Entrevista com Oriol Parés and Bill Heald
A cirurgia continua a ser a opção terapêutica mais frequente para o cancro colorretal em todo o mundo. Mas desde há cerca de 10 anos, um pequeno grupo de especialistas da Fundação Champalimaud, liderado pelo britânico Bill Heald, que supervisiona actualmente o Programa Colorretal da Fundação Champalimaud, e Oriol Parés, um radioncologista catalão de 46 anos que trabalha no Departamento de Radioterapia, têm estado a implementar uma nova abordagem, não invasiva, chamada Watch & Wait (W&W – em português, “vigiar e esperar”), cuja pioneira foi a médica brasileira Angelita Habr-Gama e que começou por ser muito criticada. Ela demonstrou que, para certos doentes com cancro rectal que antes da cirurgia tinham recebido radioquimioterapia, a cirurgia poderia ser evitada se fossem previamente submetidos a um protocolo muito rígido de vigilância, o W&W, de forma a ver como o tumor reagiria a esses tratamentos pré-operatórios.
Bill Heald é um eminente cirurgião britânico que, em 1982, inventou uma nova forma de cirurgia do cancro rectal, a “excisão total do mesorreto”, ou TME na sigla em inglês, que se tornou o método-padrão em termos de cirurgia do cancro rectal no mundo inteiro, porque ao remover totalmente o mesorreto aumenta exponencialmente a probabilidade de remoção completa do tumor, preservando ao mesmo tempo tecidos e estruturas anatómicas pélvicas, fisiologicamente importantes, mesmo nos casos mais difíceis (Bill Heald foi convidado a demonstrar a TME em mais de 60 países). Mas também é um médico com uma grande abertura de espírito, sempre à procura de melhorar a qualidade de vida dos seus doentes – mesmo que isso signifique, em certos casos, abdicar da cirurgia.
Quando Oriol Parés chegou à Fundação Champalimaud, em 2013, já tinha ouvido falar do método W&W, que tem como base a Radioterapia como tratamento definitivo, mas nunca o tinha praticado.
No ano seguinte, Bill Heald chegou à Fundação e não demorou muito tempo até que os dois homens se encontrassem e começassem a pensar juntos em “fundir”, por assim dizer, a TME com novos regimes, muito mais precisos, de radioterapia, de forma a poder oferecer o W&W a um número cada vez maior de doentes com cancro rectal antes de decidir se a cirurgia acrescenta benefício terapêutico.
Agora, em 2022, os seus esforços parecem estar a dar frutos: “O trabalho do Oriol começa a sugerir que quase metade dos doentes que chegam com um cancro do recto poderiam ser curados sem nunca ir ao bloco operatório”, diz Bill Heald.
Tem-se feito muito caminho na gestão do cancro retal, certo?
BH - Sim, se recuarmos um século no tempo, o cancro rectal era então uma das mais cruéis doenças malignas comuns em termos de fracasso local – ou seja, da incapacidade de o cirurgião curar este tumor situado na pélvis. Era um cancro muito, muito frequente que se arrastava durante anos, com dores e toda a espécie de sintomas desagradáveis. O terror que os seres humanos sentem há mais de um século, além do terror de morrer da doença, é que o cirurgião lhes coloque um saco no abdómen porque, estando o tumor situado muito baixo no recto, perderiam o seu canal anal e com ele a capacidade de controlarem as suas vidas devido à incontinência fecal.
Por que é que a situação mudou quando a TME entrou em cena?
BH - Passo a explicar: o mesorreto é como um envelope à volta do recto, e se o tumor está dentro desse envelope, então a cirurgia por si só tem boas hipóteses de curar o cancro. Isto deve-se à maneira como o corpo é “montado”, criando uma forma, um envelope, que contém o recto juntamente com a sua irrigação sanguínea, a sua drenagem linfática e a sua drenagem venosa. Portanto, o cancro cresce dentro deste envelope – e, se o tumor não tiver atravessado a fáscia do mesorreto e conseguirmos fazer uma ressecção perfeita do mesorreto, significa que conseguimos eliminar completamente o tumor rectal.
No entanto, a TME continua a ser uma operação muito desafiante, difícil de ser feita na perfeição. No início, muitos e talvez a maioria dos fracassos locais eram na realidade devidos a imperfeições das cirurgias que estavam a ser realizadas, associadas às limitações dos estudos de imagem, que hoje caracterizam cada vez com maior detalhe o tamanho e localização da doença pélvica. À medida que as operações se tornaram mais precisas, o número de fracassos diminuiu.
De onde veio a ideia do Protocolo W&W?
OP - Tudo começou com a sábia observação de alguns cirurgiões, há cerca de duas décadas, de que havia um certo grupo de doentes, que tinham sido submetidos à cirurgia após um tratamento com radioterapia, cujas amostras dos tumores não apresentavam qualquer sinal de um tumor viável. Isto é algo bem conhecido e reportado na literatura médica, e estima-se que 10 a 15% dos doentes irão encontrar-se nesta situação. A seguir, uma cirurgiã muito importante – e amiga próxima de Bill –, a brasileira Angelita Habr-Gama (https://fchampalimaud.org/news/watch-wait, https://fchampalimaud.org/news/watch-wait-protocol), começou a perguntar-se se estes doentes precisavam mesmo de cirurgia, levantando a questão de que, antes de decidir operar um doente, era preciso perceber o que se estava a passar naqueles tumores. Portanto, decidiu que, em vez de enviar imediatamente para a sala de operação os doentes que apresentavam muito boas respostas clínicas apenas com radioquimioterapia (desaparecimento do tumor), iria observá-los para ver o que aconteceria. Foi muito criticada pela comunidade – “criticada” é um eufemismo. Era uma mulher num mundo de homens, era latino-americana, portanto foi cientificamente desconsiderada.
Os cirurgiões mais cépticos pensavam que o cancro ia progredir demasiado depressa e que a cirurgia era urgente?
BH - Exactamente. O que é compreensível. Mas é insensato, porque a questão é que o cancro rectal é geralmente um tumor de crescimento lento – e, sabemos agora, que o facto de fazermos um compasso de espera após a radioterapia, para avaliar cuidadosamente qual o próximo passo, é muito mais vantajoso para o doente do que uma acção precipitada.
Mas voltando um pouco atrás, por que é que alguns dos doentes com cancro rectal tinham de ser submetidos à radioquimioterapia antes da cirurgia?
OP - Porque estes doentes apresentavam características muito provavelmente nefastas e estadios tumorais mais avançados. O papel da radioterapia era diminuir o tamanho do tumor e fazê-lo regredir para reduzir o risco de o cirurgião deixar para trás partes do tumor, o que teria garantidamente conduzido ao fim da vida do doente.
Hoje, na Fundação Champalimaud, qual é a percentagem de doentes que são selecionados para o Programa Watch & Wait depois de terem esperado 10 a 12 semanas a partir do fim do tratamento prévio?
OP - A maioria dos resultados que têm sido publicados reportam que entre 20 a 30% dos doentes entram no Programa Watch & Wait. E deste grupo de doentes, que são tratados por radioterapia com ou sem quimioterapia antes do W&W, estão na maioria aqueles que apresentam inicialmente características de alto risco, e piores resultados expectáveis e prognósticos oncológicos.
Mas na Fundação Champalimaud, os números parecem ser melhores: nós implementámos uma série de especificações particulares na radioterapia, ao nível da técnica de administração do tratamento, da qualidade das imagens utilizadas durante durante todo o processo terapêutico a da dose biológica de radioterapia administrada. Actualmente, podemos dizer, passados quase 10 anos de implementação do Programa Watch & Wait, que os doentes que fazem radioterapia prévia têm uma probabilidade de 50% de entrar no W&W após o tratamento.
BH - Dos nossos doentes com cancro do recto, submetidos a Radioterapia com ou sem Quimioterapia, é possível que até 50% tenham tumores que desaparecerão completamente, sem necessidade de qualquer tratamento adicional.
Todos os doentes que entram, permanecem no Programa Watch & Wait?
OP - Não. Sabemos que uma percentagem bastante estável de doentes que entram no W&W apresentam, principalmente durante o primeiro ano, um risco de “recrescimento” do tumor (reaparecimento). Esses doentes terão de ser operados. Mas seja como for, 50% é uma excelente taxa de respostas clínicas completas comparada com as taxas publicadas por outros centros, e acreditamos que isso se deve às especificações particulares da radioterapia que administramos.
Apenas um ano após o início da actividade clínica na Fundação Champalimaud, em 2013, lançámos um Programa Watch & Wait para os doentes com cancro rectal previamente submetidos a radioterapia. Implementámos um protocolo de vigilância muito estrito e dedicado, que envolvia uma equipa multidisciplinar de radiologistas, cirurgiões, gastrenterologistas, patologistas, radioncologistas e oncologistas médicos.
Fomos os pioneiros do Watch & Wait em Portugal, e provavelmente também na Península Ibérica, porque tanto quanto sei ninguém estava a fazê-lo em Espanha. Mostrámos que, no fim do tratamento com radioterapia, não estávamos a pôr os doentes em risco ao esperarmos algumas semanas, mas que na realidade estávamos a ganhar tempo. Basicamente, a nossa filosofia é permitir a consolidação dos efeitos da radioterapia. Por isso, esperamos entre 10 a 12 semanas para avaliar a resposta à radioterapia.
Mas nem todos somos iguais perante a resposta tumoral à radioterapia…
OP - É um facto que a resposta à radioterapia é muito heterogénea entre os doentes com cancro rectal. Hoje em dia temos ferramentas bastante robustas para detectar os doentes que têm uma resposta clínica completa. Estes poderão aliás corresponder ao grupo de doentes que antigamente, sem serem avaliados clinicamente, eram diretamente operados e apresentavam respostas patológicas completas a seguir à radioterapia. Trata-se de tumores altamente sensíveis à radioterapia. Mas também é possível observar o contrário: tumores que não respondem bem à radioterapia. Mas antes de irradiarmos um tumor, não sabemos o que vai acontecer; só ficaremos a sabê-lo cerca de 10 a 12 semanas após o fim do tratamento de irradiação. E, nessa altura, iremos decidir quem é elegível para entrar no Programa Watch & Wait (numa tentativa de preservar o recto) e quem deve ser operado logo porque a resposta do seu tumor à radioterapia não foi boa o suficiente (não foi completa).
A vigilância e a espera alguma vez acabam?
OP - Sim. Passados cinco anos, se um doente a fazer W&W não teve nenhum recrescimento do seu tumor, podemos presumir que o risco de recrescimento tumoral desse doente se torna equivalente ao risco de desenvolver cancro rectal na população geral. Portanto, o doente pode sair do Programa Watch & Wait e continuar a fazer rastreio regularmente.
Bill Heald, acha que o número de doentes com cancro rectal a quem é proposta radioterapia seguida de um Protocolo Watch & Wait irá aumentar substancialmente no futuro próximo?
BH - Sim, porque o Oriol está a obter resultados notáveis com a radioterapia. Actualmente, fazemos radioterapia aos doentes com cancro rectal quando achamos que apresentam um risco de recorrência local, ou cujos tumores precisam de regredir ou reduzir o volume antes de o cirurgião os poder operar. Temos estado a seleccionar, como disse o Oriol, aqueles cancros que atravessaram o envelope mesoretal nalgum sítio, e que portanto precisam de ser obrigados a regredir para voltar a ficar dentro do envelope, permitindo assim que o cirurgião cure o doente. Mas agora temos tido resultados tão entusiasmantes com a radioterapia que é possível que a cirurgia deixe de ser de todo necessária para muitos desses doentes.
O que tudo isso significa – e que penso ser a grande notícia neste Mês do Cancro Colorretal – é que, com base nos bons resultados que tem estado a obter aqui na Fundação Champalimaud, o Oriol já está em posição de avançar que, desde que o tratamento com radioterapia se torne suficientemente bom, poderemos vir a considerar, no futuro, oferecer o nosso tratamento de radioterapia à maioria dos doentes com cancro rectal baixo (ou seja, cujo tumor está localizado muito perto do ânus) e a seguir avaliar os resultados para ver se os doentes podem entrar no Programa Watch & Wait e talvez evitar totalmente a cirurgia. Se for o caso, isso irá mudar totalmente a abordagem do cancro rectal no mundo inteiro.
A verdade é que, neste momento, em alguns locais, se continua a administrar tratamentos obsoletos de radioterapia, sem particular refinamento, cujo impacto talvez seja um pouco limitado comparado com o que estamos a conseguir fazer aqui. É aí que eu quero realmente chegar: a optimização da técnica de radioterapia na Fundação Champalimaud está de facto a conseguir um desaparecimento completo do cancro antes de o cirurgião lhe pegar. E isso é verdadeiramente entusiasmante.
Entre os doentes a quem administram radioterapia, há doentes com doença metastizada?
OP - Quando os doentes apresentam doença metastática limitada, chamados oligometastáticos, consideramos sempre a possibilidade de tratar o tumor primário com intuito curativo. Se o tumor primário responde aos critérios para receber radioterapia, se está a ameaçar extravasar as margens cirúrgicas, por exemplo, ou se apresenta características de alto risco de reincidência local, independentemente da doença metastática iremos observar a resposta clínica à radioterapia e, se for conseguida uma resposta clínica completa, a preservação do recto (W&W) também poderá ser considerada. Temos vários casos destes.
E como lidam com as metástases?
OP - As metástases podem ser geridas de várias maneiras. Se se tratar de doença metastática limitada no fígado ou nos pulmões - os dois locais mais comuns de disseminação do cancro rectal – ambos aqueles órgãos podem ser operados ou focalmente irradiados com radioterapia ablativa no caso de a cirurgia não ser possível ou indicada. Se estivermos perante uma doença já muito disseminada, então a quimioterapia é o tratamento indicado. Portanto, face a uma doença metastática limitada, ainda existe uma boa probabilidade de curar o doente. Também existem outras técnicas (microondas, radiofrequências) para fazer a ablação de lesões metastáticas derivadas do cancro rectal.
BH - A morte devida ao tumor primário tem-se tornado rara. Muita gente morre de cancro colorretal, mas morrem das metástases que não conseguimos extrair através da cirurgia hepática, e não do tumor primário na pélvis.
Em que consiste exactamente o protocolo de radioterapia desenvolvido na Fundação Champalimaud?
OP - Na realidade, temos dois protocolos, com duas doses diferentes de radioterapia, o de longa duração e o de curta duração. Tipicamente, no de longa duração, administramos cerca de 50 Gray (Gy) ao longo de 25 dias de tratamento (o gray, ou Gy, é a unidade de medida da absorção da radiação), enquanto no de curta duração, administramos um total de 25 Gy ao longo de cinco dias consecutivos. É uma dose menor, mas do ponto de vista radiobiológico, administrar 45 Gy em 25 dias consecutivos é considerado equivalente a administrar 25 Gy em cinco dias consecutivos. Tipicamente, o tratamento de longa duração é administrado ao mesmo tempo que um agente quimioterapêutico (em comprimidos), enquanto o de curta duração não inclui quimioterapia.
Desde os anos 1990, houve três ensaios clínicos para comparar aleatoriamente os dois protocolos, e nenhum deles demonstrou haver diferenças entre os tratamentos em termos de controlo local, de desfechos oncológicos (sobrevivência) ou de toxicidade. Nunca foi provado que o de curta duração é inferior ao de longa duração. Apesar de a dose recebida no de curta duração ser mais pequena, presume-se portanto que o seu efeito biológico é equivalente ao de longa duração.
Na Fundação Champalimaud, tornamos as coisas um bocadinho mais complexas. Além de as técnicas que utilizamos serem diferentes, além das nossas especificações particulares da radioterapia e da forma como administramos a radiação, também temos uma maneira de aumentar, em segurança, a dose de radiação administrada, obtendo potencialmente um efeito biológico maior. Trata-se daquilo a que chamamos “simultaneous integrated boost” (SIB – em tradução livre para português, “sobreimpressão de dose simultânea”); é administrada ao tumor visível e, caso existam, aos gânglios linfáticos afectados.
Por que é que alguns doentes fazem radioterapia de longa duração e outros de curta duração?
OP - Isso baseia-se numa avaliação de risco, que eu resumiria da seguinte maneira: se a doença local de um doente apresenta características de risco sistémico – ou seja, se o doente, sem ter doença metastática, apresenta, por exemplo, um invasão venosa extramural –, queremos lidar rapidamente com ambos os riscos, o local e o sistémico. Não temos dois meses para administrar uma radioterapia de longa duração e de nos focarmos apenas na pélvis do doente, é premente reduzir o risco sistémico em simultâneo. Nesses casos, vamos administrar uma radioterapia de curta duração e a seguir uma quimioterapia sistémica por causa do risco de doença metastática.
Já agora, sou um grande defensor de uma outra estratégia, que consiste num protocolo de radioterapia de curta duração seguido de uma quimioterapia de consolidação durante o período de espera. Em vez de esperar cerca de três meses sem fazer nada, poderíamos assim intensificar, consolidar o tratamento de radioterapia, seguido de quimioterapia.
Já estão a aplicar este protocolo?
OP - Estamos ainda na fase de investigação. Mas a ideia provém de um protocolo muito importante que foi recentemente publicado após um estudo multicêntrico, chamado Ensaio Clínico RAPIDO. O ensaio RAPIDO não foi concebido para avaliar a elegibilidade dos doentes para entrar no Programa Watch & Wait, mas para avaliar outros desfechos – mas os resultados publicados foram tão bons que nos levam a pensar que esse protocolo poderia também ser facilmente implementado a doentes que não seriam operados a seguir, mas que integrariam o Programa Watch & Wait. O Bill e eu somos grandes entusiastas desta estratégia.
BH - Gostaria de acrescentar que uma das coisas mais interessantes saídas do ensaio RAPIDO, como disse o Oriol, é que o W&W não foi proposto a ninguém nesse ensaio. Eles estavam a testar outra coisa. Mas uma das formas de medir a eficácia da radioterapia realizada consiste, obviamente, em olhar para a amostra que foi extraída cirurgicamente. E o que foi tão entusiasmante foi que, nas amostras do ensaio clínico RAPIDO havia quase o dobro de desaparecimentos completos do cancro nos doentes que tinham recebido o tratamento de radioterapia de curta duração, que dura uma semana, do que nos doentes que receberam seis semanas de radioterapia. Imagine o que são seis semanas de radioterapia ao ritmo de cinco sessões por semana; é muito difícil conciliar os tratamentos com as obrigações quotidianas das pessoas, comparado a ter feito tudo numa semana. Muitos médicos pensam que tantas semanas da vida de uma pessoa não são assim tão importantes, mas são, e se ainda por cima se obtêm duas vezes mais respostas completas quando tudo é feito em apenas uma semana, isso incita fortemente a encurtar o número de dias em que as pessoas precisam de ir ao hospital receber radioterapia. É surpreendente a lentidão com que isto está a entrar na prática clínica, em particular na Europa. E nos Estados Unidos, tem sido ainda mais lento. Na minha opinião, continuar a fazer radioterapia de longa duração não é vantajoso para os doentes.
Os doentes tratados com radioterapia de curta duração, por uma ou outra razão, têm a mesma possibilidade de integrar o Programa de Watch & Wait?
OP - Evidentemente. Também temos doentes que receberam radioterapia de curta duração no Programa de Watch & Wait. Portanto, eu diria que se alguma vez tivesse de vir à Fundação Champalimaud e a equipa multidisciplinar lhe propusesse uma radioterapia, teria sempre a oportunidade de ser avaliada e de evitar a cirurgia, fosse qual fosse o seu protocolo de tratamento com radioterapia.
E se o tratamento de curta duração resultar numa resposta clínica completa, também irão oferecer o Programa Watch & Wait aos doentes em causa?
OP - Sim, absolutamente. A gestão destes doentes é muito diferente na Fundação Champalimaud em comparação com outros sítios. A resposta clínica de cada um dos doentes que irradiamos hoje em dia, seja qual for a duração da radioterapia, será sempre avaliada – e se for completa, iremos sempre propor ao doente a possibilidade de entrar no W&W. Actualmente, temos cerca de 120 doentes no Programa Watch & Wait.
Hoje, qual é a instituição que está a fazer o maior número de radioterapias de curta duração?
OP - O Instituto Karolinska tem estado a utilizar extensivamente a radioterapia de curta duração e a enviar os doentes elegíveis para a preservação de órgãos (W&W). Também temos estado a fazê-lo, mas de forma mais limitada, e temos estado a recorrer de preferência à radioterapia de longa duração – mas acredito que acabaremos também por aumentar os números da radioterapia de curta duração. Estamos a caminhar nesse sentido.
Por que ainda preferem a radioterapia de longa duração na Fundação Champalimaud?
OP - Porque as decisões são tomadas por um conselho multidisciplinar, que argumenta que a maior parte dos dados do Watch & Wait provêm da utilização de radioterapia de longa duração e que ainda não há dados suficientemente amadurecidos para fazer Watch & Wait a seguir à radioterapia de curta duração. Mas de qualquer modo, a minha opinião pessoal é que somos um instituto de investigação e que o nosso trabalho consiste em levar à maturidade, igualmente, os dados relativos à radioterapia de curta duração. É o que estamos a fazer.
A escolha da curta duração é mais uma discussão centrada no doente, no âmbito de uma equipa multidisciplinar. Por exemplo, se tivermos um doente jovem com um cancro que apresenta muitas características desfavoráveis, tal como um risco muito elevado de se tornar metastático, não queremos perder tempo a fazer uma radioterapia de longa duração, que exige muitas semanas de tratamento. Queremos lidar com os dois problemas – o tumor primário e o risco de doença sistémica. A este doente será portanto proposta uma radioterapia de curta duração e rapidamente um tratamento integral de quimioterapia. E a seguir, em função da resposta, o doente será operado ou dará entrada no Watch & Wait.
BH - Posso atirar para esta conversa os conselhos de um velho médico? Não se deve ficar com a ideia de que administramos preferencialmente radioterapia de curta duração a pessoas que não suportam o de longa duração, em particular devido à sua fragilidade. Houve um doente muito inteligente que chegou à Fundação Champalimaud vindo do Reino Unido, mas como era sueco, seguiu os conselhos das pessoas que mais respeitava – as de Estocolmo. Tinha apenas 50 anos, uma forma física excelente, mas disse que queria fazer uma radioterapia de curta duração. Se me perguntassem, eu diria a mesma coisa. De facto, é o que aconselharia sistematicamente aos doentes; os resultados do ensaio RAPIDO convenceram-me. Duas vezes mais respostas completas, isso é uma medida muito convincente da eficácia da curta duração versus a longa duração.
Quais são as técnicas de radioterapia particulares que vos permitiram obter melhores resultados no diferimento da cirurgia e na preservação do órgão?
OP - Primeiro, devo dizer que a Fundação Champalimaud, fez um grande investimento em tecnologia no início, em especial em radioterapia, e que isso nos deu acesso às mais avançadas técnicas de radioterapia. Durante as últimas três décadas, a maior parte dos cancros rectais – melhor dizendo, a maior parte das doenças malígnas da pélvis – foram tratadas com as chamadas técnicas de radioterapia “conformacional” 2D e 3D, que irradiam a totalidade da pélvis e a maioria dos órgãos nela situados. Em finais de 2010, foram desenvolvidas novas técnicas de radioterapia, ditas técnicas de “radioterapia de intensidade modulada”. Isso significa que é possível modular a intensidade do feixe de fotões, adaptando-a de maneira dinâmica à forma do tumor ou do órgão que se pretende irradiar. Hoje em dia, já não irradiamos a pélvis como se de um bloco se tratasse, mas “esculpimos” a dose de irradiação na forma do mesorreto de cada doente. Nós implementámos estas técnicas de intensidade modulada, que utilizamos sistematicamente na Fundação.
Também utilizamos RM (ressonância magnética) e PET/CT (tomografia por emissão de positrões) dinâmica para planificar o tratamento de radioterapia individualizado para cada doente, de forma a definir o tumor com precisão assim como a sua relação com o resto dos órgãos da pélvis, enquanto tradicionalmente, apenas tem sido usada a tomografia computadorizada básica para o planeamento. A capacidade de optimizar o planeamento do tratamento permitiu-nos aumentar a dose de irradiação aplicada ao tumor – e aos gânglios linfáticos, quando necessário, com o intuito de aumentar o efeito biológico.
E ainda implementámos procedimentos de imagem durante o tratamento diário com IGRT (radioterapia guiada por imagem) com “on board CT”: antes de administrar a dose de radiação, obtemos imagens – por tomografia computadorizada de baixa dose – que “fundimos” com a imagem do planeamento, baseada em PET/CT e RM. Isto permite-nos adaptar o plano à posição exacta do tumor nesse dia.
Poder-se-ia dizer que esta forma de radioterapia é equivalente à TME de Bill Heald feita com radiação em vez de cirurgia?
OP - Precisamente. Já agora, no início, o Professor Heald, a Inês Santiago, radiologista extremamente competente em RM pélvica e rectal – e eu próprio (aprendendo modestamente com ambos), tivemos várias sessões de discussão e elaborámos a ideia de fazer, não uma TME (Excisão Total do Mesorreto, o trabalho do Bill de toda a vida), mas uma TMI (Irradiação Total do Mesorreto). Isto também partiu de uma ideia do Professor. Ele perguntou: “E se em vez de irradiar a pélvis toda focalizássemos a radiação dentro do mesorreto?”.
Publicámos a ideia num artigo de opinião e temos estado a administrar os nossos tratamentos em conformidade. Também definimos a “TMI alargada”, a implementar quando a doença está presente fora do mesorreto.
É nisto que temos estado a trabalhar todos estes anos – a redefinir os campos da radioterapia. E a razão para o fazermos foi exclusivamente para diminuir a toxicidade desta. A radioterapia tem reputação de “nociva” na profissão médica, e a única razão para isso é que, com o seguimento mais prolongado destes doentes, que realizaram técnicas de radioterapia antigas, observamos toxicidades. Mas também curam os tumores, é verdade. E a sua combinação com a quimioterapia é ainda mais tóxica.
Mas a cirurgia também tem efeitos colaterais e, quando combinada com a radioterapia, ficamos potencialmente na pior situação em termos de efeitos indesejáveis: a chamada “mistura tóxica”. É por isso que temos estado empenhados em oferecer a melhor estratégia de tratamento possível, que traz com ela a maior probabilidade de curar os tumores, num equilíbrio com o mínimo possível de toxicidades agudas e de efeitos colaterais a longo prazo. Também investimos seriamente na qualidade de vida dos doentes com cancro rectal.
Bill Heald, uma última mensagem?
BH - Se há uma mensagem para o Mês do Cancro Colorretal 2022, é que conseguimos curar os doentes. Lembrem-se que os cancros do recto e do cólon são as neoplasias malígnas mais comuns que conseguimos realmente curar, fazendo com que as pessoas vivam até serem atropeladas por um autocarro ou morrerem de velhice. Curar, não apenas controlar a doença, é mais frequente no cancro do intestino do que em qualquer outro cancro interno (tirando o cancro da mama, mas este não é um cancro de órgão interno). Mais: conseguimos curar mais pessoas do cancro do intestino do que dos cancros de todos os outros órgãos internos somados.
By Ana Gerschenfeld, Health & Science Writer of the Champalimaud Foundation.