12 Dezembro 2020
Protocolo Watch & Wait
Doentes com cancro rectal que optam por novo tratamento não-invasivo poderão precisar de apenas uns anos de vigilância médica intensiva para detectar eventuais recidivas.
12 Dezembro 2020
Doentes com cancro rectal que optam por novo tratamento não-invasivo poderão precisar de apenas uns anos de vigilância médica intensiva para detectar eventuais recidivas.
Hoje em dia, um número crescente de peritos concorda em dizer que a cirurgia deveria deixar de ser a única opção terapêutica proposta aos doentes com cancro rectal. Uma abordagem não-invasiva, o protocolo “Watch-and-Wait” (“vigiar e esperar”), que reduz drasticamente o peso da doença sobre a qualidade de vida dos doentes, tem vindo a acumular resultados promissores no tratamento destes tumores. Agora, um novo estudo explora a questão que se segue: determinar se estes doentes devem ser submetidos ao pesado e exigente seguimento médico exigido pelo novo protocolo durante toda a vida, ou apenas durante um certo período de tempo.
Uma equipa internacional de cientistas, incluindo médicos do Centro Clínico Champalimaud, em Lisboa, acaba de publicar, na prestigiada revista médica The Lancet Oncology, resultados que sugerem que, num futuro não muito longínquo, a maioria dos doentes com cancro rectal poderá evitar uma cirurgia agressiva e em vez disso aderir a um protocolo de radio- e quimioterapia seguido de alguns anos de estreita vigilância médica. Se esses doentes não tornarem a apresentar, nos primeiros anos a seguir ao tratamento, sinais da sua doença, o estudo conclui que a probabilidade de verem ulteriormente o seu tumor reaparecer localmente ou levar ao desenvolvimento de metástases em locais distantes do corpo é muito baixa.
Mais precisamente, a equipa analisou os casos de cerca de 800 doentes que tiveram cancro rectal entre 1991 e 2015 e foram submetidos a um protocolo não-invasivo chamado “Watch-and-Wait” em vez de serem operados. E conclui que quase 70% desses doentes – aqueles que permaneceram livres de novos tumores e de metástases nos dois ou três anos seguintes – poderiam ter mudado para um acompanhamento clínico menos estrito e até, talvez, ter dispensado tratamentos oncológicos adicionais.
Durante anos, o único tratamento disponível para os doentes com cancro rectal foi a cirurgia radical, que frequentemente se saldava por uma colostomia permanente, fazendo com que o doente tivesse de usar, para o resto da vida, um “saco” de evacuação das fezes ligado ao intestino através de um orifício criado no abdómen.
A pioneira da abordagem Watch-and-Wait do cancro rectal foi a cirurgiã brasileira Angelita Habr-Gama, da Universidade de São Paulo – que liderou o estudo agora publicado juntamente com colegas do Brasil, Reino Unido, Países Baixos e Portugal.
Acontece que os doentes com cancro rectal baixo (isto é, cujo tumor se situa muito perto do ânus) precisam de se submeter, antes da cirurgia, a sessões prévias de radio- e quimioterapia para reduzir o tumor, de forma a evitar potenciais complicações pós-operatórias graves. E o que Habr-Gama observou, há cerca de 20 anos, é que num determinado número destes doentes, era frequente a análise do tecido removido durante a cirurgia não revelar absolutamente nenhum vestígio de células cancerosas. Isto levou-a a perguntar-se se a cirurgia rectal, com todas as suas múltiplas complicações potenciais e o seu impacto vitalício na qualidade de vida dos doentes, tinha realmente sido necessária nesses casos.
A abordagem Watch-and-Wait tem sido cada vez mais utilizada desde os anos 2000, quando cirurgiões nos Países Baixos (igualmente co-autores do novo estudo) decidiram propô-la aos seus doentes elegíveis.
O protocolo consiste em realizar, oito a dez semanas após as sessões de radioquimioterapia, uma série de testes de diagnóstico antes de decidir se é necessária uma cirurgia. Os testes são um toque rectal, uma endoscopia e uma ressonância magnética. E, caso a resposta clínica do doente seja “completa” – isto é, se o tumor for indetectável por todos estes três exames – o doente poderá optar por integrar o protocolo Watch-and-Wait.
Actualmente, já existe um grande conjunto de dados compilado na International Watch-and-Wait Database, uma base de dados em grande escala dos doentes com cancro rectal tratados em 47 centros de 15 países e cujo tratamento inicial com radioquimioterapia resultou numa “resposta clínica completa”. Foi esta base de dados que os cientistas usaram agora no seu estudo.
Segundo os críticos do Watch-and-Wait, o protocolo apresenta pelo menos dois problemas substanciais. O primeiro é que, em caso de “recrescimento” ulterior do tumor (que se estima acontecer num caso em cada quatro), poderá ser muito prejudicial para o doente ter adiado uma cirurgia que potencialmente lhe salvaria a vida. A segunda dúvida diz respeito ao facto de o tumor poder ter tempo para criar metástases se não for imediatamente removido. “Esta estratégia apresenta um risco potencial de recrescimento local do tumor”, concorda Laura Fernández, actualmente a trabalhar na Fundação Champalimaud e primeira autora do estudo. “Estima-se que um em cada quatro doentes que apresentam uma resposta clínica completa acabam por sofrer um recrescimento local, sobretudo durante os primeiros anos de seguimento médico”, acrescenta. “É por isso que os doentes são mantidos sob um programa de vigilância muito apertada após a radioquimioterapia.”
Todavia, num artigo publicado em Fevereiro de 2020 na revista Annals of Surgery, o cirurgião colorectal Nuno Figueiredo – também co-autor do novo estudo e director do Centro Cirúrgico Champalimaud – e colegas, juntamente com a mesma equipa dos Países Baixos, mostraram que, caso a cirurgia acabasse por se revelar necessária, o período de Watch-and-Wait não comprometia esta cirurgia diferida no tempo para os doentes que viam o seu tumor reaparecer. Especificamente, o resultado final era igual ao que teriam obtido se a cirurgia tivesse sido realizada sem espera. Para além disso, embora aquele estudo não tivesse sido concebido para abordar a questão da metastização, os autores observaram, com base na literatura médica, que enquanto 25% dos doentes com cancro rectal submetidos a cirurgia desenvolvem metástases a dada altura, isso apenas acontece a 8,2% dos doentes submetidos ao protocolo Watch-and-Wait (ver https://fchampalimaud.org/pt-pt/news/watch-wait).
No novo estudo, a questão que interessava os autores era a de saber quão intensiva devia ser a vigilância e quanto devia durar para garantir a segurança e eficácia da abordagem Watch-and-Wait. “A nossa área de investigação precisa de dados do ‘mundo real’ para determinar com que tipo de vigilância activa, e durante quanto tempo, estes doentes devem ser observados”, salienta Fernández. “E apesar de sabermos que um em cada quatro doentes irá ter um recrescimento, ainda não sabemos se esse risco muda ao longo do tempo, a cada ano suplementar em que os doentes conseguem permanecer livres de cancro. No nosso artigo, fornecemos agora informação crucial para guiar os clínicos no aconselhamento dos seus doentes com cancro rectal.”
A análise permitiu chegar a várias conclusões. Nomeadamente, sugere “que os doentes que passaram um ano sem recidiva do seu cancro apresentam um risco bastante baixo de ter um recrescimento local ou de ter metástases nos dois anos seguintes, o que torna desnecessário manter uma vigilância tão intensa passados três anos”, diz Fernández.
Talvez mais surpreendente, acrescenta, é que “a partir do momento em que os doentes atingiram e mantiveram uma resposta clínica completa durante um ano, os factores de risco conhecidos de recrescimento local (tais como o estádio inicial da doença, antes de qualquer tratamento, e a dose de radiação recebida pelo doente) parecem tornar-se irrelevantes.”
Isto poderá significar, segundo Fernández, que submeter a tratamentos adicionais todos os doentes que passaram pelo protocolo Watch-and-Wait e que permanecem livres de rescrecimento do tumor passado um ano também poderá tornar-se desnecessário. “Os nossos resultados sugerem que o facto de conseguir uma recuperação clínica completa, e de a manter durante um ano, é o factor protector mais relevante nos doentes com cancro rectal, colocando-os num nível prognóstico excelente”, conclui.
Por Ana Gerschenfeld, science writer da Fundação Champalimaud.