15 Março 2023

O cancro colorrectal está a aumentar nas pessoas com menos de 50 anos – e ninguém sabe porquê

Há umas semanas, o Congresso Champalimaud de Cancro Colorrectal 2023 abriu com uma conferência intitulada “Colorectal cancer in the young”. Quisemos saber mais, junto do autor da conferência, acerca desta aparente contradição. Será que este cancro já não é (ou talvez nunca tenha sido) uma doença da velhice?

O cancro colorrectal está a aumentar nas pessoas com menos de 50 anos – e ninguém sabe porquê

Nos últimos dez anos, o número de cancros colorrectais (CCR) em pessoas com menos de 50 anos duplicou, passando de cinco por cento para 10% dos casos. Só nos Estados Unidos, entre 2008 e 2015, o aumento foi superior a 60%! 

Ao contrário do que se poderia pensar, não se trata de aumentos relativos, mas sim em valor absoluto. “O aumento é real”, diz Paulo Fidalgo, gastrenterologista da Unidade do Digestivo do Centro Clínico Champalimaud; há cada vez mais pessoas com cancro colorrectal precoce. “O cancro colorrectal não é uma doença da idade”, acrescenta este especialista – e essa incidência precoce vai continuar a aumentar. “Em 2030, prevê-se que 25% das pessoas com cancro colorrectal tenham menos de 50 anos”, adverte.

Já em 2022 tínhamos entrevistado Paulo Fidalgo e evocado este fenómeno. Agora, quisemos aprofundar a questão das suas causas junto deste mesmo especialista – e mais uma vez, por ocasião do Mês de Sensibilização contra o Cancro Colorrectal 2023.

Como explicar esta evolução da demografia da doença? Na realidade, diz Fidalgo, ninguém percebe ainda as causas do fenómeno. Mas segundo ele, uma coisa parece certa: as mutações que vão surgindo espontaneamente no nosso ADN, ao longo das gerações, não permitem explicar um aumento tão rápido dos CCR precoces. “É uma impossibilidade lógica”, diz o médico. O “relógio mutagénico” do ADN é demasidado lento para isso.

Existem contudo algumas potenciais explicações alternativas – se bem que provavelmente parciais. Uma delas é a mudança de estilo de vida das novas gerações. “Os jovens estão hoje mais expostos a tóxicos ambientais, são mais gordos, comem mais açúcar e carne processada”, diz Fidalgo, realçando que, em Portugal, a dieta de inspiração norte-americana (rica em gorduras e açúcares, pobre em frutas e legumes) tem ganhado muito terreno. Isso poderá ser, em parte, responsável pelo aumento de CCR precoces. “É um factor importante, mas não é tudo”, diz no entanto este especialista. 

Uma outra hipótese a ser estudada – não em relação directa com o CCR, mas enquanto questão científica de fundo –, é a da chamada “hereditariedade epigenética transgeracional”. Os fenómenos epigenéticos, provocados pelos nossos comportamentos e pelo ambiente em que vivemos, não alteram a sequência do ADN; não criam mutações. Alteram, sim, a expressão (aumentando-a ou diminuindo-a) de tal ou tal gene codificado no ADN.

Ora, os resultados deste tipo de investigação sugerem que certas alterações epigenéticas possam vir a ser herdadas pelas gerações seguintes (vindas dos pais ou dos avós). Se assim for, como as mudanças epigenéticas são processos muito mais rápidos do que as alterações genéticas, elas poderiam permitir explicar a evolução rápida da incidência do CCR em pessoas mais novas. Mas ainda não se sabe o suficiente, diz Fidalgo, para o afirmar com certeza.  

Para este médico, há ainda outra explicação, talvez mais provável: que o CCR nunca tenha sido uma doença do envelhecimento, mas uma doença que começa por vezes muito mais cedo.

Vamos por partes: primeiro, tal como todos os cancros, o CCR é uma doença “clonal”, o que significa que tem origem na alteração de uma única célula.   

Mas o cancro não se faz num dia. E em particular, para um pólipo intestinal se tornar num tumor maligno, “têm de ocorrer entre dois e quatro grandes eventos” de transformação ou diferenciação celular, explica Fidalgo. O que faz com que o surgimento do CCR numa pessoa de 30 anos, por exemplo, possa significar que essa transformação teve início na infância ou mesmo durante a vida embrionária dessa pessoa.

Durante a formação do embrião, diz Fidalgo, há uma fase de explosão da divisão celular – e em especial da divisão das células estaminais, que são as células que irão dar origem a todos os tecidos do organismo humano. “É como uma descompressão de ficheiros informáticos, como um unzip”, na analogia usada por este médico. “E por volta das quatro semanas de desenvolvimento embrionário, podem acontecer eventos de diferenciação, de divergência genética (devida a uma mutação) subtis em células da superfície interna do intestino grosso”, acrescenta. No fim do desenvolvimento, segmentos inteiros do intestino irão assim ser divergentes dos segmentos vizinhos – e susceptíveis de cancerização décadas mais tarde.

Um indício em prol desta hipótese da divergência celular embrionária, diz ainda Fidalgo, é que os pólipos intestinais – as lesões precursoras do CCR –, têm tendência a estar todas concentradas na mesma localização. “É raro que as neoplasias e os pólipos estejam ao mesmo tempo em sítios diferentes do cólon”, salienta. “Nós publicámos um estudo em que sugerimos que são segmentos inteiros da parede intestinal que estão ‘activados’ para formar neoplasias” – resultantes de uma divergência celular que aconteceu no passado.

Por que é que o fenómeno não era visível antes? Por um lado, porque os médicos, responde Fidalgo, tiveram sempre tendência a desvalorizar as queixas dos mais jovens, atribuindo um sangramento rectal à presença de hemorróidas, por exemplo. Isso introduz um atraso no diagnóstico.

E por outro, porque hoje, devido aos nossos hábitos de vida pouco saudáveis (alimentação, sedentárismo, etc.), a situação tornou-se mais aguda do que no passado. 

O que é possível fazer para detectar o cancro de forma mais  precoce? Para já, responde Fidalgo, baixar a idade do início do rastreio, que hoje se situa aos 50 anos, para os 45. Algo que, segundo ele, é realizável no quadro actual do rastreio nacional. 

Futuramente, Fidalgo espera que venham a ser identificados biomarcadores de divergência celular intestinal que permitam saber quais as pessoas que devem ser vigiadas. Idealmente, esses biomarcadores seriam detectáveis em amostras de sangue (“biópsias líquidas”) – muito menos invasivas do que as habituais colonoscopias.

E como que a lembrar a urgência da situação, no segundo dia da conferência acima referida os participantes puderam assistir, em directo, a uma cirurgia de cancro rectal num doente… com 22 anos.

Texto de Ana Gerschenfeld, Health & Science Writer da Fundação Champalimaud.
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