29 Setembro 2025

John Krakauer

Do Laboratório à Vida: Reinventar a Neurotecnologia no CRN

John Krakauer

John Krakauer é John C. Malone Professor e Professor de Neurologia, Neurociências e Medicina Física e Reabilitação na Universidade Johns Hopkins, onde dirige o Brain, Learning, Animation, and Movement Lab (BLAM Lab). É também External Professor no Santa Fe Institute.

Após mais de uma década a contribuir para a investigação na Fundação Champalimaud (FC) como cientista visitante na área do controlo e aprendizagem motora, John é agora o Diretor do Centro de Neurotecnologia Regenerativa (CRN).

Nesta entrevista, John partilha a história e a visão deste projeto ambicioso, um espaço onde descobertas futuristas e tratamentos inovadores já estão em movimento.
 

Como é que tudo começou?

O progresso do projeto foi muito orgânico e, na verdade, a sua conceção inicial é anterior à minha chegada. 

O Joe [Paton] escreveu um documento técnico com um plano focado no papel da inteligência artificial (IA) e machine learning (ML) como ferramentas impulsionadoras das próximas descobertas científicas, destacando a oportunidade que estas representavam para a FC. A sua visão passava por expandir o Programa de Neurociências da Champalimaud para um novo espaço, reunindo cientistas e engenheiros para melhorar modelos computacionais e explorar novas aplicações experimentais e clínicas.

Quando o Joe se tornou Diretor da Champalimaud Research, eu já colaborava com a Fundação há dez anos como cientista visitante. Desde cedo, ele quis envolver-me neste projeto. Sugeri então uma espécie de mudança de direção para a neurociência humana com terapêuticas digitais, rastreando e tratando o comportamento através da tecnologia. Tendo trabalhado em neurociência comportamental em humanos e sabendo que o comportamento é uma forma de atuar no sistema nervoso, acreditava que esta direção enriqueceria o conceito inicial, alinhando-se com a missão clínica da FC.

Após muitas discussões, concebemos um espaço que une neurociência básica, tecnologia e medicina. Este ambiente único torna possível adicionar a dimensão humana à neurociência que está a ser realizada em animais.
 

O projeto tomou várias formas ao longo do tempo. Como se define o CRN hoje?

O Centro de Neurotecnologia Regenerativa (CRN) é um ecossistema de três programas que trabalham em conjunto, cada um com um papel-chave: uma divisão de investigação, um centro de I&D, e uma clínica.

O Programa de Neurociência da Doença dedica-se ao estudo do comportamento humano na saúde e na doença. Esta divisão académica, inspirada no bem-sucedido Programa de Neurociências da Champalimaud, reúne cientistas, engenheiros e clínicos.

O Warehouse de Neurotecnologia é um espaço de inovação focado no comportamento e na tecnologia para o desenvolvimento de novas linhas de investigação, instrumentos para fazer novas descobertas e, em última análise, terapias inovadoras. Vislumbramos uma relação simbiótica entre a investigação com animais e humanos, criando uma base para questões como: «Podemos criar gémeos robóticos de organismos modelo?», «Como podemos usar IA generativa e rastreio de movimento 3D para construir novos exergames imersivos para doenças neurológicas?» ou «Como podemos usar a Realidade Virtual (RV) para desenvolver novas terapêuticas para doenças psiquiátricas?» 

E por último, a Clínica de Neuroterapêuticas Digitais, onde os doentes participarão em estudos-piloto, ensaios clínicos e receberão terapêuticas digitais. Tanto a Clínica como o Warehouse funcionam como laboratórios de neurociência humana. O Warehouse proporciona um ambiente para invenção e investigação, enquanto a Clínica oferece um espaço para ensaios clínicos e tratamento de doentes.

O que são Terapêuticas Digitais (DTx)?

O termo DTx não é novo. Existe já há algum tempo, com diferentes utilizações, mas a ideia base é: uma abordagem digital, baseada em evidências, para a medicina – um "fármaco digital". A minha motivação reside no seu potencial terapêutico: "E se existisse um local dedicado à avaliação comportamental e a tratamentos tão eficazes como os farmacológicos?" Isto exige ensaios clínicos para recolher evidências e garantir a conformidade regulatória, tornando-as prescritíveis. As DTx são, assim, uma abordagem não farmacológica de tratamento.

Qual a sua experiência com estas terapêuticas?

Quando me mudei de Columbia para a Johns Hopkins University (Hopkins), recebi uma bolsa importante da Fundação McDonnell para conduzir um estudo duplo. O primeiro era explorar múltiplas modalidades para monitorizar a recuperação após um AVC, utilizando imagens cerebrais, estimulação cerebral não invasiva, psicofísica e avaliações  clínicas. Uma vez concluído, a segunda fase foi desenvolver um novo tratamento, e foi assim que nasceu o Bandit, um golfinho simulado num jogo de vídeo para reabilitação.

Esta nova tecnologia levou a uma jornada empreendedora, com a formação de uma empresa na Hopkins, declaração de propriedade intelectual, spin-out e aquisição pela Mindmaze, um unicórnio suíço, ainda baseada em Baltimore, fora do campus da Hopkins. Realizámos vários ensaios e escalámos a tecnologia. Na verdade, está neste momento a ser usada como ferramenta clínica. Foi uma sequência de vivências interessantes, desde uma ideia, à ciência, passando pela startup, até à aquisição.

Há planos para trazer o golfinho para a FC?

Com certeza! Gostaríamos de trazê-lo para a Clínica e oferecê-lo como tratamento. Quanto ao Warehouse, gostaríamos de usá-lo como base para criar novos jogos imersivos, usando captura de movimento de corpo inteiro.

Na mesma linha de tecnologia com capacidade de captura de movimentos, também estamos a construir uma Cozinha Inteligente. Esta é uma colaboração com o Alexander Mathis, da Escola Politécnica Federal de Lausanne, para utilizar a captura de movimentos na análise e quantificação de movimentos quotidianos num ambiente natural. A cozinha é um espaço perfeito para isso, já que é onde as pessoas realizam muitas tarefas reais e minuciosas. O objetivo é medir a qualidade do movimento – quase como uma biópsia cinemática da vida diária. Enquanto a terapia ocupacional se concentra no tratamento, ajudando a reintegração de pessoas com lesões neurológicas nas tarefas da vida diária, estamos a usar a Cozinha Inteligente como uma ferramenta para avaliar o progresso da recuperação. Neste momento, estamos a dar prioridade à medição, mas consigo ver uma evolução tanto para um sistema de tratamento como de avaliação.

Anteriormente, referiu que o Warehouse é um centro de I&D. Pode desenvolver esta ideia?

Projetámos o Warehouse de Neurotecnologia para unir a investigação ao desenvolvimento – dois processos distintos, mas complementares. A investigação permanecerá orientada pela curiosidade, focada em explorar questões sobre saúde e doença. O desenvolvimento, por outro lado, concentrar-se-á no avanço da tecnologia em si: melhorar sistemas de captura de movimento, refinar a robótica e criar ferramentas que possam traduzir a investigação em aplicações práticas.

Este trabalho será liderado por equipas centrais especializadas em sistemas imersivos, software e hardware, e cirurgia digital. A sua função não é publicar artigos, mas sim dominar a tecnologia, expandir  os seus limites e explorar o seu potencial de inovação. O objetivo é desenvolver protótipos, aperfeiçoá-los e, quando apropriado, colaborar com parceiros da indústria para levar ideias promissoras avante.

O Warehouse não fabricará nem venderá produtos diretamente, mas servirá como um espaço para testes e colaborações. Empresas poderão trazer novas tecnologias – sejam sistemas de RV, wearables ou outras ferramentas – para serem testadas em condições do mundo real, com sujeitos saudáveis ou em ensaios em fase inicial. Se algo se revelar viável, poderá ser licenciado ou transformado em spin-off para dar seguimento ao seu desenvolvimento.

Com o tempo, também poderemos acolher startups ou empresas residentes, criando um ambiente dinâmico onde a investigação, o desenvolvimento e a indústria podem interagir. O foco permanece na prototipagem, no refinamento e na capacitação da tecnologia para avançar – seja através de parcerias, spin-offs ou inovação interna.

Quais são os desafios na criação de um centro como este?

Permitam-me dizer, em primeiro lugar, que a FC oferece um terreno fértil para este tipo de trabalho. Instituições mais pequenas têm flexibilidade para perseguir novas direções de investigação, e o talento e  cultura tecnológica de Portugal contribuem para esta vantagem. Ter um espaço dedicado como o Warehouse – sete mil metros quadrados – é uma oportunidade rara, e acho que a Administração da Fundação foi presciente e ousada ao apoiar e acreditar nesta nova direção.

Dito isto, é sempre um desafio trazer algo "novo", e ao mesmo tempo respeitar o "antigo". Com o CRN, a novidade não reside apenas na sua estrutura, mas também no seu conteúdo: as terapêuticas digitais ainda são uma tecnologia relativamente nova que precisamos de apresentar aos nossos diferentes públicos e que a comunidade científica ainda precisa de acolher. O que estamos a tentar fazer é intrinsecamente difícil: criar intervenções que modifiquem doenças ou comportamentos.

Além disso, há também a realidade dos desafios financeiros, considerando também a cultura filantrópica local relativamente pequena, mas em crescimento. Além das renovações e compra de equipamento, o financiamento é essencial para atrair e contratar os profissionais certos e construir uma comunidade forte. Por exemplo, estamos muito felizes por receber um novo Investigador Principal do Imperial College London para a divisão de investigação do CRN!

Foi recentemente anunciado como Diretor do CRN, os primeiros grupos instalaram-se no Warehouse há algumas semanas, e a Clínica está a ser preparada. Como se sente neste momento?

Isto é apenas o início, mas estou muito entusiasmado. É ótimo ver o plano em ação e testemunhar que a nossa perseverança está a dar frutos. Estou particularmente ansioso por apresentar os primeiros resultados de alguns dos nossos projetos iniciais e vê-los avançar.

Por exemplo, estamos a trabalhar em estudos com doentes com paralisia da marcha na Doença de Parkinson, utilizando a nossa grande sala imersiva de captura de movimento; num tratamento baseado em RV para a Perturbação Obsessivo-Compulsiva; e a desenvolver jogos de vídeo de corpo inteiro, de última geração, para neurorreabilitação. Também estamos a construir dispositivos robóticos para a paralisia da mão e a tentar reconstruir sinteticamente a organização hierárquica do sistema sensório-motor para descobrir os seus princípios computacionais.

Chegou a hora de cristalizar todas estas ideias, pôr o plano em ação e ver que resultados emergem.
 

Entrevista por Thaïs Lindemann, Neurotechnology Liaison Officer nas equipas de Comunicação, Eventos & Outreach, e de Coordenação do CRN da Fundação Champalimaud.
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