“Estou exatamente como há 10 anos”, diz Kina García, uma espanhola da região de Granada, enquanto se dirige por Zoom, a partir de sua casa, à audiência da Conferência Internacional sobre Doenças Neurodegenerativas, reunida numa manhã de sábado no auditório da Fundação Champalimaud, em Lisboa. A data é apropriada: estamos a 21 de setembro, o Dia Mundial da Doença de Alzheimer.
Kina García está a referir-se ao seu estado cognitivo: há dez anos, aos 59 anos, foi-lhe diagnosticada a doença de Alzheimer. Foi então inscrita num ensaio clínico com aducanumab, um anticorpo monoclonal que tem como alvo os depósitos da proteína beta-amilóide no cérebro, que aparecem no início da doença, antes dos sintomas iniciais de declínio cognitivo.
“Tive sorte”, diz García. Foi-lhe administrada a dose máxima do medicamento desde o início (o que ela não sabia na altura, uma vez que o ensaio era randomisado e cego), e o medicamento teve nela um efeito significativo, ao contrário do que acontece em muitos outros casos. “Foi eficaz para mim”, afirma.
De um modo geral, os resultados obtidos com esta e outras imunoterapias disponíveis contra a DA, outrora consideradas muito promissoras, têm sido decepcionantes. Assim, durante os dois dias que antecederam a participação de García, especialistas de renome em neurociências debateram intensamente os últimos avanços na detecção precoce e no tratamento das doenças neurodegenerativas – principalmente da doença de Alzheimer, mas também da doença de Parkinson (DP).
A conferência foi organizada pela Fundação Champalimaud, pela Fundación CIEN (Centro de Investigación de Doenças Neurológicas), sediada em Madrid, e pela Fundación Rainha Sofía – e contou com a presença da rainha Sofia, mãe do rei de Espanha e presidente executiva da Fundação que tem o seu nome.
Os participantes internacionais na conferência apresentaram novas e mais recentes visões da doença de Alzheimer, bem como ferramentas alternativas, não farmacológicas, para diagnosticar e combater esta doença, que rouba às suas vítimas tudo o que as tornava elas próprias. Em fases mais avançadas, os doentes deixam de reconhecer os seus entes queridos e tornam-se extremamente dependentes.
Apesar de a conferência ter como tema as doenças neurodegenerativas em geral, a doença de Alzheimer esteve naturalmente no centro dos debates, não só por ser a forma mais comum de doença neurodegenerativa causadora de demência nas populações mais idosas (cerca de 50% dos casos em Portugal), mas também por ser actualmente a mais estudada e conhecida deste tipo de patologias.
“Estes são tempos muito entusiasmantes”, afirmou Pascual Sánchez-Juan, do CIEN, na sua intervenção. “Agora sabemos mais sobre os mecanismos da doença e sabemos que a sua progressão não é um processo linear. E temos de ser mais pragmáticos.”
Uma das razões que explicam as dificuldades no tratamento da doença de Alzheimer, invocada por muitos oradores, é a elevada taxa de co-patologias que a acompanham. “Apenas uma minoria dos casos é de DA pura”, afirmou Sandra Tomé, da Universidade Católica de Lovaina. De facto, várias patologias cerebrais estão frequentemente presentes em conjunto na demência relacionada com a DA.
As caraterísticas mais conhecidas da DA são a formação de placas e de emaranhados neurofibrilares (cujos ingredientes principais são, respectivamente, as proteínas beta-amilóide e tau). Mas também pode haver degeneração vascular e, em 50% dos casos, depósitos que contêm uma proteína chamada TDP-43, identificada mais recentemente. que se pensa mediar a neurodegeneração. “O declínio cognitivo e a perda de massa cerebral mais graves ocorrem quando existe patologia associada à TDP-43”, afirmou Tomé.
Gabor Kovacs, da Universidade de Toronto, um dos principais investigadores nesta área, “olhou para além do cérebro”, para factores não cerebrais como a dieta, a poluição e as doenças do fígado, concluindo que “os doentes com sintomas semelhantes podem ter combinações muito diferentes de patologias cerebrais”.
Diego Sepúlveda, da Universidade de Hamburgo, salientou que esta diversidade estava presente até num grande estudo sobre a doença de Alzheimer familiar precoce na Colômbia, apesar de todos os membros da família serem portadores da mesma mutação causadora da doença e terem tido uma vida semelhante. Os doentes apresentavam uma “heterogeneidade surpreendente”, não havendo dois doentes com a mesma idade de início, de duração da doença, etc..
Este facto contribui para explicar porque é que ainda não existe um tratamento único que funcione contra a doença de Alzheimer, nem um biomarcador circulante (no líquido cefalorraquidiano ou no sangue) que permita diagnosticar o estado da doença e a progressão para a demência. “Seria como pedir um comprimido para se tornar um bom jogador de ténis”, observou um dos participantes. “A doença de Alzheimer é uma doença multifactorial do cérebro”. Perceber que cada caso de DA é um caso por si só pode ajudar a lidar com a DA.
Trata-se, para mais, de uma doença intrinsecamente ligada ao envelhecimento. Será possível travar o envelhecimento? Alguns especialistas acreditam que sim, outros discordam. Seja o que for que o futuro nos reserva, um comprimido contra o envelhecimento não chegará tão cedo e, entretanto, há que encontrar alternativas menos universais e mais personalizadas.
Para além das terapias anti-beta-amilóide – que, apesar de removerem drasticamente esta proteína do cérebro, tiveram resultados muito modestos nos sintomas clínicos de declínio cognitivo, as terapias de supressão da proteína tau começaram também a ser objeto de investigação. Nomeadamente, as terapias genéticas “para reduzir os níveis de tau desde a sua criação”, como explicou Catherine Mummery, do University College London. A patologia associada à protéina tau é a que melhor se correlaciona com o declínio cognitivo e o aparecimento clínico da doença de Alzheimer – e pensa-se que esta proteína influi sobre a toxicidade da beta-amilóide.
A activação da microglia (as células imunitárias primárias do sistema nervoso central) pela presença de placas de beta-amilóide também está a ser estudada, bem como o papel da inflamação de baixo grau no cérebro. Estes fenómenos também poderiam tornar-se alvos para combater a demência relacionada com a DA.
Dado que a doença de Alzheimer é uma doença do envelhecimento, o que é que sabemos sobre a idade biológica dos doentes? Nos últimos anos, tornou-se mais claro que a idade biológica pode ser diferente da idade cronológica, estando associada, em particular, a hábitos de vida e a factores ambientais (https://fchampalimaud.org/news/check-up-26-why-are-younger-people-incre…).
“A idade biológica é variável e pode ser modificada e também medida” graças aos chamados relógios biológicos, baseados em conjuntos de proteínas, explicou Alfredo Ramírez, da Universidade de Colónia. Poderá haver um desvio em relação à idade cronológica nos doentes com DA? Por outras palavras, poderão estes doentes estar a envelhecer mais depressa? E poderá haver formas de abrandar o processo?
A palestra de Henne Holstege, do Centro Médico da Universidade de Amesterdão, foi, de certa forma, uma especulação sobre estas questões. Apresentou resultados de um estudo sobre os cérebros de cerca de 500 centenários cognitivamente saudáveis e sem demência, que doaram os seus cérebros para esse estudo. E quando olhou para os cérebros… “pareciam ser de pessoas com 80 anos!”, exclamou. Não apresentavam placas de beta-amilóide, nem degenerescência vascular... “Como é que isto é possível?, perguntou. “Estarão os centenários geneticamente protegidos contra a doença de Alzheimer?”
De uma forma mais geral, podemos perguntar-nos se seremos capazes um dia de “enganar” o envelhecimento, como parece acontecer com estes centenários. Tal coisa não é inédita na Natureza: animais como o axolotl, uma salamandra mexicana, são excepcionalmente longevos sem nunca apresentar os sinais típicos do envelhecimento biológico.
Vários oradores abordaram também o tema das intervenções não farmacológicas para o tratamento da DA, tais como a estimulação cerebral, nomeadamente a estimulação magnética transcraniana, ou TMS, que se tornou mais conhecida, nos últimos anos, como tratamento da depressão resistente aos medicamentos.
Outras intervenções deste tipo, principalmente para a doença de Parkinson, foram também discutidas. “As intervenções não farmacológicas vão aumentar porque são holísticas – o exercício, por exemplo”, afirmou John Krakauer, da Fundação Champalimaud, que presidiu à sessão sobre “terapias digitais”.
“As intervenções têm de ser 'sujas', complexas, as medições têm de ser holísticas”, acrescentou este investigador, “e temos de as combinar com intervenções farmacológicas mais direccionadas".
Daniela Pimenta Silva, da Universidade de Lisboa, falou sobre os benefícios do treino dos doentes com DP em passadeiras com realidade virtual, de forma a reduzir o risco de quedas nas pessoas em risco. Referiu ainda um ensaio que envolve um jogo imersivo, o MindPod Dolphin – em que os doentes têm de controlar os movimentos de um golfinho na água com os seus próprios movimentos corporais – como uma possível intervenção para melhorar o controlo motor destes doentes.
Relativamente à avaliação do efeito da medicação para a DP, Dina Katabi, que falou online por Zoom a partir do seu laboratório no MIT, propôs uma abordagem que envolve a marcha. “O declínio da marcha é um biomarcador robusto da progressão da doença”, explicou. Assim, seria possível, através de um dispositivo com inteligência artificial (IA), acompanhar à distância a resposta dos doentes à medicação através da alteração da velocidade da marcha.
Por outro lado, a respiração nocturna poderia servir para detectar a DP e prever a sua gravidade, acrescentou. O sono REM, a parte do ciclo do sono durante a qual sonhamos, poderia também ser utilizado como um biomarcador digital para a DP. A este propósito Katabi fez uma pergunta de um milhão de dólares: será que um dia a IA nos permitirá detetar a DP antes do seu diagnóstico clínico?
Para encerrar a conferência – no Dia Mundial da Doença de Alzheimer – a palavra foi dada não só a Kina García, que vive com a doença de Alzheimer, mas também a associações de doentes de Alzheimer e Parkinson de Portugal, Espanha e Europa, juntamente com neurologistas, geneticistas e outros investigadores, para discutir os principais desafios e dificuldades que enfrentam.
Maria do Rosário Zincke, da Alzheimer's Europe e da Associação Alzheimer Portugal, sublinhou a importância de os doentes estarem mais envolvidos nos projectos de investigação, em todas as suas fases. Os doentes podem “colocar questões que poderão não ter sido consideradas pelos investigadores”, afirmou.
A importância dos biobancos do cérebro para fins de investigação foi também enfatizada – e Marcelo Mendonça, da Fundação Champalimaud. Um dos organizadores da conferência e presidente da sessão, apelou às ideias sobre como envolver os doentes na investigação básica em modelos animais.
Isabel Santana, da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, tinha uma resposta pronta: “No cancro, funciona muito bem. É um óptimo exemplo; devíamos segui-lo.”
Texto de Ana Gerschenfeld, Health & Science Writer da Fundação Champalimaud.