Rita Fior faz investigação fundamental e translacional em cancro com peixes-zebra na Fundação Champalimaud. Há uns anos, um problema de cancro na sua família levou-a a desenhar um teste, baseado no seu “modelo” animal – um teste que permitisse escolher dentro das opções de quimioterapia disponíveis a melhor para aquele doente em particular. Como? Utilizando os peixinhos como “avatares”, “alter-egos” personalizados dos doentes. As células do tumor do doente são injectadas nos peixes-zebra, gerando os “avatares” que depois são submetidos às opções de tratamento que estão disponíveis para aquele doente. A ideia é que este teste seria feito antes de administrar a terapia ao doente para escolher a terapia mais eficaz para aquele doente em particular, evitando assim uma administração por tentativa e erro, que acontece em alguns casos. Os resultados são promissores, mas esta abordagem ainda tem um longo caminho por fazer antes de entrar na prática clínica.
O mais recente projecto da cientista diz respeito ao cancro rectal, onde muitas vezes os doentes são submetidos a radioterapia antes de serem operados. Neste caso, o problema é que ninguém tem a certeza se vale a pena submeter alguém a semanas deste tratamento que pode ter sérios efeitos adversos, porque não há forma de prever se a radioterapia será ou não eficaz contra o seu tumor. Rita Fior confia que um dia este tipo de testes de previsão com avatares poderá ajudar os oncologistas a alcançar a derradeira personalização dos tratamentos, no interesse do bem-estar dos doentes e da sua qualidade de vida.
Trabalha no peixe-zebra. O que tem a ver o tratamento dos cancros humanos, e em particular do cancro colorretal com estes animais de laboratório?
Vou explicar. No meu laboratório de Desenvolvimento do Cancro e Evasão do Sistema Imunitário Inato, no Champalimaud Research, estamos a trabalhar com peixes-zebra para tentar transformá-los em “avatares” personalizados dos doentes com cancro (seja ele qual for), de forma a desenvolver testes de sensibilidade de cada doente às terapias antes de lhas administrar. E onde temos mais trabalho feito é no cancro colorretal.
O que é um “avatar”?
É um modelo in vivo personalizado de um doente. Para criar um avatar, retiramos células tumorais do doente, seja de uma biópsia, seja de uma cirurgia, seja de fluidos biológicos que contêm muitas células tumorais. A seguir, transplantamos essas células tumorais para um embrião de peixe-zebra, o tal modelo in vivo ao qual chamamos um avatar do doente. E assim, temos as células do doente dentro de um organismo vivo. Fazemos isto porque em termos biológicos, as células tumorais estão num ambiente mais realista – e não in vitro, dentro de um pratinho de laboratório. Por último, aplicamos os diversos tratamentos aos peixinhos e vemos qual é aquele que vai ser mais eficaz contra o tumor.
Mas por que é que isso é preciso?
A ideia de utilizar avatares tem a ver com a maneira como se trata hoje os doentes com cancro. Existem terapias que são aprovadas em ensaios clínicos, que envolvem muitos doentes. Essas terapias têm uma taxa média de resposta – ou seja, sabe-se, em média, quantos doentes vão responder à terapia. Os médicos e os cientistas fazem grandes ensaios clínicos, juntam todos os dados desses ensaios e definem orientações terapêuticas internacionais para cada estadio de cada tipo de cancro.
Ora, muitas vezes, existem opções terapêuticas equivalentes nessas orientações. Portanto, os oncologistas têm mais do que uma opção na mão para tratar um doente, que podem ser quimioterapias, radioterapia, combinações das duas, etc.. E estas opções existem porque foi demonstrado nos ensaios clínicos que permitem obter uma boa resposta terapêutica.
A questão é que quando temos uma terapia com 70% de respostas positivas no tratamento de um dado cancro – o que mesmo assim é raro – não sabemos se o doente faz parte dos sortudos que respondem à terapia ou dos 30% que não respondem. Portanto, pensamos que é necessário um teste para testar previamente as células tumorais do doente e ver se elas são realmente sensíveis àquelas opções – e se há uma opção que é melhor do que as outras para esse doente.
E no caso do cancro colorretal?
No contexto do cancro colorretal temos dois grandes projectos. Um é no contexto dito “neoadjuvante” – que é um tratamento de radioterapia e quimioterapia administrado antes da cirurgia do recto para, por exemplo, reduzir o tumor de forma a torná-lo operável. Temos este trabalho a decorrer aqui na Fundação Champalimaud em estreita colaboração com o Oriol Parés, um radioncologista que trabalha no Departamento de Radioterapia, e também com cirurgiões como a Laura Fernández e gastroenterologistas como o Ricardo Rio Tinto e o Paulo Fidalgo, entre outros. Recebemos biópsias de cancro do recto e vamos ver, utilizando os nossos avatares de peixe-zebra, se conseguimos prever a resposta de cada doente à radioquimioterapia que irá anteceder a cirurgia.
O outro projecto é no contexto dito “adjuvante”, que é o mais avançado: a seguir a uma cirurgia, os doentes de cancro colorretal também são tratados com quimioterapia para reduzir as hipóteses de reincidência do cancro. Em princípio, a cirurgia remove todas as células tumorais, mas muitas vezes restam micro-metástases circulantes. E foi demonstrado, mais uma vez em ensaios clínicos, que fazer uma terapia pós-cirúrgica permite reduzir a probabilidade de reincidência do tumor. Aqui, nós pegamos numa amostra do tumor removido durante a cirurgia e o que estamos a fazer é pô-la no peixe-zebra e darmos ao peixinho o mesmo tratamento que o doente fez após a cirurgia. Para ver se o avatar responde ou não e se existe uma correspondência entre a resposta do peixe e do doente “doador” das células tumorais.
Ainda estamos em fase de estudo em ambos os projectos, a testar o valor preditivo dos avatares – ou seja, até que ponto eles nos permitirão determinar uma futura resposta do doente ao tratamento. Mas é um modelo, uma ideia que ainda não está implementada na clínica e que precisa de ser validada. Por enquanto, estamos a estudar se existe uma boa correspondência entre o que se passou no doente e o que se passa no peixinho.
E os resultados são promissores?
Acho que os resultados são muito promissores e espero publicá-los ainda este ano. Neste momento, em termos de quimioterapia pós-cirúrgica, estamos com 82% de correspondências e um valor preditivo positivo – ou seja, conseguimos prever, em 82% dos casos, que se uma quimioterapia produz uma resposta no avatar, o doente também vai responder a essa quimioterapia.
Já temos 50 doentes; em 2017 conseguíamos prever quatro doentes em cinco, ou seja 80%. Agora, em 50 doentes, temos 82% de previsões certas, o que reforça os resultados de 2017. Neste contexto, o avatar pode ajudar a escolher a terapia dentro das opções de quimioterapia que existem.
E quanto à utilidade dos avatares para prever a sensibilidade à radioterapia in rectal cancer?
No contexto neoadjuvante, no cancro do recto, em que é utilizada radioterapia (dá-se radioterapia por vezes com quimioterapia), não existem várias opções como no contexto anterior. Neste caso, a questão é que pode haver tumores que não são sensíveis de todo, nem à radioterapia nem à quimioterapia. Mas como não se sabe à partida quais são, há doentes que arriscam estar quatro ou cinco meses a fazer radioquimioterapia, com efeitos secundários tóxicos e sem qualquer efeito benéfico. Se calhar, mais valia então terem ido logo directamente para cirurgia. Portanto, no caso do cancro rectal, o nosso objectivo é usar o teste do peixinho-avatar para ajudar a identificar quais os doentes que não vale a pena submeter à radioterapia porque o seu tumor não é sensível à radiação.
No outro contexto, como já disse, o avatar pode ajudar a escolher entre as opções de quimioterapia existentes – e aqui, os resultados são muito promissores.
Os doentes são todos da Champalimaud?
Da Fundação Champalimaud e do Hospital Amadora-Sintra [Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, EPE]. Temos uma colaboração de longa data com eles.
No caso do cancro colorretal, o teste poderia ser muito útil para programar, da forma mais personalizada possível, o protocolo que se vai aplicar a cada doente. Quanto tempo acha que pode demorar esta abordagem a entrar na prática clínica?
O nosso próximo passo – que estou agora a escrever, é fazer um chamado ensaio clínico randomizado. Não vai ser em doentes com cancro colorretal, mas com doentes metastáticos, em princípio com cancro do ovário e cancro da mama. Vamos fazer um ensaio randomizado para comparar “a escolha do médico” com “a escolha do peixe”. A ideia é mostrar que há benefício em ter um teste para ajudar os clínicos a orientar a terapia. Só assim é que o nosso teste poderá ir para a clínica.
Como teve a ideia, no início, de criar avatares de peixe-zebra?
A ideia surgiu a partir de uma história pessoal. A minha mãe teve cancro do pulmão. Eu estava a fazer o pós-doutoramento no Instituto de Medicina Molecular, em Lisboa, e fui falar com uma médica do que se estava a passar e do tratamento que a minha mãe estava a tomar. E ela vira-se para mim e diz: ”Ah sim? No IPO nós damos [não sei o quê]”. E eu: mas acho que ela não está a tomar isso, está a tomar outra coisa.” Resposta: “Pois, no IPO damos um tratamento, noutros sítios dão outros.” Disse: “Não estou a perceber. Então se a minha mãe estivesse no IPO estaria a fazer outra quimioterapia? Então pode correr bem, pode correr mal? Mas como é que isto funciona? Foi aí que comecei a perceber.
Comecei a perceber que existiam linhas orientadoras e que havia opções terapêuticas equivalentes – que às vezes são quimioterapias muito semelhantes, mas são diferentes. E comecei a perguntar: “Mas não se faz nenhum teste, não há nenhum teste para as células cancerosas, como se fazem antibiogramas para as células bacterianas?” Pronto, era a minha ignorância a falar. Resposta: não, não, não se faz isto. Basicamente é essa a história.
A partir daí, comecei a ficar enervada. E como estava a trabalhar em embriologia, em biologia do desenvolvimento, no peixe-zebra, fui fazer um curso de Verão em Woods Hole (nos EUA) no meio deste processo de tratamento da minha mãe.
O peixe-zebra já era usado para este tipo de coisas?
O peixe-zebra é muito usado para avaliar a eficácia de potenciais fármacos num organismo vivo, mas não com um cancro humano lá dentro. Eu perguntei ao meu professor em Woods Hole por que isso não se fazia no peixe-zebra – por outro lado, eu já sabia que a razão porque não se faziam testes de eficácia in-vitro com células tumorais era porque esses testes não eram preditivos.
E realmente, o modelo de referência para este tipo de testes em oncologia era o ratinho. Punham-se células tumorais do doente em ratinhos e fazia-se o teste dos tratamentos. Só que isso demora meses, portanto não é fazível na clínica. É usado nos grandes centros do cancro dos EUA como o MD Anderson, em doentes que depois de terem reincidências já têm assim o seu ratinho-avatar, mas é muito caro e acaba por não ser exequível.
E eu, que trabalhava em peixe-zebra, perguntei por que não se havia de fazer o mesmo tipo de teste em peixinhos-avatares em vez de ratinhos. O meu professor mandou-me falar com outra pessoa e a seguir fui ver o que já se fazia. E já havia gente a tentar fazer isso.
E esses testes eram fiáveis?
Não. Tive de desenhar um teste de raiz. Acho que foi a minha formação em biologia do desenvolvimento que fez um bocado a diferença em relação ao que já tinha sido feito no peixe-zebra. Fui olhar para as células que tinha introduzido no peixinho para ter a certeza que eram células tumorais humanas. E quando cheguei ao microscópio, tinha lá uma imagem linda, igual ao que já estava publicado, mas achei que havia qualquer coisa de errado.
Acontece que o peixe-zebra tem uns macrófagos [células imunitárias] que ingerem as células tumorais, mas as pessoas achavam que aquilo eram metástases. Percebi que era preciso fazer as coisas com mais detalhe e com mais cuidado. Depois descobri uma maneira de injectar as células tumorais no peixe, num sítio onde elas não morrem, e de quantificar tudo – isto é, fazer um trabalho mais rigoroso – até chegar à optimização que temos hoje.
O ensaio que depois desenhei demora quatro dias, mais uma semana para analisar os resultados, portanto está desenhado para duas semanas. Na maior parte dos casos, os doentes com cancro estão à espera de outros exames e demoram por vezes três semanas a um mês até começarem o tratamento. Portanto, o nosso teste foi desenhado para ser feito nesse tempo de espera.
E pronto, foi assim que comecei a optimizar e a desenvolver o modelo. Porque apesar de alguns laboratórios já terem tentado, as coisas ainda eram imperfeitas nessa altura. E agora acho que, neste momento, somos uns dos melhores laboratórios do mundo a fazer os avatares de peixe-zebra.
Demoraram quantos anos a fazer isso tudo?
Quatro anos.
Quanto tempo acha que os avatares poderão demorar a entrar na clínica, se tudo correr bem com o ensaio clínico que estão a elaborar?
Não sei, quatro, cinco anos? Talvez isto seja o meu optimismo e falta de experiência clínica a falar.
É algo que pode ter muito impacto, nomeadamente na radioterapia do cancro do recto.
Eu acho que sim, que pode ajudar. O nosso grande handicap é que precisamos de células tumorais e há situações em que é muito difícil obtê-las.
Há muitos doentes que vão directamente para cirurgia. Aí, nós recebemos uma amostra do tumor, caso seja preciso o doente fazer quimioterapia a seguir.
Mas para a radioquimioterapia precisamos de uma biópsia. Por exemplo, em cancro do recto, nós temos uma biópsia do recto porque é preciso confirmar a doença no doente. A seguir, alguns vão fazer radioterapia – e só depois é que fazem a cirurgia. Se nós tivermos acesso à biópsia, podemos fazer o teste.
Quais são, na sua opinião, os desafios que investigadores e médicos enfrentam na translação de resultados científicos como os seus para a prática clínica?
Temos de aprender a comunicar. A maioria dos médicos acha que o teste lhes seria útil. Mas daí a avançarem… já percebi que não basta mostrar que o teste é preditivo. Aí se calhar está a diferença entre o investigador e o médico. Eu achei que antes de avançar para um ensaio clínico randomizado, podíamos fazer um estudo de casos, por exemplo em doentes com cancros muito avançados para os quais não se sabe bem o que fazer – que poderíamos usar o peixe, porque já mostrámos que é preditivo na quimioterapia.
Mas não. Temos de fazer o ensaio clínico e ver que nível de evidência é que vamos ter e se será suficiente ou não para convencer a comunidade médica. Agora estamos a desenhar o protocolo – não é um projecto, é um protocolo como os médicos lhe chamam, estou a aprender a fazer um protocolo como os médicos fazem [ri-se] para podermos avançar. Depois tem de ser aprovado, depois financiado e realizado. Mas estou confiante. Felizmente, estou a ter a ajuda de uma médica para redigir o protocolo.
No que respeita ao cancro colorretal, os médicos não vão querer arriscar já em coisas diferentes. Ainda é demasiado cedo.
Claro que se mostrarmos que os nossos avatares têm uma boa preditibilidade na radioterapia, também poderemos avançar para uma coisa semelhante. Mas lá está. Eu não sei se eles vão estar disponíveis para isso. Também percebo, estamos a falar de doentes.
Seja como for, na radioterapia do cancro do recto nós não temos ainda os níveis de preditibilidade que temos com a quimioterapia do cancro colorretal. Ainda não percebi porquê e pode ter a ver com a amostragem da biópsia em si, por não termos tido acesso ao tumor mesmo. A radioterapia prévia só se faz para o cancro do recto. E nós ainda temos poucos dados, e não são tão promissores. O principal problema aqui é a amostragem da biópsia do recto. A biópsia que nos dão, para fazer o teste da radioterapia no peixe-zebra, pode não ser representativa do tumor do recto – e portanto poderá dar mais falsos negativos. Ainda temos de aprender a seleccionar essas biópsias para ter a certeza que temos a biópsia certa. Ainda estamos a aprender.
Por Ana Gerschenfeld, Health & Science Writer da Fundação Champalimaud.