As lesões precursoras do cancro do pâncreas são muito difíceis de caracterizar por ressonância magnética (RM). Mas agora, num novo estudo, investigadores liderados por Noam Shemesh e Carlos Bilreiro – respectivamente investigador principal do laboratório de RM Pré-clínica da Champalimaud Research e médico radiologista do Serviço de Radiologia do Centro Clínico Champalimaud – demonstraram, pela primeira vez, que uma forma particular de RM é capaz de detectar de forma robusta lesões pré-malignas no pâncreas. O estudo, que poderá abrir caminho ao diagnóstico clínico precoce nas pessoas em risco, bem como à avaliação do tratamento do cancro do pâncreas, é publicado hoje (13 de dezembro de 2024) na revista Investigative Radiology.
O cancro do pâncreas é a terceira principal causa de morte por cancro nos EUA e a sexta em Portugal. Quando a doença ainda está localizada, a taxa de sobrevivência a cinco anos é estimada em 44%, de acordo com estatísticas recentes do Instituto Nacional do Cancro dos EUA. No entanto, uma vez o cancro metastizado, este valor desce para cerca de 3%.
Infelizmente, os sintomas do cancro do pâncreas (dores de estômago, perda de peso inexplicável, diabetes de início recente, icterícia, etc.) não são específicos e são facilmente confundidos com os de outras doenças. E quando os sintomas aparecem, o cancro já se encontra, geralmente, numa fase avançada e inoperável.
Noventa e cinco por cento dos cancros do pâncreas são os chamados adenocarcinomas ductais pancreáticos, e a maioria deles desenvolvem-se a partir de uma lesão precursora chamada neoplasia intra-epitelial pancreática (PanIN). Isto faz com que a deteção de lesões pré-malignas do cancro do pâncreas – ou seja, principalmente, PanIN – seja fundamental para diagnosticar a doença numa fase inicial e para compreender a biologia dos PanIN.
Só que, ao contrário do que acontece, por exemplo, com o cancro colorrectal, em que os pólipos precursores do cancro são facilmente detectados numa colonoscopia e removidos, o problema com o cancro do pâncreas reside na ausência de ferramentas de diagnóstico não invasivas para a deteção precoce dos PanIN. Isto impede também a investigação da biologia dos PanIN e da génese dos tumores pancreáticos nos seres humanos.
“A identificação de lesões precursoras de cancro de pâncreas, principalmente (...) PanIN”, escrevem os autores no seu artigo, “poderia proporcionar oportunidades de diagnóstico precoce e de desenvolvimento de terapias mais eficazes."
Uma nova utilização para um método existente
No entanto, acrescentam, “os PanIN não são diagnosticados pelas modalidades de imagiologia actuais. (...) há uma necessidade urgente de desenvolver métodos de imagem para o diagnóstico e a caraterização de PanIN, o que poderia permitir um diagnóstico precoce antes da instalação do cancro do pâncreas”.
Foi precisamente esse o objetivo do novo estudo. E o que os investigadores descobriram foi que é possível detetar PanIN usando uma forma de ressonância magnética denominada “imagem por tensor de difusão” (DTI na sigla em inglês). “A DTI é um método que se baseia na difusão das moléculas de água no interior dos tecidos. Como as moléculas de água difundem no interior das células e interagem com as paredes celulares e outros objectos microscópicos, funcionam como um marcador endógeno da microestrutura dos tecidos”, explica Noam Shemesh.
A RM por tensor de difusão é normalmente utilizada para obter imagens do cérebro, mas isso não impede a sua utilização noutros órgãos. Foi inventada há 30 anos, por isso não é nova, o que é bom se for para ser aplicada a doentes humanos. “Não é um método novo – só que nunca foi aplicado no contexto das lesões precursoras do cancro do pâncreas”, observa Shemesh.
“Foi o Carlos [Bilreiro, primeiro autor do estudo]”, prossegue, "que veio ter comigo com essa ideia". Juntos, decidiram tentar descobrir qual o método de RM que poderia contrastar PanIN, distinguindo-os dos quistos pancreáticos simples e benignos. “Fizemos um estudo completo sobre isso com a [coautora] Tânia Carvalho, da Plataforma de Histologia da Fundação Champalimaud. Ela ajudou-nos imenso e descobrimos alterações na microestrutura do tecido devido aos PanIN. Ora, no meu laboratório, obter imagens de alterações microestruturais é o que melhor sabemos fazer”, salienta Shemesh.
“Este trabalho só foi possível devido à expertise combinada de uma equipa multidisciplinar de investigadores, liderada pelo Noam Shemesh, constituída por médicos radiologista e patologista, engenheiros e cientistas de ressonância magnética e veterinária patologista”, acrescenta Carlos Bilreiro.
Dado que os investigadores embarcaram nesta colaboração entre cientistas e clínicos com a translação para a clínica em mente, a estratégia mais eficiente era, de facto, testar um método que já existe, em vez de desenvolver algo completamente novo – e não validado. “Para fins de translação, é sempre muito útil e eficiente modificar ou adaptar um método existente em vez de o desenvolver de raiz”, explica Shemesh. “Todos os equipamentos de ressonância magnética já têm este método implementado. É apenas a forma como o utilizámos que é nova.”
A equipa conseguiu detectar, utilizando a DTI, as alterações microestruturais que caracterizam PanIN em amostras de tecido pancreático e in vivo em ratinhos transgénicos propensos a desenvolver estas lesões. “A difusão dá às imagens um nível de contraste que nos permite dizer: “ah, há provavelmente PanIN escondidos nestes pixéis”, salienta Shemesh.
De ratinhos e amostras humanas
Os investigadores começaram por obter imagens de amostras do tecido pancreático dos ratinhos transgénicos num dos equipamentos de RM mais potentes do mundo, que o laboratório de Shemesh adquiriu em 2015: uma máquina de RM de campo magnético ultra-alto (16,4 Tesla). Em comparação, os scanners normalmente utilizados na clínica geram um campo magnético de 1,5T ou 3T.
De seguida, confrontaram as imagens por DTI de cada amostra com a análise histológica da mesma amostra, para determinar se as lesões (alterações microestruturais) que observavam correspondiam às lesões observadas na histologia das amostras. Correspondiam – e muito precisamente. A histologia consiste na visualização, ao microscópio, de fatias finas de tecido preparado (por exemplo, a partir de uma biopsia), permitindo ver a estrutura das células e do tecido e determinar a natureza de um tumor.
“Utilizando as potencialidades dos equipamentos de RM de vanguarda que temos no laboratório, conseguimos desenvolver uma técnica de microscopia por ressonância magnética que nos permite comparar directamente as imagens obtidas com lâminas de histologia. Esta técnica permitiu demonstrar que sequências avançadas de difusão – DTI – são capazes de detectar lesões pré-malignas de cancro do pâncreas”, explica Carlos Bilreiro.
A equipa demonstrou ainda que as lesões podiam ser detectadas in vivo nos ratinhos transgénicos. “Fizemo-lo com o nosso outro grande equipamento, um scanner de 9,4 Tesla”, explica Shemesh. “E, na verdade, também obtivemos imagens dos ratinhos em vários momentos com um pequeno scanner de 1 Tesla que também temos no laboratório”, e que é equivalente a uma máquina de ressonância magnética clínica.
Por último, registaram imagens de amostras de tecido humano. “Obtivemos amostras de doentes e mostrámos que os nossos resultados se generalizam aos humanos”, diz Shemesh. “Pegámos em partes de pâncreas humanos e digitalizámo-las da mesma forma que fizemos com as amostras de ratinhos. A histologia e a patologia das amostras mostraram que a DTI também era eficiente e eficaz na deteção de lesões humanas.”
“O nosso trabalho representa uma prova de conceito e fornece uma base para realizar um ensaio clínico em humanos, em doentes, com um método que já está essencialmente implementado”, conclui.
São claramente necessários mais estudos para uma futura utilização clínica: “As diferenças técnicas entre a RM na investigação fundamental e a imagiologia clínica são óbvias”, escrevem os autores, ”e (...) é de esperar uma perda de resolução devido a limitações de hardware nos scanners clínicos e a limitações de tempo na imagiologia de doentes. Futuros Estudos deverão investigar se a DTI pode ser utilizada em contexto clínico para a detecção e caraterização de PanIN (...). Eventuais combinações da DTI com outras ferramentas de diagnóstico poderiam ser utilizadas para aumentar a especificidade, tais como as biópsias líquidas e a inteligência artificial.”
Relativamente a uma futura colaboração entre a investigação e a clínica, Shemesh mostra-se entusiasta. “A minha investigação consiste em encontrar o contraste [nas imagens], mas teria todo o gosto em colaborar com médicos e radiologistas que quisessem aprofundar esta questão e ajudá-los a mapear isto numa população maior. É sempre muito gratificante saber que algo que desenvolvemos pode ajudar os doentes”.
O investigador sublinha também a importância deste tipo de colaborações. “Este projecto levou anos a ser desenvolvido. Foi preciso muito esforço para desenvolver a imagiologia nos ratinhos transgénicos, e o Carlos, em conjunto com uma técnica do laboratório, Francisca Fernandes, trabalharam arduamente nisso. Foi um grande esforço e uma enorme quantidade de trabalho. E penso que no final valeu a pena, e acabou por ser muito, muito empolgante”.
“Acredito que este estudo representa um marco na investigação de lesões pré-malignas do cancro do pâncreas”, salienta por seu lado Carlos Bilreiro. “Conseguimos agora detectar estas lesões em animais e perceber melhor como o cancro do pâncreas se desenvolve. Também sabemos que a DTI é igualmente eficaz no pâncreas humano. Quanto à sua aplicação clínica, vão ser necessários novos estudos que adaptem a técnica ao contexto clínico e que explorem possibilidades interventivas ou de vigilância em lesões pré-malignas. Este estudo representa assim um primeiro passo para a detecção precoce do cancro do pâncreas com ressonância magnética, ainda antes do cancro se desenvolver.”
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Legenda da imagem
Microscopia por RM de pâncreas de ratinho e de humano com a respectiva histologia, demonstrando a capacidade dos mapas DTI (Fractional anisotropy e Axial diffusivity) em identificar lesões pré-malignas (setas pretas). As setas brancas apontam para focos de adenocarcinoma.
Crédito
Adaptado de Bilreiro C, et al. Investigative Radiology, 2024
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Texto de Ana Gerschenfeld, Health & Science Writer da Fundação Champalimaud.