26 Maio 2022

Evento Ar - Evolving emotions: getting a feel for the world

No passado sábado, dia 21 de Maio, os Eventos Ar regressaram ao Auditório da Fundação Champalimaud depois de um hiato de mais de dois anos devido à pandemia de COVID-19. Sob o título “Evolving emotions: getting a feel for the world”, o evento foi uma celebração das mulheres na ciência – que, durante a maior parte da nossa História, foram consideradas inaptas a desempenhar o papel de cientistas por não saberem controlar as suas emoções – emoções essas que, até recentemente, tinham sido consideradas, de Platão a Descartes e mais além, como um empecilho ao pensamento racional.

Evento Ar: Um mar de emoções

Hoje em dia, a visão do papel que as emoções desempenham nas nossas vidas mudou radicalmente, e a importância das emoções nos animais foi finalmente reconhecida. Charles Darwin já tinha intuído isso quando, há 150 anos, escreveu que as emoções são “um meio universal de comunicação” em todo o reino animal. No que a nós, humanos, diz respeito, sabemos agora que as emoções regulam literalmente todos os aspectos das nossas vidas, incluindo coisas tão especificamente humanas como a racionalidade e a moral.

Esta mudança de paradigma tornou, em particular, obsoleta, a ideia (que predominou durante séculos) de que a “excessiva” emocionalidade das mulheres constitui um obstáculo à sua capacidade de ter uma carreira científica de sucesso. Com isso em mente, os organizadores do primeiro evento Ar a ter lugar presencialmente na Fundação Champalimaud após mais de dois anos, sob o título “Evolving emotions: getting a feel for the world”, decidiram dedicar o evento às mulheres na ciência.

O evento decorreu no passado sábado, dia 21 de Maio, como parte integrante do Emotions Brain Forum, uma série de conferências que celebra as mulheres na ciência. O Emotions Brain Forum é por sua vez uma iniciativa da BrainCircle Italia, ONG sem fins lucrativos fundada em 2010 pela jornalista Viviana Kazam e a célebre neurocientista e prémio Nobel italiana Rita Levi-Montalcini (1909-2012), defensora incansável das mulheres na ciência.

Foi neste âmbito que foram selecionadas as oradoras convidadas para falar no evento, apresentado pela neurocientista Cecilia Mezzera, que até recentemente trabalhou na Fundação Champalimaud. Como enfatizou Leonor Beleza, Presidente da Fundação Champalimaud, no seu discurso de abertura, “todas as oradoras convidadas são mulheres cientistas”. Mulheres que deram importantes contribuições na compreensão das interacções das emoções com fenómenos tão diversos como a autopreservação, a memória, a empatia e a linguagem.

Para apresentar o tema, Adrian Razvan Sandru, pós-doutorado da Fundação Champalimaud, falou em como, historicamente, a visão das emoções enquanto obstáculo à racionalidade dificultou, durante séculos, o papel das mulheres na ciência.  

Medo

A primeira oradora convidada foi Marta Moita, investigadora principal do laboratório de Neurociência do Comportamento da Fundação Champalimaud. Moita estuda a mais fundamental das emoções, comum a todas as espécies animais e que lhes permite sobreviver aos seus predadores: o medo. “O medo é uma emoção fundamental, presente em todo o reino animal, e desempenha um papel importante para enfrentar ameaças”, disse Moita.

A cientista falou dos três tipos de respostas à ameaça – paralisar, fugir ou lutar – e em como o facto de paralisar (freezing), que parece ser uma resposta muito passiva, é na realidade muito activa. (Para o demonstrar, pediu ao público para ficar de pé durante algum tempo, totalmente imóveis, em posturas desconfortáveis). Basta também imaginarmo-nos, agachados e sem mexermos um cabelo, a cara virada para o chão, face a um gorila que vem a correr na nossa direcção, gritando e batendo no peito com os punhos, para perceber o quão activa tem de ser a supressão voluntária de movimento para conseguirmos ultrapassar esta prova – e provavelmente salvarmos a vida. Paralisar desta maneira é o comportamento recomendado na presença destes animais: o gorila pára antes de colidir connosco e desinteressa-se totalmente de nós. 

Moita não estuda seres humanos; trabalha com moscas-da-fruta, um dos melhores modelos animais para estudar o comportamento. “Nem toda a gente sabe”, disse, “mas as moscas também têm um coração. E tal como o nosso, o delas acelera sob o efeito do medo quando enfrentam uma ameaça.”

Testemunha ocular

Elizabeth Phelps, da Universidade de Harvard, que estuda a forma como as emoções influenciam a nossa vida, e em particular alteram as nossas memórias, foi a segunda convidada.

“Inicialmente”, explicou, “os cientistas pensavam que as memórias do eventos emocionais – tal como presenciar o assassinato de John F. Kennedy em 1963 ou um terrível acidente de viação – eram como instantâneos fotográficos, ‘memórias-flash’ [em inglês ‘flash-bulb’ memories]. Memórias vívidas, detalhadas e portanto verídicas que não perdiam nitidez nem se alteravam com o tempo. Isso fazia com que todos considerassem os relatos de testemunhas oculares suficientemente fiáveis para serem aceites acriticamente pelos tribunais. Mas a partir do fim dos anos 1970, a investigação científica mostrou que mesmo a mais emocional das memórias pode evoluir com o tempo.

Porque, então, temos a impressão de que nos lembramos de tais eventos como se tivessem sido fixados para sempre na nossa mente? Precisamente porque essas memórias são tão vívidas, tão detalhadas devido ao… seu conteúdo emocional. “A emoção cativa a nossa atenção e a nossa percepção, fazendo-nos ver melhor certos pormenores [dos eventos emocionais]”, disse Phelps. E esses são os pormenores que o nosso cérebro armazena na memória. Ora, sendo tão vívidos, como poderiam não ser totalmente verídicos, como um fotografia instantânea, para sempre fixada na película?

Na realidade, disse Phelps, sabemos hoje que a única diferença entre as nossas memórias do eventos comuns do dia-a-dia e as dos eventos extremamente emocionais é que, no segundo caso, “as pessoas estão totalmente convencidas do carácter rigoroso das suas memórias”. Mas isso não significa que as memórias sejam efectivamente rigorosas. “A memória não é coisa para os tribunais – mas eu não sou advogada”, concluiu Phelps com ironia. 

Empatia

Seguiu-se no palco Valeria Gazzola, do Instituto de Neurociências dos Países Baixos, que abordou a questão das emoções e a empatia. Começou por mostrar ao público uma foto de um rapazinho a chorar desesperadamente e disse: “Se vos pedir para me dizerem algo acerca desta foto, antes de descreverem o desespero que lá vêem, vão sentir esse desespero.” Chama-se a isso empatia e ocorre devido à forma como os nossos cérebros estão construídos: partes do cérebro que se activam quando nós próprios sentimos desespero coincidem com as que se activam quando vemos o desespero nos outros.  

Tal como as emoções não são exclusivas da espécie humana, a empatia também não é. “O ratos têm empatia: sentem medo quando outro rato dá sinais de ter medo, porque isso diz-lhes que também poderão estar em perigo”, acrescentou. Este “contágio do medo” não é nada menos que um comportamento de empatia.

Mas a empatia nem sempre é puramente egoísta. “A partilha de emoções poderá ter evoluído por razões egoístas”, salientou Gazzola, “mas também pode levar-nos a ajudar os outros.” 

Terminou a sua intervenção com uma pergunta que muitos de nós já se terão colocado a si próprios, face às inúmeras séries de TV sobre assassinos em série: podem os psicopatas sentir empatia, nomeadamente face à dor de outrem? Experiências mostram, disse Gazzola, que se pedirmos a um psicopata para sentir empatia por alguém em sofrimento, ele sentirá empatia. Portanto, a resposta à pergunta parece ser que estes indivíduos não são incapazes de empatizar, mas antes que lhes falta a motivação para o fazer. Conclusão: “Todos conseguimos regular a nossa empatia”.

Estranho símio 

A última apresentação do programa esteve a cargo da israelita Eva Jablonka, especialista da Teoria da Evolução e geneticista reformada, que falou da interacçao entre as emoções e a linguagem, ao longo da evolução humana. Para Jablonka, “a linguagem é uma tecnologia de comunicação destinada a instruir a imaginação”. E o que é a imaginação senão criatividade, que por sua vez está cheia de emoções? Ao mesmo tempo, somos muito bons a inibir as nossas emoções e a ter segredos – uma capacidade unicamente humana. 

A linguagem, prosseguiu, deu-nos a capacidade de descrever o mundo objectivo, de duvidar e mentir, o sentimento de livre arbítrio, a sede de conhecimento, o pensamento religioso, a capacidade de dançar juntos, de fazer música juntos. A linguagem pode também dar origem a novas emoções.

“Mas a linguagem também nos faz perder coisas”, acrescentou Jablonka. E a título de exemplo, falou do chamado “verbal overshadowing”, um fenómeno que faz com que, quando descrevemos verbalmente um input sensorial (por exemplo, visual), isso prejudica a formação de memórias desse input (por exemplo, de um rosto). “O verbal overshadowing reduz a memória”, disse a cientista. A linguagem apaga, literalmente, a cena visual.

“Somos um símio muito estranho”, frisou. “Somos uma espécie com auto-controlo, não uma espécie auto-domesticada; somos mais como lobos do que cães.”

A arte, mestre das emoções

Uma forma privilegiada de expressar emoções é obviamente a arte – e por isso, a arte não podia estar ausente deste encontro. Para além das apresentações científicas, também houve música e uma performance teatral de alto nível de virtuosismo. Primeiro, fomos brindados com a voz profunda e suave de Lula Pena, cantora, compositora e poeta, que nos levou numa viagem pelas diversas paisagens emocionais do seu singular estilo musical. A seguir, Sofia Dias and Vítor Roriz, dançarinos e coreógrafos, apresentaram uma peça que, através do uso das palavras, da voz e do movimento, representava a forma caótica como a mente percebe e associa a multiplicidade de coisas que acontecem à nossa volta.

No hall do Auditório, o público foi convidado a interagir – antes, durante e depois do evento – com uma instalação multimédia que evocava as cores e os sons das emoções, criada por Clo Bourgard and Tupac Martir, actualmente artistas em residência na Fundação Champalimaud. O público pôde ainda reservar algum tempo para explorar em maior detalhe as belas ilustrações de Anat Zeligowski, artista e médica a viver no Sul de Itália cujo trabalho também fora apresentado por Eva Jablonka durante a sua apresentação.

Era quase meia-noite quando todos os convidados se juntaram no palco para uma mesa-redonda – moderada por Zach Mainen, investigador principal do laboratório de Neurociências dos Sistemas na Fundação Champalimaud, e por Charlotte Rosher, aluna de doutoramento em Neurociência –, durante a qual os artistas falaram do seu estado emocional durante as suas performances e todos tentaram evocar as emoções que procuraram transmitir ao público com as suas peças. No fim da mesa-redonda, e após uma impressionante maratona de seis horas, o moderador Zach Mainen deu o evento por encerrado.
 

Por Ana Gerschenfeld, Health & Science Writer da Fundação Champalimaud.
Fotografias de Benjamin Zarov, Técnico de Investigação na Champalimaud Research.
Adrian Razvan Sandru
Lula Pena
Clo Bourgard and Tupac Martir
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