18 Novembro 2020

Tecnologia de realidade aumentada e modelos 3D personalizados da mama utilizados pela primeira vez numa cirurgia do cancro da mama

No futuro, os cirurgiões especializados no cancro da mama, e em outros tipos de cancro também, poderão vir a utilizar de forma rotineira, no bloco operatório, óculos digitais destinados a guiar os seus gestos enquanto removem tumores malignos.

Breast 4.0

No passado mês de Janeiro, uma equipa do Centro Clínico Champalimaud, em Lisboa, testou com sucesso a precisão de um novo método, não-invasivo e 100% digital, de localização de tumores malignos da mama em tempo real durante a cirurgia. Pela primeira vez no bloco operatório, um cirurgião equipado de óculos de “realidade aumentada” conseguiu visualizar, a cada instante, uma imagem virtual do tumor a remover, situado dentro do corpo da doente – literalmente como se esta se tivesse tornado transparente. 

Pedro Gouveia – o cirurgião da Unidade de Mama do Centro Clínico Champalimaud que realizou a cirurgia – tem feito, nos últimos anos, um trabalho pioneiro de desenvolvimento de uma tecnologia digital que poderá vir a marcar o início de uma nova era na cirurgia do cancro da mama, e que baptizou de Breast 4.0. “A tecnologia e computadores com a potência de cálculo necessária para o fazer já estão disponíveis”, diz o médico. O seu objectivo final é desenvolver um sistema que possa ser integrado nos blocos operatórios. “Estamos ainda no início desta transformação”, acrescenta.

O potencial do projecto Breast 4.0 foi aliás hoje distinguido (18 de Novembro) pelos Prémios “Os melhores e as Maiores do Portugal Tecnológico”, uma iniciativa da Revista Exame Informática, tendo vencido na categoria Inovação.

Mas voltando um pouco atrás, qual é a situação actual em termos de cirurgia conservadora da mama? Por um lado, como muitos cancros da mama são diagnosticados em estadios precoces de desenvolvimento, não são palpáveis. Isso faz com que os cirurgiões dependam totalmente das imagens médicas – mamografias, ecografias, ressonância magnética (IRM) – para localizar os tumores.

Ora, a tarefa não é simples, porque conforme o tipo de imagem, os doentes podem ter de estar de pé ou deitados em diversas posições – e ainda por cima, a mama pode precisar de ser comprimida (como nas mamografias) ou simplesmente ficar esticada devido ao efeito da gravidade. Não admira portanto que seja muito moroso, mesmo para um cirurgião perito na matéria, inferir com precisão, a partir destas imagens deformadas e dificilmente sobreponíveis, a localização real do tumor.

Por outro lado, antes da cirurgia, a localização do tumor, determinada a partir das imagens, precisa de ser marcada directamente no doente para assinalar o ponto onde está o tumor e programar a intervenção. Diversos métodos, todos eles invasivos, são utilizados nesta etapa, causando dor e ansiedade nas doentes. O método utilizado na Fundação Champalimaud consiste numa série de injecções de carbono líquido, que é inoculado na mama com uma agulha, produzindo uma pequena “tatuagem” circular na pele e no tumor dentro da mama que indica a posição do alvo.

Pergunta: o que aconteceria se fosse possível fundir imagens reais do tumor – apesar das deformações na mama causadas pela maneira como foram obtidas – com um modelo 3D personalizado da superfície do tronco da doente, e a seguir sobrepor, com recurso a óculos transparentes especiais, essa fusão de imagens ao que o cirurgião vê realmente à sua frente? Resposta: já não seria preciso aquele esforço todo para determinar onde está o tumor – nem submeter os doentes a técnicas dolorosas e susceptíveis de erros.

Isso é exactamente o que a realidade aumentada permite fazer. Lembram-se quando, em 2016, o jogo de telemóvel Pokémon GO levou centenas de milhões de utilizadores do mundo inteiro a ir para a rua caçar monstrinhos virtuais escondidos na paisagem? Esse o jogo baseava-se precisamente… na tecnologia de realidade aumentada, que sobrepõe imagens geradas por computador à nossa visão do mundo real. “De facto, tudo começou com o Pokémon”, diz Gouveia.

O desafio para apostar na vertente tecnológica partiu de Maria João Cardoso, que dirige equipa de cirurgia da Unidade de Mama e é simultaneamente orientadora da tese de doutoramento de Pedro Gouveia. “A utilização de novas tecnologias em cirurgia com recurso a inteligência artificial sempre foi uma das apostas do nosso grupo e o Dr. Pedro Gouveia soube aproveitar esta janela de oportunidade pensando sempre no maior benefício para as doentes”, refere Maria João Cardoso.

Há mais de dois anos que Gouveia está a estudar, em colaboração com colegas da Fundação Champalimaud e com cientistas e engenheiros do INESC TEC e da empresa portuguesa AI4medimaging, como fundir imagens de ressonância magnética do tumor de um dado doente com imagens, obtidas com um scanner 3D, da superfície do tronco desse mesmo doente (deitado de barriga para cima) utilizando algoritmos especiais de “fusão” desenvolvidos por Sílvia Bessa (do INESC TEC) e pelo próprio Gouveia. “Tem sido um grande esforço de toda a Unidade de Mama o, tendo contado ainda com o apoio de Celeste Alves, que dirige o grupo de Radiologia da mesma unidade, e de Nickolas Papanikolaou, líder do grupo de Imagiologia Clínica Computacional”, diz o médico.

Para produzir a imagem de fusão final, os cientistas começam por desenhar, com um marcador de tinta permanente, um conjunto de pontinhos em locais relevantes do tronco do doente, incluindo os contornos da mama. Porém, coloca-se aqui um problema: esses pontos vão ser visíveis na imagem do scanner 3D, mas não na imagem de ressonância magnética. A solução encontrada pela equipa para o resolver foi particularmente astuta, simples e barata: uma vez obtida a imagem de scanner 3D, fixam-se comprimidos de óleo de fígado de bacalhau em cima dos pontos de tinta – e como o óleo é líquido, será visível nas imagens de ressonância magnética!

A imagem final, quando telecarregada para os óculos de realidade aumentada, sobrepor-se-á ao entorno real visível através dos óculos. E quando o cirurgião olhar para o tronco do doente, deitado de barriga para cima na mesa de operação, verá o tumor onde ele efectivamente se encontra. Foi a empresa portuguesa NextReality, especializada em realidade aumentada, que deu suporte à equipa nesta matéria e emprestou os seus óculos Hololens.

Uma abordagem semelhante já foi utilizada em neurocirurgia, salienta Gouveia, mas conseguir que o método funcione num tecido mole e deformável como o da mama é uma outra história. Para mais, a equipa quer automatizar o processo de forma a que a imagem obtida por scanner 3D do doente deitado de barriga para cima na mesa de operação possa ser captada em tempo real, algo que nunca foi tentado. “Na cirurgia que realizámos em Janeiro, fizemos tudo manualmente”, diz Gouveia. “O modelo 3D da mama da doente levou mais de sete horas a ser produzido depois de termos registado os dados com um scanner portátil e realizado a ressonância magnética da mama! A ideia de Gouveia para o futuro é instalar vários scanners 3D no tecto do bloco operatório de forma a que o sistema possa trabalhar rápida e autonomamente. 

Antes de testar a abordagem durante uma cirurgia, a equipa já tinha realizado, entre 2017 e 2019, testes da precisão do seu método experimental em 16 doentes com cirurgia marcada – simplesmente comparando as imagens virtuais dos tumores com as tatuagens cutâneas correspondentes (que já tinham sido realizadas durante a preparação para a cirurgia). A equipa concluiu então que o método era exequível (em inglês, fala-se de “proof of concept”) e publicou os seus resultados em Janeiro de 2020 numa edição especial sobre inteligência artificial aplicada ao cancro da mama da revista The Breast.

Quanto ao resultado em condições operatórias, “o teste durante a cirurgia foi um êxito”, diz Gouveia. “A posição da imagem virtual [vista através dos óculos de realidade aumentada] coincidia com a tatuagem de carbono na pele da doente”. Isto sugere que o cirurgião teria conseguido realizar a cirurgia baseando-se apenas nos dados digitais – e com a vantagem acrescida de dispor de mais informação sobre a forma e os limites do tumor.

Mas é óbvio que isto é ainda um protótipo”, avisa Gouveia. De facto, há ainda um longo caminho a percorrer antes de a equipa conseguir transformar este protótipo num dispositivo médico fiável e totalmente automatizado que possa vir a ser utilizado no mundo inteiro. E, quem sabe, noutros tipos de cancro.

 

Por Ana Gerschenfeld, science writer da Fundação Champalimaud.

Hololens
3D personalizado da superfície do tronco
3D personalizado da superfície do tronco
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