09 Dezembro 2021

Daniel McNamee

Uma teoria posta à prova.

Daniel McNamee

De vez em quando, o mundo da Física entra em ebulição com a descoberta de uma nova partícula elementar, muitas vezes décadas após a sua existência ter sido prevista por modelos teóricos. Mas em Neurociência, as grandes descobertas seguem um curso diferente, e surgem normalmente associadas a experiências. Será que também podemos usar abordagens teóricas para realizar previsões, testáveis, ​​acerca da forma como o cérebro funciona? 

Ao longo da sua carreira científica, Daniel McNamee tem oscilado entre a Neurociência Teórica e abordagens assentes em dados. É no entanto sua convicção que, com o laboratório que agora está a criar no Centro Champalimaud, poderá encontrar o equilíbrio certo entre estas duas áreas. Nesta entrevista, o investigador fala sobre os seus planos para desenvolver modelos de Neurociência que façam previsões concretas e testáveis, assim como do caminho sinuoso que percorreu até chegar aqui.

De onde surgiu o interesse pela neurociência teórica?

Eu sou de uma pequena vila no norte de Dublin chamada Malahide. Mas para realizar os estudos superiores - graduação e mestrado - rumei a sul para estudar Física Teórica no Trinity College, em Dublin. A beleza da Matemática atraiu-me muito no início. No entanto, as perguntas pareciam muito abstratas e desconectadas do mundo real, e por isso decidi mudar de área.

Enquanto estava na Trinity, a minha tese de final de curso foi sobre Neurociência e descobri que era um campo muito aberto. Senti que havia muito espaço para interações e para realizar um trabalho interessante. Também percebi que era possível validar teorias empiricamente, o que não acontecia com muitas das questões que encontrei na Física de Altas Energias. 

Depois de me formar, apostei numa abordagem mais empírica ao fazer o meu PhD em Sistemas Neurais e Computacionais no CalTech [Instituto de Tecnologia da Califórnia]. Foi uma experiência fantástica. O Caltech é uma espécie de mosteiro, localizado no sopé das montanhas da Angeles National Forest. Enquanto lá estive, trabalhei em algoritmos de aprendizagem automática aplicados a diferentes tipos de dados neurais, incluindo fMRI e eletrofisiologia. 

O trabalho, na prática, consistia em usar modelos de aprendizagem automática já existentes e tentar ajustá-los aos dados. Esta é uma abordagem cada vez mais comum nesta área, em que algoritmos desenvolvidos dentro de uma estrutura de inteligência artificial, são usados ​​para estudar sistemas naturalmente inteligentes. A ideia base é que os mesmos princípios que dão origem à inteligência das máquinas também podem ser aplicados em animais e humanos. 

No final do meu doutoramento, embora genericamente tenha sido uma ótima experiência, senti que me tinha desviado muito para o lado empírico e que queria regressar à teoria. Também percebi que a abordagem que estávamos a implementar poderia não ser a melhor. Os cientistas desenvolvem algoritmos de aprendizagem automática dentro de um contexto específico. Consequentemente, impõem restrições computacionais que não são necessariamente relevantes na natureza. Frequentemente, esses modelos pecam também por serem rudimentares e não capturarem em absoluto a riqueza da nossa experiência interna.   

Qual foi o resultado dessa constatação?

Decidi que, na minha investigação de pós-doutoramento, trabalharia em teorias baseadas na ideia de que o indivíduo tem um modelo interno do mundo e que usa esse modelo para planear, e não apenas para reagir a tudo o que experiencia. Mas, como não encontrei nada adequado nos modelos de aprendizagem automática já existentes, ingenuamente pensei que eu mesmo poderia contribuir para a construção desses algoritmos. 

No entanto, enfrentámos dois grandes desafios ao tentar criar novos modelos. O primeiro consistiu no desenvolvimento do próprio modelo, o que é muito difícil. Dificuldade a que se juntou um risco extra associado à necessidade de convencer as pessoas da validade e valor do nosso modelo. O que isto implica é que o modelo tem que ser mesmo muito bom. O outro desafio foi desenhar uma boa experiência para testar o nosso modelo e, depois, ajustar as equações em função dos resultados experimentais alcançados. Portanto, é um processo muito mais demorado e complicado do que simplesmente aplicar os modelos existentes aos dados. Dito assim parece um pouco louco. Mas realmente foi um projeto bastante arriscado para um pós-doutorado.

Acabei por desenvolver esse trabalho na Universidade de Cambridge, um lugar muito forte teoricamente e onde existe uma grande presença de cientistas computacionais e de aprendizagem automática. Uma vez que recebi uma Wellcome Fellowship, tinha condições para trabalhar de forma totalmente independente dentro do laboratório de Aprendizagem Biológica Computacional, em colaboração com o Daniel Wolpert e Máté Lengyel.

Utilizou o seu modelo para abordar que questão?

Abordei um problema cognitivo desafiante - o planeamento. Por exemplo, imaginem que um animal saiu para procurar comida e agora está a planear regressar por uma rota longa, atravessando um território perigoso. Qual é o melhor plano de ação? E como é que este deve mudar se o animal for intercetado por um predador ou por uma tempestade repentina? 

O meu objetivo era desenvolver um conjunto de equações que identificassem a melhor, ou “mais otimizada”, solução para este problema. Então questionei-me, de entre todos os algoritmos de planeamento possíveis, qual seria o ideal? Como é que um indivíduo superinteligente planearia? A possibilidade da existência de soluções ótimas parece um conceito estranho no contexto do comportamento humano ou animal, que é inevitavelmente “barulhento” e sujeito a imprecisões. Ainda assim, os modelos ideais ajudam-nos a compreender o comportamento natural porque estabelecem uma referência que permite comparar o desempenho na vida real. Desta forma, podemos avaliar como os animais e as pessoas elaboram estratégias próximas das ideais e identificam que variáveis ​​desempenham um papel crítico.

Mais especificamente, decidi focar-me na otimização do tempo. Isto porque, de entre todas as variáveis ​​que desempenham um papel no planeamento, o tempo é fundamental. Mesmo que fossemos um ser superinteligente, com memória ilimitada e ultra competente na resolução de problemas, ainda assim não seríamos capazes de escapar ao tempo. Agora vamos supor  que não existe este limite de tempo para executar o nosso plano. Nesse caso, ou não haveria qualquer necessidade de planear ou o processo ideal de planeamento tornar-se-ia infinitamente lento. O tempo passou assim a ser a única limitação, e o foco deste trabalho foi precisamente o estudo do planeamento sob condições de restrições de tempo.
 
O modelo propriamente dito visou duas questões específicas. Em primeiro lugar, para um determinado período de tempo, qual é o melhor, ou “o mais perfeito”, plano que posso propor? Em segundo lugar, qual é o menor período de tempo que preciso para alcançar um determinado nível de desempenho? [Sendo que o nível de desempenho é geralmente a diferença entre a recompensa total que, por exemplo, poderia ser comida, e o somatório dos custos, como o esforço ou a distância.]

O risco compensou? O modelo correspondeu às suas expectativas?

Lembro-me de um mentor me dizer que há três coisas em que devemos pensar quando estamos a desenvolver um modelo: primeiro - se é uma novidade; segundo - se é intuitivo, ou seja, se conseguimos explicá-lo facilmente às outras pessoas; e terceiro - se é preditivo.

Acho que o modelo que desenvolvi preenche todos estes requisitos. Em primeiro lugar, é certamente uma novidade. Ninguém ainda havia formulado um modelo de planeamento ideal, no que diz respeito ao tempo. O que na verdade é incrível, uma vez que já existem modelos ideais para muitos outros processos cognitivos. E sendo o planeamento um problema tão abrangente, é surpreendente que, quando comecei, não existisse ainda um modelo ideal para ele. Em segundo lugar, é conceptualmente intuitivo (espero!). E finalmente, é preditivo, uma vez que os padrões nos quais avalia as diferentes ações possíveis são altamente distintos e, portanto, podem ser facilmente separados experimentalmente. 

Pretende dar continuidade a esta linha de investigação na Fundação Champalimaud? Como está a pensar unir o aspeto teórico do trabalho que desenvolve com uma abordagem mais baseada em dados? 

A nível teórico, este modelo deu um grande impulso ao meu trabalho de pós-doutoramento. Mas outro grande impulso aconteceu a um nível mais empírico. Em particular, fiquei muito interessado na rede neuronal hipocampo-entorrinal. Esta rede de ligações cria representações internas do mundo externo. Também tem sido implicada em funções cognitivas como a imaginação, a simulação e a memória episódica. Este é um sistema rico e complexo, mas a maioria dos modelos de função do hipocampo concentra-se apenas na forma como este controla a localização do animal no ambiente. Achei que essa era uma visão muito simplista do sistema.

Para resumir a história, acabei por estabelecer boas colaborações com a Kim Stachenfeld e o Matt Botvinick da DeepMind, e com o Sam Gershman da Harvard University. E juntos, criámos uma nova perspetiva sobre a rede hipocampo-entorrinal, comparando o nosso novo modelo com um vasto número de conjuntos de dados neurais. O hipocampo é conhecido por produzir sequências de representações ao longo de mapas cognitivos internos. Os nossos resultados ajudam a explicar como as variações na atividade da população de neurónios ao longo desta rede podem fazer com que o hipocampo entre em diferentes modos de criação de sequências, apoiando assim funções cognitivas específicas.

Acho que as duas questões que abordei durante o meu pós-doutoramento colocaram-me numa boa posição para combinar as abordagens teórica e empírica. Especificamente, uma das direções que gostaria de seguir consiste em perceber como o modelo de planeamento que desenvolvi pode ser implementado na dinâmica do circuito  hipocampo-entorrinal que descrevemos. 

Um dos aspetos centrais que rege o meu laboratório é o facto de levar muito a sério o desenvolvimento de modelos de previsões concretas para experiências. Também estou muito interessado em desenvolver modelos adulteráveis. Se as experiências provarem que os nossos modelos estão errados, então colocá-los-emos simplesmente de lado e avançaremos para o desenvolvimento de novos. 

Esta abordagem ganha expressão com o trabalho colaborativo com neurocientistas, muitos dos quais trabalham aqui na Champalimaud Research. Desta forma, as equipas podem dar grandes contribuições ampliando assim o esforço científico. 

Entrevista de Liad Hollender, Science writer e editora da equipa de Comunicação, Outreach e Eventos do Centro Champalimaud.
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