16 Outubro 2023

Cientistas da Fundação Champalimaud criam, pela primeira vez em Portugal, infraestrutura em nuvem para dados de saúde destinada à investigação

O objectivo é ambicioso: criar um sistema estandardizado de armazenamento na nuvem de dados de doentes, devidamente anonimizados, de forma a que fiquem acessíveis, em total segurança, aos investigadores que os desejam estudar. E também, um dia, aos clínicos e aos próprios doentes, para serem consultados, através da internet, em qualquer sítio do mundo.

Cientistas da Fundação Champalimaud criam, pela primeira vez em Portugal, infraestrutura em nuvem para dados de saúde destinada à investigação

Por ocasião do Open Day da Unidade de Mama da Fundação Champalimaud (FC), que se realiza hoje, 16 de Outubro, vai ser apresentada uma infraestrutura inédita de armazenamento, consulta e análise de dados médicos por investigadores. Foi criada pelo Digital Surgery Lab daquela unidade, uma equipa multidisciplinar liderada pelo cirurgião Pedro Gouveia, em parceria com a Altice e a empresa portuguesa BMD Software.

Por que é que esta infraestrutura é inédita? “Hoje, em Portugal e na maioria dos centros na Europa, quando é preciso aceder a dados de imagem médica – para fazer investigação, nomeadamente –, tem de se ir aos hospitais consultar os arquivos de imagens de doentes e gravar a informação em CD”, explica Gouveia. Em pleno século XXI, estamos ainda a usar discos físicos para transferir informação!” 

Este não é um método seguro, frisa ainda o médico, porque não é possível controlar quem tem acesso a estes dados, nem ter a certeza de que o processo da sua anonimização (indispensável para garantir o cumprimento do regulamento de proteção de dados, o GDPR na sigla em inglês) tenha sido feito correctamente. “Agora, pela primeira vez, nós conseguimos demonstrar que é possível transferir e armazenar ficheiros digitais em segurança, de forma virtual, via internet, utilizando ferramentas que já existem nos hospitais”, acrescenta Gouveia.

O facto de os dados poderem ser armazenados na nuvem torna a sua acessibilidade muito mais simples e imediata às pessoas acreditadas. Mas estes investigadores vão mais longe: se o formato desses dados estiver devidamente normalizado, explicam ainda, é possível vislumbrar um futuro em que os hospitais e centros de investigação possam transferir dados médicos entre si de forma totalmente transparente para o utilizador final.
Gouveia dá um exemplo da situação actual: cada hospital escolhe o seu próprio formato de datas, nomeadamente o norte-americano ou o europeu. “Como é que podemos esperar que dois sistemas comuniquem, se isso não estiver estandardizado?”, questiona.

“Ora, nós já conseguimos fazer essa estandardização e obter essa interoperabilidade. O Hospital de Santa Maria, por exemplo, poderia ir buscar imagens médicas e dados clínicos das doentes com cancro da mama tratadas na Fundação Champalimaud sem ter de descobrir primeiro como é que nós fazemos a formatação das datas ou de outros elementos. Porque tudo isso já terá sido estandardizado.”

A criação desta infraestrutura é apenas a primeira fase de um projecto, baptizado MetaBreast – que Gouveia tem desenvolvido, nos últimos anos, com colegas da Unidade de Mama e outros parceiros. O projecto foi recentemente aprovado para receber financiamento do Plano de Resiliência e Recuperação português (PRR) – do qual cerca de 1,4 milhões de euros irão para a FC. (https://fchampalimaud.org/pt-pt/news/cirurgia-do-cancro-mama-do-futuro-…). 

Metaverso cirúrgico

A nova infraestrutura irá, para já, ser utilizada para fazer investigação (desenvolver software, testar a fiabilidade e segurança dos dados armazenados, etc.), mas o objetivo da equipa é criar, numa segunda fase, um dispositivo médico comercial (financiado pelo PRR), que irá permitir aos médicos aceder aos dados de saúde e de imagem através de óculos de realidade aumentada.

Entramos aqui no chamado “metaverso cirúrgico” – que, para Gouveia, é indubitavelmente o futuro da cirurgia. É que, como os óculos de realidade aumentada se ligam à internet, a nova infraestrutura deverá tornar possível o acesso aos dados das doentes, através destes óculos, directamente no bloco operatório.

Mais precisamente, o derradeiro objectivo do MetaBreast é criar um dispositivo médico que, graças a um software ou um serviço, use a internet para permitir que os cirurgiões da mama (e outros mais tarde) tenham acesso, através de óculos de realidade aumentada, aos dados de imagem e aos dados clínicos das doentes com cancro, em tempo real, durante as cirurgias. Os cirurgiões poderão assim sobrepor diversas imagens radiológicas da doente ao corpo real da doente, em directo no bloco operatório, tornando a cirurgia mais precisa – ou ainda consultar directamente outros tipos de dados clínicos sobre essa mesma doente se e quando for necessário (https://fchampalimaud.org/pt-pt/news/tecnologia-de-realidade-aumentada-… ).

O primeiro passo do projecto MetaBreast era inicialmente criar uma base de dados online, ditos “pseudo-anonimizados”, de várias centenas de doentes com cancro da mama, com imagens médicas anotadas, fotografias do torso e outros dados pertinentes de cada uma. A pseudo-anonimização garante ao mesmo tempo a segurança dos dados (GDPR), graças à atribuição de uma chave, de um código secreto, aos dados de cada doente, e a possibilidade de o médico que trata a doente saber quem é a doente, em caso de necessidade, através dessa mesma chave. “E é uma forma mais ética fazer a pseudo-anonimização dos dados, porque se for feita alguma descoberta relevante para uma doente, o médico que a trata poderá agir em consequência”, explica Gouveia. 

“Interoperabilidade é a palavra-chave”

Com o desenvolvimento da infraestrutura hoje apresentada, esta parte do projecto tornou-se mais ambiciosa. “Já tínhamos falado de criar uma base de dados online”, lembra Gouveia. “Mas o que estamos agora a criar é muito mais do que isso. Uma base de dados online é uma coisa normal em qualquer projecto. O que nós fizemos é uma coisa completamente diferente: criámos um ‘sistema de interoperabilidade’ e armazenamento de dados em saúde”, conectando digitalmente o sistema clínico a um repositório de dados em nuvem.

Esta é que é a novidade, explica ainda o cirurgião. “Interoperabilidade é a palavra-chave”, afirma. Significa deixar de  depender da extracção manual dos dados dos doentes para um CD ou para uma tabela de Excel e conseguir que os sistemas informáticos comuniquem em tempo real, transfiram dados entre si e os anonimizem ou pseudo-anonimizem de um lado para o outro de uma forma automática e segura. 

Os arquivos de imagens médicas dos hospitais já possuem um sistema estandardizado, denominado PACS (Picture Archiving and Communication System) e desenvolvido utilizando um standard chamado DICOM (Digital Imaging and Communications in Medicine), que veio substituir os filmes radiológicos convencionais. Em cada hospital, estes arquivos de imagens médicas recebem os ficheiros de imagens directamente dos equipamentos que, nesse hospital, realizam registos radiológicos como as TAC, ressonâncias ou raios X. 

Quanto aos dados não imagiológicos – que na Fundação Champalimaud, por exemplo, estão contidos num processo clínico electrónico – também vão estar integrados na nova infraestrutura. 

“Todos os dados de imagem e os processos clínicos da Unidade de Mama vão ser transferidos para dois computadores da rede privada da Altice nas Picoas (Lisboa)”, diz Gouveia. Para isso, a equipa criou, dentro da nuvem do Centro Clínico Champalimaud, um PACS dito de gateway – isto é, um PACS de transferência – que recebe os dados do PACS clínico da Unidade de Mama, pseudo-anonimiza-os e envia-os a seguir para fora da nuvem da clínica, para um terceiro PACS, apelidado de PACS de investigação, instalado nos servidores da Altice. Este último está disponível por VPN aos investigadores da Fundação e aos membros do consórcio MetaBreast, que passam a ter acesso não só aos dados de imagem, mas também aos dados não imagiológicos armazenados pela Altice. 

“A unidade da Mama tem já 3.500 doentes com dados clínicos estruturados que vão portanto poder ‘viajar’ de PACS em PACS até ao destino final”, acrescenta Gouveia. E até as próprias doentes, se o desejarem, poderão um dia aceder, com as devidas credenciais, a todo o seu processo clínico eletrónico a partir de qualquer hospital ou clínica que possua um PACS.

Um trio de PACS

Neste momento, o PACS de gateway e o PACS de investigação já estão operacionais e já começaram as transferências de um para o outro. A equipa tenciona testar a fiabilidade da infraestrutura com várias centenas de doentes recrutadas para o efeito (das quais já foram recrutadas 25% – mais de 100 doentes desde Fevereiro 2023). “Para este estudo clínico”, explica Gouveia, “estamos a recolher dados de ressonância magnética das doentes em duas posições – de barriga para baixo e de barriga para cima – e também a construir mapas da superfície do corpo de cada doente, com um dispositivo específico, numa posição análoga à da cirurgia.”

As ressonâncias magnéticas anonimizadas irão também permitir a João Santinha, especialista de inteligência artificial aplicada às imagens médicas do Digital Surgery Lab, treinar os algoritmos de inteligência artificial que está a desenvolver. Desta forma, sem precisar de aceder directamente ao PACS clínico da Fundação, que contém a identidade das doentes, o investigador poderá fazer a segmentação automática dos diferentes tecidos mamários e identificar onde é que está o tumor, onde está a gordura e o tecido fibroglandular. São esses algoritmos que tornarão possível a construção dos modelos 3D personalizados das doentes que os cirurgiões irão um dia visualizar – de forma rotineira, se tudo correr bem. “Para conseguirmos treinar os nossos algoritmos de IA precisamos de transferir os dados de pelo menos 400 doentes para a nova infraestrutura”, esclarece Gouveia.

Mais: até poderá ser possível, no futuro, aproveitar dados presentes nas imagens médicas, mas que ainda não estão a ser explorados, para melhorar a qualidade de vida das doentes. Santinha exemplifica: “As doentes com cancro da mama, quando fazem uma cirurgia conservadora, fazem sempre a seguir radioterapia para garantir a erradicação da doença. E precisam portanto de fazer uma TAC de planeamento da radioterapia de forma a identificarmos os órgãos de risco e as regiões em que queremos ter determinadas doses de radiação. Ora, há uma série de informações que são visíveis nestas imagens, mas que hoje em dia não estamos a utilizar, como problemas cardiovasculares que as doentes já tenham ou que possam vir a ter, riscos de doença cardiovascular, de osteoporose, de doença obstrutiva respiratória.” 

Estes sinais poderão vir a ser utilizados um dia para identificar as mulheres com cancro da mama com risco de outras doenças e conseguir adaptar os tratamentos de forma a minimizar esses riscos ou os efeitos dessas doenças. 

Heka, deus do Egipto

A equipa está entretanto a preparar-se para criar uma spin-off que permita comercializar o dispositivo médico de IA e realidade aumentada que venha a ser desenvolvido, no âmbito do projecto MetaBreast, pelo Digital Surgery Lab.

“Estamos em processo de registo da  empresa, que se vai chamar Heka Vision”, diz Gouveia. “Temos um roadmap a cinco anos com necessidades de investimento de 13 milhões de euros para realizar todos os ensaios clínicos necessários e colocar o dispositivo no mercado”, acrescenta. E salienta ainda que, embora as aplicações em desenvolvimento do dispositivo sejam ainda exclusivamente na área da cirurgia do cancro da mama, o seu âmbito de utilização poderá obviamente vir a expandir-se. 

Porquê o nome Heka Vision? Foi Tiago Marques, neurocientista e especialista em visão artificial (computer vision), que também pertence ao Digital Surgery Lab e ao projecto MetaBreast, que o sugeriu. Um parêntese: para além dos três investigadores séniores aqui citados, o Digital Surgery Lab conta com três alunas de doutoramento, dois software developers vindos de uma empresa externa, mas com dedicação exclusiva – e irá integrar em breve vários alunos de mestrado e de licenciatura. “Já somos mais de dez”, diz Gouveia. 

Voltando ao nome da futura empresa, “Heka era o deus egípcio da medicina e da magia”, explica Marques. “Portanto, o seu nome faz sentido porque estamos a desenvolver dispositivos médicos. Mas também gostamos do facto de ser um deus da magia, porque estamos a desenvolver uma tecnologia que, no fundo, funciona quase como magia, não é?” Marques inspirou-se numa frase do escritor de ficção científica e futurista Arthur C. Clarke, que disse que uma tecnologia suficientemente desenvolvida parece magia para as pessoas que não a conhecem. “O nome Heka Vision traduz bem essa ideia de uma visão médica e ao mesmo tempo mágica”, salienta.

Por Ana Gerschenfeld, Health & Science Writer da Fundação Champalimaud.
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