A investigadora Rita Fior usa o peixe-zebra para estudar o cancro em humanos. Embora esta pareça uma combinação improvável, o seu trabalho representa uma grande promessa para futuras aplicações na medicina personalizada.
O princípio básico da abordagem de Rita Fior baseia-se no transplante de células cancerígenas humanas em dezenas de larvas de peixe-zebra. Os peixes funcionam como "tubos de ensaio vivos" onde vários tratamentos, como diferentes drogas quimioterapêuticas, podem ser testados para revelar qual o melhor tratamento. O ensaio é rápido, gerando uma resposta em apenas quatro dias.
Há alguns anos, enquanto Rita Fior estava a desenvolver este ensaio, apercebeu-se de algo curioso, e até mesmo paradoxal. “Apesar da maioria dos tumores humanos implantarem com sucesso no peixe, alguns simplesmente desapareciam num dia ou dois”, recorda. “No entanto, quando estes tumores eram tratados com quimioterapia, passaram a implantar muito mais e já não desapareciam.”
Esta observação levou à formulação de uma nova hipótese de trabalho. “A quimioterapia suprime o sistema imunitário”, explica Rita Fior. "Se o tumor é rejeitado em condições normais, mas prolifera em animais imunossuprimidos, isso poderá indicar que o sistema imunológico do peixe está ativamente a destruir as células tumorais. E por outro lado os tumores que implantam bem, são tumores que são capazes de suprimir o sistema imunitário do peixe."
Foi desta forma que Rita Fior e Vanda Póvoa, aluna de doutoramento do laboratório, iniciaram um novo projeto de investigação. As principais conclusões, publicadas hoje (19 de fevereiro) na revista Nature Communications, permitem-nos compreender melhor como as relações imuno-oncológicas podem levar à resistência à imunoterapia e ao crescimento do tumor. A longo prazo, estes resultados podem contribuir para o desenvolvimento de novos tratamentos e diagnósticos.
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Para explorar esta hipótese, as investigadoras focaram-se num par de células de cancro colorectal derivadas do mesmo doente mas que apresentavam estes comportamentos opostos (rejeição/implantação). As células que são rejeitadas pelo peixe são células derivadas do tumor primário do cólon, enquanto que as células que implantam eficientemente foram derivadas de uma metástase de um gânglio linfático.
As investigadoras caracterizaram então as células do sistema imunitário no ambiente tumoral, ou seja, as células que são chamadas para o tumor e formam o seu ecossistema. Especificamente, as células do sistema imune inato.
“Ao contrário do peixe-zebra adulto, as larvas têm apenas imunidade inata, que é a primeira linha de defesa do organismo. Isto oferece uma oportunidade única para estudar o papel das células do sistema imune inato no cancro, que não é tão explorado”, explica Rita Fior.
A equipa quantificou o número e o tipo de células imunes inatas no microambiente tumoral e observou que o tumor primário, que é constantemente rejeitado, estava repleto de células imunes, enquanto que o tumor metastático que implanta bem, apresentava números muito escassos destas células.
Este resultado veio ao encontro do palpite das investigadoras. Mas, para confirmar, a equipa reduziu o número de células imunes inatas nos peixes, através de manipulações genéticas e químicas seletivas. Como esperado, esta manipulação "salvou" as células do tumor primário, que agora cresciam livremente nos peixes.
Em conjunto, estes resultados mostram um papel claro do sistema imune inato na eliminação de células tumorais. Mas então, se o sistema imunitário é tão eficiente a livrar-se das células cancerígenas do tumor primário, por que razão ocorrem metástases?
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“A razão é que a relação entre o cancro e o sistema imunitário está longe de ser estática”, diz Fior. “No início, as células cancerígenas podem simplesmente tentar esconder-se do sistema imunitário. Mas com o tempo, elas aprendem a “confundir” e finalmente a "corromper" as células imunológicas. Essa evolução acontece através de um processo dinâmico chamado 'Imunoedição'. Se este processo for bem sucedido, as células corrompidas começam a proteger e a ajudar o tumor de várias maneiras, incluindo repelir outras células imunitárias que poderiam eliminar o tumor. "
Será que o sistema imunitário inato é capaz por si só de fazer imunoedição? “Os nossos resultados mostram que sim - e é o segundo estudo que eu tenho conhecimento a mostrar este fenómeno“, acrescenta Póvoa.
As investigadoras observaram que as células tumorais não só recrutavam diferentes números de células do sistema imune inato como também alteravam a sua função. Em vez de lutar contra o tumor, os macrófagos começaram a apoiá-lo e a protegê-lo. Além disso, esta transformação acontecia de uma forma assustadoramente rápida, em apenas um dia.
"Embora a maioria das células do tumor primário seja rejeitada ao fim de um ou dois dias, algumas sobrevivem. Quando transplantamos esse pequeno grupo de células sobreviventes no peixe, descobrimos que essas células já haviam adquirido capacidades de edição imunológica! Na verdade, elas implantam quase tão bem quanto células do grupo metastático.”, ressalva Póvoa.
As investigadoras também compararam o perfil genético dos diferentes tumores e identificaram várias características interessantes. "Agora temos uma lista de genes e moléculas candidatos que planeamos estudar. Esperamos que, ao identificar o mecanismo pelo qual as células tumorais suprimem e corrompem o sistema imune inato, possamos encontrar maneiras de bloquear esse processo", acrescenta Rita Fior.
Um impulso à imunoterapia
Motivadas por este empolgante conjunto de resultados, Rita Fior e Vanda Póvoa têm vários planos para o futuro. “Há tantas coisas que podemos fazer”, diz Rita. "Por exemplo, agora sabemos que a nossa metodologia com peixe-zebra permite identificar em apenas alguns dias se o ambiente do tumor é imunossupressor. É provável que a imunoterapia seja menos eficaz nestes casos. Portanto, o nosso ensaio pode vir a ajudar a identificar quais os doentes que irão responder melhor à imunoterapia - os que tiveram um tumor que gera um ambiente tumoral reactivo e menos supressor serão os melhores candidatos a serem tratados com imunoterapia.”
Outra linha de trabalho a seguir é o desenvolvimento de novas abordagens de imunoterapia. “A maioria dos medicamentos de imunoterapia atuam sobre a imunidade adaptativa e não na inata. Mas, como vimos, a imunidade inata também tem uma grande capacidade de combater o cancro. Como tal, identificar os mecanismos que potenciam esse efeito poderá permitir descobrir novas terapias, e eventualmente combiná-las com as existentes para aumentar a sua eficácia.”, finaliza.
Pela Equipa de Comunicação, Outreach e Eventos do Centro Champalimaud.
Traduzido do inglês por Catarina Ramos, co-coordenadora da Equipa de Comunicação, Outreach e Eventos do Centro Champalimaud.
Artigo original publicado na Nature Communications. DOI: 10.1038/s41467-021-21421-y