05 Fevereiro 2021

Técnica de imagem ajuda a distinguir claramente, in vivo, entre dois tipos de demência

Cientistas em Portugal e no Reino Unido conseguiram confirmar que uma técnica de imagem que permite marcar neurónios produtores de dopamina no cérebro é capaz de distinguir, in vivo, a doença de Alzheimer da menos conhecida “demência com corpos de Lewy”. Um avanço que poderá ter implicações importantes na abordagem e tratamento destas doenças

Imagens SPECT

O ator norte americano Robin Williams tinha uma doença neurodegenerativa chamada demência com corpos de Lewy (DCL). Trata-se de uma doença muito incapacitante, com uma série de sintomas em comum com as doenças de Alzheimer (DA) e de Parkinson (DP). Mas ao contrário destas duas doenças, a DCL também inclui mudanças rápidas e perturbadoras do humor e da cognição, distúrbios do sono e alucinações visuais vívidas e por vezes aterradoras. Hoje, há quem pense que Robin Williams, cujo diagnostico só pôde ser feito na autópsia, foi de facto levado ao suicídio em 2014 pelas assustadoras experiências alucinatórias que sofreu durante anos – e que nunca revelou a ninguém, nem mesmo à sua mulher. Susan Schneider Williams lembrou a trágica história do seu marido num editorial publicado na revista científica Neurology, em 2016, sob o título “The terrorist inside my husband's brain”.

A DCL constitui uma novidade no espectro das demências, podendo não apenas ser confundida pelos médicos com a doença de Alzheimer, mas também com a doença de Parkinson e com a demência associada à Parkinson (DDP), que pode vir a afetar até 80% dos doentes com Parkinson, em média 10 anos após o diagnóstico inicial.

A DCL foi identificada em 1910 pelo neurologista norte-americano de origem alemã Frederic Henry Lewy, que observou, na autópsia ao cérebro de doentes com Parkinson e demência, aglomerados de uma proteína atípica (os cérebros dos doentes com Alzheimer também apresentam depósitos proteicos, mas de outras proteínas). Contudo, só recentemente é que a DCL foi reconhecida como sendo muito mais frequente do que se imaginava. “É a segunda causa mais frequente de demência nas pessoas idosas (15% a 25% dos casos na autópsia)” a seguir à doença de Alzheimer, escreve uma equipa internacional – que inclui cientistas do Centro Champalimaud, em Lisboa, Portugal –, num novo estudo publicado a 5 de Fevereiro de 2021 na revista científica Journal of Neurology, Neurosurgery and Psychiatry (uma publicação do grupo do British Medical Journal).

Durante vários anos, diz Durval Costa – que liderou o novo estudo e dirige o Laboratório de Radiofarmacologia, integrado no Programa Champalimaud de Investigação Clínica Experimental – pensou-se que a utilização de uma técnica de imagem chamada SPECT (single-photon emission computed tomography), combinada com a injeção endovenosa de um composto radioativo, o [123I]FP-CIT, poderia permitir distinguir a DCL da doença de Alzheimer. Isto porque o [123I]FP-CIT se liga aos transportadores do neurotransmissor dopamina situados na membrana dos neurónios produtores de dopamina, que são muito abundantes numa região específica do cérebro chamada estriado. E como a população de neurónios produtores de dopamina no estriado diminui drasticamente na DCL (tal como na doença de Parkinson), mas não na doença de Alzheimer, era natural teorizar que o padrão visual e quantitativo de distribuição do composto radioativo em causa no cérebro dos doentes, revelado pela sua emissão radioativa captada por uma câmara especial, iria permitir distinguir quantitativamente e de forma rigorosa a DCL da AD.

Foram precisos 20 anos para obter os resultados agora apresentados pela equipa. “Os dados de imagem foram captados por volta de 1996-1999”, explica Francisco Oliveira, investigador no laboratório de Durval Costa e primeiro autor do artigo agora publicado. “Estes doentes foram acompanhados desde o seu diagnóstico clínico inicial (incluindo colheita de imagens) até à sua morte – o que significa, nalguns casos, aproximadamente 20 anos.”

Parte da mesma equipa já tinha publicado resultados preliminares em 2002 na mesma revista onde agora são publicados os novos resultados. “Naquela altura, não tínhamos os dados todos”, salienta Durval Costa. “Mas agora, já temos.” Isto porque o material biológico proveniente das autópsias do grupo de doentes que participaram no estudo ainda não estava totalmente disponível, impossibilitando a comparação do diagnóstico in vivo com os relatórios de autópsia num número suficiente de doentes.

E assim, pela primeira vez, as autópsias confirmam os dados in vivo com grande precisão: não só as imagens obtidas em vida permitem diferenciar a DCL da AD, como também a DCL da doença de Parkinson (que também apresenta padrões diferentes de distribuição do [123I]FP-CIT em relação à DCL). Voltando à evocação dos duríssimos últimos anos da vida de Robin Williams, vale a pena aqui notar que os médicos diagnosticaram doença de Parkinson no ator, embora ele e a sua mulher tivessem a certeza de que outra coisa, diferente e muito grave, estava a acontecer-lhe.  

“O facto de sermos capazes de obter uma diferenciação quantitativa entre doenças é crucial”, diz Francisco Oliveira. “Estas doenças têm sintomas que se sobrepõem, o que torna o diagnóstico clínico difícil nalguns casos e conduz a uma proporção considerável de diagnósticos errados. Por exemplo, alguns estudos baseados em diagnósticos post-mortem mostram que muitos dos doentes clinicamente diagnosticados como tendo Alzheimer são na realidade doentes com DCL.” Isto pode levar a erros na abordagem destes doentes. Os cuidados clínicos dos doentes com doença de Alzheimer são diferentes dos que é preciso ter com os doentes com DCL. Os doentes com DCL são muito sensíveis a alguns tipos de medicação que precisam de ser obrigatoriamente evitados. Em última análise, esses tipos de medicação podem levar quer à deterioração mais rápida, quer à morte precoce destes doentes.  

“Os nossos resultados poderão ter um impacto significativo tanto para os doentes como para os seus cuidadores”, acrescenta Francisco Oliveira. “Além disso, a seleção de doentes para participar em ensaios clínicos passa agora a poder ser feita com biomarcadores mais fiáveis.” Os cientistas esperam ainda, no futuro, conseguir distinguir melhor, com este tipo de análise quantitativa, doentes com DCL de doentes com demência por doença de Parkinson. Isto é importante para que ambos possam beneficiar de estratégias de tratamento diferentes.

Por Ana Gerschenfeld, science writer da Fundação Champalimaud.    

Link para o artigo original.

Imagens SPECT

 

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