europeu chamado ProCancer-I, que se centra em dois objectivos distintos. O primeiro é recolher dados para produzir o maior repositório clínicos e de imagens médicas de ressonância magnética provenientes de doentes que sofrem de cancro da próstata.  

Estamos a recolher imagens de exames de RM multiparamétricos de doentes com cancro da próstata, bem como diversas variáveis clínicas associadas: biópsias, análises ao sangue incluindo níveis de PSA, etc. Este é, portanto, o primeiro objectivo: criar e disponibilizar um repositório altamente organizado e fiável que contenha este tipo de dados relativos a doentes com cancro da próstata. A dimensão prevista do repositório é de cerca de 17.000 doentes. Até à data, já recolhemos quase 80% desses dados. 

E o segundo objectivo?

O segundo objectivo, que é aquilo em cuja coordenação estou mais envolvido, é utilizar esses dados para tentar responder a problemas clínicos não resolvidos em todo o espectro do cancro da próstata. Estes problemas são, entre outros, a detecção do cancro da próstata e a sua caracterização, o risco de recorrência local e à distância, a estratificação dos doentes elegíveis para diferentes tipos de tratamentos, os efeitos adversos após a radioterapia e a prostatectomia radical, e a previsão da qualidade de vida.

Neste momento, estamos a treinar a primeira “vaga” de modelos de IA para aproveitar os dados que recolhemos, a fim de ajudar os médicos, sejam eles radiologistas ou urologistas, a tratar e diagnosticar o cancro da próstata da melhor forma possível. Estamos a desenvolver tecnologia de IA para capacitar os seres humanos. Isto enquadra-se na chamada abordagem de IA centrada no utilizador humano, e não na de IA autónoma, em que a ideia seria substituir os seres humanos. 

Como vão proceder para atingir este segundo objectivo?

A abordagem metodológica que concebemos baseia-se em três fases distintas. A primeira fase consiste em desenvolver os chamados modelos mestres (master models). Estes modelos baseiam-se em dados ditos "sujos", o que significa que não “limpamos” os dados antes de os introduzir no modelo. Tentamos assim simular situações do mundo real.

O que tem acontecido até agora é que a maioria dos modelos de IA são treinados com dados de laboratório altamente seleccionados e depois não conseguem enfrentar os desafios dos dados do mundo real. Nós estamos a seguir um caminho alternativo, expondo os modelos à vasta heterogeneidade dos dados do mundo real. E para isso, estamos a recolher dados vindos de 13 parceiros clínicos, incluindo o Centro Clínico Champalimaud, de forma a expor cada modelo à diversidade e à variabilidade necessárias.

Estamos neste momento a finalizar a primeira fase; apresentei recentemente os primeiros resultados sobre os modelos mestres no Congresso Europeu de Radiologia em Viena. Ainda não temos resultados concretos no que diz respeito à validação dos modelos, mas temos resultados relacionados com o objectivo número um, que é o desenvolvimento do repositório de dados, que neste momento inclui cerca de cinco milhões de imagens. Portanto, o primeiro objectivo já foi atingido e agora estamos a trabalhar no segundo. 

Quais serão as outras duas fases? 

A segunda fase da nossa abordagem consistirá em utilizar estes modelos como base para treinar modelos específicos dos diversos fabricantes de máquinas de RM. No mundo da ressonância magnética, temos três fabricantes principais: Philips, Siemens e General Electric. Assim, a nossa intenção é recolher dados específicos de cada um deles e produzir modelos específicos.

Um problema importante que temos enfrentado até agora na IA aplicada aos cuidados de saúde é a falta de generalização dos modelos. Quando um modelo é aplicado a dados recolhidos em condições diferentes, provenientes de uma instituição diferente, o seu desempenho colapsa. O modelo não produz realmente o que se esperava. Uma das razões para isso é o facto de o modelo ter sido treinado com quantidades de dados bastante limitadas e de diversidade limitada.

Em particular, um modelo deste tipo está sujeito a um viés de selecção, como se costuma dizer. Mas agora, pela primeira vez, estamos a expor os modelos a milhares de exames de RM com milhões de imagens. Por conseguinte, estamos a prever – e já temos provas preliminares que o sugerem – que estes modelos serão muito mais reprodutíveis, generalizáveis e, por conseguinte, terão potencial clínico em contextos reais.

Durante a terceira fase, o objectivo será integrar todos estes modelos para obter modelos neutros em termos de fornecedores. Estes modelos finais não deverão ser sensíveis ao fabricante da máquina de RM utilizada para realizar o exame. Toda a concepção do projecto não só está muito centrada na parte da investigação, mas vai também até à implementação prática através da aplicação destes modelos a dados do mundo real. Esta é a única forma de criar valor para os doentes, para os médicos e para os sistemas de saúde.

Depois de concluídas estas três fases, quais serão os próximos passos?

Prevemos que, no próximo ano, por esta altura, tenhamos finalizado o desenvolvimento dos modelos e comecemos a testá-los com doentes prospectivos, em vez de utilizar dados retrospectivos [de doentes para os quais o desfecho já é conhecido]. Até agora, recolhemos cerca de 9000 exames de RM de doentes retrospectivos e estamos agora a começar a recrutar doentes prospectivos para validar os modelos. Isso levará algum tempo, uma vez que teremos de esperar pela evolução e desfecho da doença nesses doentes.

Qual é o estado da arte da IA aplicada ao cancro da próstata?

Um grande problema da detecção do cancro da próstata é que se baseia puramente na percepção visual dos radiologistas. Mas sabemos muito bem que existe variabilidade entre diferentes radiologistas. E, por vezes, se mostrarmos o mesmo exame ou as mesmas imagens de ressonância magnética ao mesmo radiologista, em dois momentos diferentes, também podemos obter diagnósticos diferentes.

Assim, essa falta de reprodutibilidade é a principal força motriz e a razão de ser do nosso empenho em conseguir que a IA ajude os radiologistas, analisando os dados de uma perspectiva muito diferente. A IA analisa os dados ao nível do pixel.

Um aspecto importante que também estamos a abordar é o desenvolvimento de modelos de IA que possam não apenas melhorar o desempenho, mas também dar a oportunidade aos especialistas humanos de compreenderem e explicarem como se desenrola o processo.

Está a referir-se à chamada IA responsável?

Exactamente. Para resolver o problema da chamada "caixa negra" da IA, estamos a desenvolver uma IA "responsável". A IA responsável é uma abordagem metodológica que tem em consideração não só o desempenho e a exactidão do modelo, mas também outros aspectos como a explicabilidade, a robustez, a facilidade de utilização e a fiabilidade.

Todas estas qualidades são importantes e devem estar presentes no modelo de IA em causa. Caso contrário, pode acabar-se por desenvolver o modelo com o melhor desempenho do mundo, mas que ninguém vai utilizar na prática clínica, fazendo com que a sua contribuição em termos de valor clínico seja nula. Por isso, o que estamos realmente a tentar fazer aqui, mesmo desde a fase inicial da concepção dos modelos de IA, é ouvir os utilizadores finais desses modelos, incluindo os próprios doentes. 

Para desenvolver modelos com significado, temos de perguntar às pessoas se o que pretendemos fazer faz sentido. Por exemplo, uma coisa que estamos a planear agora é organizar eventos de divulgação com associações de doentes, como conferências ou reuniões, para os informar e divulgar os resultados do projecto.

Estou também a organizar a próxima reunião do consórcio ProCAncer-I na Fundação Champalimaud, convidando mais de 50 investigadores das 20 instituições participantes. A reunião do consórcio terá lugar na última semana de Junho de 2023, imediatamente antes do grande congresso internacional de IA que estamos a co-organizar com a International Cancer Imaging Society [Artificial Intelligence & Machine Learning in Cancer Imaging 3.0 - Enhancing Healthcare through AI - para mais informações, ver https://fchampalimaud.org/events/ai-and-machine-learning-cancer-imaging…;

A sua equipa da Fundação Champalimaud publicou recentemente dois trabalhos de investigação. Pode explicá-los brevemente?

O primeiro trabalho é sobre a detecção automática da localização da próstata numa imagem. Para isso, precisamos de desenvolver IA capaz de "segmentar" automaticamente a próstata – ou seja, de traçar os limites exactos da glândula prostática ou da lesão a partir de várias imagens ou cortes. Trata-se de uma tarefa muito morosa e fastidiosa para o radiologista quando é feita de forma puramente manual – razão pela qual, embora o volume total da próstata seja um biomarcador muito importante, quase nunca é calculado. 

É por isso que um dos modelos que estamos a desenvolver é um modelo de segmentação automática. Deixamos a IA fazer o trabalho pesado, por assim dizer, sendo que o resultado final é sempre validado por um radiologista.

O segundo artigo tratava da utilização destas técnicas de segmentação automática para calcular aquilo a que chamamos características radiómicas. Digamos que extraímos de uma imagem várias centenas ou milhares de características individuais, e são essas características que os algoritmos de IA irão analisar para as traduzir num modelo.

Temos vindo a calcular estas características radiómicas para tentar responder a uma questão muito importante: quando um doente tem uma lesão da próstata detectada, essa lesão enquadra-se na categoria de doença agressiva ou na categoria de doença não agressiva? Isto faz uma enorme diferença, porque a abordagem do tratamento pode ser muito, muito diferente na doença agressiva.

Quando o cancro é agressivo, o doente precisa de uma intervenção imediata. Com base nas preferências do doente e características do tumor, pode ser uma prostatectomia radical – a remoção de toda a glândula - ou um tratamento com radioterapia. Mas quando a lesão não é agressiva, basta colocar o doente em seguimento muito apertado e rigoroso, com múltiplas medições do PSA e exames de ressonância magnética. E só intervir se e quando o comportamento biológico do cancro se altera e este se torna agressivo. Uma vez que a disfunção sexual e a incontinência urinária são dois efeitos secundários muito comuns dos tratamentos, temos de ter muito cuidado em não tratar nem diagnosticar indevidamente os doentes. 

E a vossa meta é que a IA faça esta distinção com exactidão

Este é um dos principais objectivos clínicos que esperamos alcançar com a ajuda da IA: sermos mais precisos na distinção entre os doentes que precisam de tratamento agressivo e os que não precisam. 

Até aqui, analisámos um conjunto de dados bastante pequeno porque, como já referi, a recolha de dados – e sobretudo, a validação dos modelos de IA – ainda estão em curso. Mas, embora os resultados que publicámos sejam apenas preliminares, a capacidade de diferenciar entre doença agressiva e doença não agressiva, com base na metodologia que o nosso laboratório desenvolveu, é muito promissora. 

Agora, precisamos de confirmar estes resultados iniciais muito positivos com grupos maiores de doentes prospectivos. Isso acontecerá nos próximos dois anos. A última parte do projecto será dedicada à validação prospectiva dos modelos – e só então poderemos dizer até que ponto eles podem ser transpostos para a prática clínica. 

O enorme conjunto de dados que estamos a recolher – não há outro que se lhe compare – dar-nos-á a oportunidade de treinar modelos de IA que possam ser transpostos para a clínica com grandes expectativas. Embora o projecto Procancer-I termine em 2025, estamos agora a começar a participar num novo projecto: o projecto EUCAIM [EUropean Federation for CAncer IMages], lançado no início de 2023. 

O EUCAIM, que inclui a Fundação Champalimaud e mais 74 parceiros na Europa, é a pedra angular da Iniciativa Europeia de Imagiologia do Cancro e visa desenvolver um repositório federado de imagens oncológicas. Este enorme consórcio se desenvolverá ligando repositórios de diversas instituições e hospitais a uma enorme infra-estrutura, constituindo a plataforma para o futuro desenvolvimento da IA a nível europeu. O nosso repositório, o repositório ProCancer-I, fará parte do repositório do EUCAIM.

Estão a desenvolver ferramentas de IA para o cancro da próstata. Elas serão generalizáveis a outros tipos de cancro? 

De momento, estamos a concentrar-nos no cancro da próstata, mas o nosso grupo na Fundação Champalimaud também está a trabalhar noutras áreas. Acabamos de finalizar uma importante proposta de projecto sobre o cancro do pâncreas, com uma abordagem ligeiramente diferente, que vamos apresentar em breve.
 

Entrevista por Ana Gerschenfeld, Health & Science Writer da Fundação Champalimaud.

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