28 Janeiro 2021

“Biópsias respiratórias”: o futuro da deteção precoce do cancro do pulmão?

Um projeto pioneiro, em desenvolvimento na Fundação Champalimaud, visa descobrir a melhor combinação de compostos orgânicos voláteis (VOC) para o diagnóstico precoce do cancro do pulmão, transformando a recolha e análise de “biópsias respiratórias” num processo automatizado, fiável e utilizável na clínica.

Colocação e ajuste de equipamento de recolha de ar exalado para realização de biópsia respiratória.

Há anos que estudos sugerem que os cães são mestres em detectar doenças graças ao seu faro hiper-desenvolvido. Os peritos concordam em dizer que esse talento reside provavelmente na capacidade de os cães cheirarem “compostos orgânicos voláteis” (VOC na sigla em inglês) no ar que sai dos nossos pulmões. Nos últimos anos, mais de mil VOC têm sido identificados no hálito humano, e os cientistas estão a tentar determinar quais deles poderão ser relevantes enquanto biomarcadores do cancro. Agora, um projecto pioneiro, a ser desenvolvido na Fundação Champalimaud, em Lisboa, visa não só descobrir a melhor combinação de VOC para o diagnóstico precoce do cancro do pulmão – um “código de barras” dos primeiros estádios da doença, por assim dizer –, mas também retirar os animais da equação, transformando a recolha e análise destas “biópsias respiratórias” num processo automatizado, fiável e utilizável na clínica.

Numa sala do Centro Clínico Champalimaud (CCC), em Lisboa, cheia de equipamentos de avaliação da função respiratória, estou prestes a participar num estudo pioneiro. Pedro Vaz, formado em Química e membro da Unidade do Pulmão do CCC, coloca uma máscara transparente no meu rosto, que me vai fazer respirar ar filtrado durante uns minutos. Dentro da máscara, enquanto respiro normalmente, um conjunto de pequenos tubos metálicos irá recolher amostras do ar que exalo. Essas amostras serão a seguir analisadas para criar um perfil dos principais compostos orgânicos voláteis (VOC, na sigla em inglês) que saem dos meus pulmões, de forma a obter uma “biópsia respiratória” do meu ar exalado.

“Tal como as amostras de sangue, as biópsias respiratórias são apenas uma forma de avaliar o estado do corpo humano – só que neste caso, a amostra é de ar exalado”, explica Pedro Vaz. “O ar exalado é muito mais do que ar, é um ‘fluido corporal’ com um gigantesco número de componentes. Vem dos pulmões e das vias respiratórias e contém, em particular, compostos orgânicos voláteis (VOC) – um precioso manancial de informação biológica, ainda por cima com a enorme vantagem de a sua recolha ser totalmente não-invasiva.” 

Durante a minha breve permanência nesse local, de máscara na cara, Pedro Vaz pergunta-me várias vezes se me sinto confortável a respirar dentro do dispositivo. Respondo na afirmativa. De facto, a falta de ar é essencialmente o único desconforto que algumas pessoas poderão vir a ter ao longo deste exame totalmente não-invasivo. E se tal me acontecesse, Pedro Vaz retirar-me-ia imediatamente a máscara, interrompendo o procedimento.

Dezenas de pessoas estão a submeter-se a esta experiência, da sua livre vontade, no âmbito de um estudo chamado VOX-PULMO, actualmente a decorrer no CCC e liderado por Pedro Vaz. A participação também inclui uma consulta médica inicial (durante a qual é-nos pedido, entre outras coisas, para assinar um formulário de consentimento informado) e um teste PCR à COVID-19 (por questões de segurança e também para garantir que as amostras de ar exalado não contêm VOC do vírus SARS-CoV-2, o que introduziria “ruído” na análise química subsequente). Por último, temos de fazer uma radiografia pulmonar para detectar qualquer anomalia susceptível de nos excluir do estudo. No fim do teste da máscara, respondemos a Pedro Vaz que foi muito fácil, despedimo-nos e saímos da sala.

Cães farejadores

Durante décadas, muitos cães têm sido treinados não apenas a farejar variadas substâncias, mas também a detectar diversas doenças, incluindo o cancro, no hálito das pessoas. O seu faro excepcional é a chave do seu sucesso. Uma prova da relevância dos VOC – e dos animais farejadores: há apenas uns dias, a revista Nature publicou um artigo intitulado “Poderão os cães farejar a COVID? Eis o que a ciência nos diz”. Os peritos prevêem que, se forem treinados nesse sentido, é possível que os cães possam vir a ser utilizados como testes simples, baratos, rápidos e não-invasivos à COVID-19 nos aeroportos e outras instalações sensíveis.

Porém, quando se trata de realizar biópsias respiratórias em ambiente hospitalar oncológico, é óbvio que os animais devem ser retirados da equação. É precisamente esse o objectivo do estudo VOX-PULMO, especificamente concebido para a detecção precoce do cancro do pulmão. Um trabalho inédito que está a desenvolver com a sua equipa, diz Pedro Vaz. “Os nossos esforços focam-se no ponto de vista clínico: queremos obter uma visão de conjunto dos perfis de ar exalado para desenvolvermos uma ferramenta de rastreio destinada à detecção precoce do cancro, e em particular do cancro do pulmão. Embora vários outros grupos estejam a trabalhar no mesmo assunto, ainda se trata dos primórdios. Todavia, com a nossa equipa já enveredámos por esse caminho.”

Pedro Vaz salienta ainda que “os outros grupos no mundo que pesquisam este tema estão mais virados para a procura de conjuntos de VOC que possam ser biomarcadores do cancro, capazes de determinar especificamente se alguém tem cancro ou não. Até aqui, porém, não há consenso e a pesquisa continua. Quanto a nós, tencionamos abordar esta questão ulteriormente”. O ar exalado humano contém mais de mil VOC, o que sugere fortemente que a análise de perfis individuais destes compostos deverá permitir revelar “diferenças entre os doentes com cancro do pulmão e os participantes saudáveis de [um] grupo de controlo”, escreve a equipa no documento de apresentação do estudo VOX-PULMO.

“O nosso estudo inclui dois grupos – controlos saudáveis e doentes – com 100 voluntários cada”, diz Pedro Vaz. “A análise dos metabolitos voláteis recolhidos é feita com técnicas de cromatografia gasosa e de espectrometria de massa (GC-MS [na sigla em inglês]), que nos deverão permitir descobrir os VOC biomarcadores do cancro do pulmão e associar os perfis metabólicos de VOC dos participantes ao seu estado de saúde.”

“Os primeiros resultados deverão estar prontos daqui a uns seis meses. Mas a equipa já obteve alguns resultados promissores. “Estamos actualmente a finalizar a parte relativa ao grupo de controlo e a começar a parte do estudo que envolve doentes com suspeitas ou diagnóstico confirmado de cancro do pulmão”, salienta ainda Pedro Vaz. “Mas já fomos capazes, no grupo de controlo, de distinguir muito claramente [com base no perfil de VOC] as pessoas asmáticas das outras.”

O cancro mais letal do mundo

Desenvolver uma ferramenta de rastreio que permita detectar o cancro do pulmão nas suas fases mais precoces é extremamente importante. Actualmente, o cancro do pulmão é o cancro mais letal a nível mundial. É também o cancro com o maior número de novos casos por ano no mundo (2,1 milhões em 2018, segundo dados oficiais), seja qual for a idade e o sexo. “Se nada for feito, estima-se que os números continuarão a crescer a um ritmo sustendado nos próximos anos”, diz Pedro Vaz. Prevê-se que a sua incidência aumente em 21,3% até 2025, o que corresponderia a cerca de mais 447.000 casos no mundo em 2025 do que em 2018.

Infelizmente, o cancro do pulmão é difícil de detectar nas suas primeiras fases. “A taxa de detecção do cancro do pulmão no estádio I é de apenas 25%, e isso explica bem o elevado número de mortes que se verifica entre os doentes com cancro do pulmão: é que a maior parte dos casos só são detectados em estádios mais avançados, associados a taxas de sobrevivência muito baixas”, explica Pedro Vaz. Mas “as probabilidades de cura poderiam atingir os 70%”, acrescenta, se fosse possível diagnosticar o cancro do pulmão logo no estádio I da doença.

“Portanto, o desenvolvimento de uma ferramenta de rastreio e de um programa que permita testar facilmente as pessoas através de um procedimento não-invasivo baseado no ar exalado terá sem dúvida um impacto maciço no futuro da detecção e do tratamento do cancro – e, subsequentemente, no aumento das taxas de sobrevivência”, faz notar o cientista.

Um dos primeiros estudos que a equipa planeia realizar uma vez finalizado o estudo VOX-PULMO é o seguimento dos voluntários do grupo de controlo durante vários anos (cinco a 10) para identificar os que vierem a desenvolver alguma doença oncológica pulmonar – e tornar a realizar um novo perfil de VOC nestes doentes, à procura de biomarcadores do cancro entretanto identificados. “Se conseguirmos fazer isto”, diz Pedro Vaz, “acho que ficaremos na vanguarda dos esforços de rastreio e que seremos capazes de detectar este cancro tão cedo quanto possível, de forma a que o tratamento possa ser realizado rapidamente, maximizando a sobrevivência.” 

A análise dos perfis de VOC poderá também ser aplicada, no futuro, a outros tipos de cancro. “Existem dados que sugerem que a análise do ar exalado poderá vir a ser igualmente usada para rastrear outros tipos de cancro, incluindo o cancro da mama, os cancros ginecológicos, bem como os cancros pancreático, gástrico e do cólon”, diz Pedro Vaz. Isto deve-se ao facto de que nem todos os VOC terem origem nos próprios pulmões; também se pode tratar de metabolitos voláteis produzidos noutras partes do corpo e transferidos para os pulmões pela circulação sanguínea.

“Já decidimos que quando o estudo em curso dedicado ao cancro do pulmão tiver sido validado, iremos concentrar os nossos esforços num destes cancros”, promete Pedro Vaz. 

Por Ana Gerschenfeld, science writer da Fundação Champalimaud.
Colocação e ajuste de equipamento de recolha de ar exalado para realização de biópsia respiratória. Colocação e ajuste de equipamento de recolha de ar exalado para realização de biópsia respiratória.
Perfil de compostos orgânicos voláteis (VOC na sigla inglesa) de um participante no estudo após análise. Perfil de compostos orgânicos voláteis (VOC na sigla inglesa) de um participante no estudo após análise.
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