A mosca-da-fruta, Drosophila melanogaster, é amplamente utilizada como modelo na neurociência, uma vez que o seu cérebro é relativamente pequeno, sendo mais fácil de estudar em comparação com o de animais maiores. Apesar do seu tamanho, o cérebro da Drosophila é capaz de formar memórias, aprender e envolver-se em comportamentos sociais sofisticados. De forma notável, as moscas-da-fruta realizam cálculos tão complexos quanto os dos vertebrados, mas com um cérebro que tem menos neurónios. Este modelo animal partilha cerca de 60% dos seus genes com os humanos, e 75% das doenças genéticas nos humanos também existem na mosca-da-fruta. Envelhecem como os humanos, podem ficar intoxicadas, permanecem acordadas com cafeína, e até fazem a corte aos seus parceiros com canções. Estas semelhanças tornam as moscas-da-fruta inestimáveis para o estudo do cérebro, oferecendo insights que podem ser aplicados aos humanos.
“Ao estudar o diagrama de conectividade de todo o cérebro, podemos começar a descobrir como é que a atividade cerebral complexa emerge das conexões entre os neurónios — bem como, de onde é que não emerge”, disse Eugenia Chiappe, Investigadora Principal (PI) do Laboratório de Integração Sensório-Motora na FC, que participou no estudo. “Este conectoma baseia-se em sinapses químicas, os pontos onde os neurónios comunicam entre si, e marca um avanço importante na compreensão do seu papel na atividade cerebral. No entanto, o cérebro da mosca também utiliza sinapses elétricas e outras formas de comunicação, como a neuromodulação por difusão”.
Carlos Ribeiro, PI do Laboratório de Comportamento e Metabolismo na FC, acrescentou: “Este conectoma, um produto da comunidade científica a trabalhar com a Drosophila, a nível mundial, irá ajudar-nos a entender como os cérebros processam informações sensoriais e geram ações, abrindo novas portas para a investigação sobre tudo, desde cognição a doenças. A participação de vários laboratórios da FC neste consórcio destaca ainda o papel proeminente que estes grupos têm na comunidade científica a nível global”.
O estudo foi possibilitado pelo FlyWire, uma colaboração entre humanos e inteligência artificial (IA) fundada na Universidade de Princeton e apoiada por centenas de cientistas em todo o mundo. Os investigadores utilizaram primeiro a microscopia eletrónica para captar imagens detalhadas de todo o cérebro de uma mosca-da-fruta adulta fêmea. Estas imagens foram então processadas por IA para gerar um mapa inicial das células cerebrais e suas conexões.
De seguida, centenas de cientistas de todo o mundo, juntamente com cientistas cidadãos — incluindo gamers online — usaram a plataforma FlyWire para rever e refinar o mapa gerado pela IA. Esta plataforma permitiu aos utilizadores editar e catalogar neurónios e sinapses, melhorando muito a precisão do conectoma e revelando detalhes anteriormente não detetados.
O conectoma resultante consiste em 139.255 neurónios e impressionantes 54,5 milhões de sinapses, tornando-o o mapa de conectividade mais completo de qualquer cérebro animal até à data. No total, a equipa anotou 8.453 tipos celulares, incluindo 4.581 tipos identificados pela primeira vez. Embora estudos anteriores se tenham focado em partes do cérebro, esta é a primeira vez que um cérebro adulto completo foi mapeado e anotado, permitindo aos cientistas seguir o fluxo de informações em todo o cérebro.
“Este esforço exigiu um trabalho de equipa significativo para rever as segmentações derivadas da IA e identificar erros”, explicou Chiappe. “O nosso laboratório contribuiu de duas maneiras: primeiro, partilhando o nosso registo manual de várias centenas de neurónios antes da publicação, e segundo, ajudando a rever o conjunto de dados segmentado pela IA. Isto permitiu-nos melhorar a identificação de circuitos envolvidos em cálculos de movimento próprio e controlo do movimento, com foco nos circuitos premotores que regulam a caminhada e as representações internas do movimento”. O laboratório de Chiappe continua a colaborar com a equipa de Princeton para mapear o sistema nervoso central completo de um cérebro de mosca fêmea, com ênfase na compreensão das interações entre o cérebro e o cordão nervoso ventral.
“A nossa contribuição centrou-se no sistema gustativo”, explicou Ibrahim Taştekin do Laboratório de Comportamento e Metabolismo. “Revimos o conjunto de dados gerado pela IA e classificámos os neurónios de processamento do paladar com base na sua morfologia e conectividade. Quando comparamos o cérebro de duas moscas, é possível encontrar exatamente os mesmos neurónios nos mesmos lugares — a estes chamamos tipos celulares estereotipados. Alguns dos tipos celulares que identificámos nunca tinham sido classificados antes”.
No futuro, o laboratório planeia comparar o cérebro de mosca fêmea com cérebros de mosca macho para explorar possíveis diferenças nos circuitos neurais. “Estamos a trabalhar com o Janelia Research Campus e a Universidade de Cambridge para construir um conectoma masculino”, disse Taştekin. “Ao reconstruir outros cérebros, podemos confirmar que o que observámos aqui reflete padrões típicos, e não anomalias de desenvolvimento. Embora este conectoma forneça uma imagem estática, coloca-nos numa posição muito mais sólida para fazer avanços significativos na nossa compreensão de como o cérebro funciona, ao ligar a conectividade neuronal à função cerebral”.
O conectoma agora mapeado não só serve como um valioso recurso para a compreensão do cérebro da Drosophila, mas estabelece também um modelo para futuros esforços de mapeamento em grande escala do cérebro em outras espécies, incluindo os humanos. Ao revelar a arquitetura neuronal de um cérebro totalmente intacto, este estudo oferece dados inestimáveis para a futura exploração dos mecanismos de funcionamento cerebral, distúrbios neurológicos e até IA. Além disso, demonstra o poder de combinar tecnologias avançadas de imagem com ciência colaborativa global.
Em conformidade com os princípios da ciência aberta, o conectoma e os seus produtos de dados associados estão disponíveis para download e exploração interativa através do FlyWire.
Artigos
Neuronal wiring diagram of an adult brain
Whole-brain annotation and multi-connectome cell typing of Drosophila
Texto de Hedi Young, Science Writer and Content Developer da Equipa de Comunicação, Eventos & Outreach da Fundação Champalimaud.
Crédito da imagem: Tyler Sloan para FlyWire, Princeton University, (Dorkenwald et al., Nature, 2024)